Ricardo André Vasconcelos – Um país à mercê das trapaças da sorte?

 

“Trapaças da sorte” ou “urdiduras do diabo”. Foi como dois ministros do Supremo Tribunal Federal reagiram à morte do colega de toga, horas antes num acidente aéreo no litoral de Paraty. O morto era Teori Zavascki, relator do processo que investiga um dos maiores escândalos de corrupção do mundo e a poucos dias de concluir a homologação de colaborações premiadas de 77 executivos da maior empreiteira nacional. Os processos podem redundar no indiciamento de duas centenas de políticos citados, incluindo 128 com mandato, entre eles os presidentes do Congresso e da República.
Ingredientes suficientes para alimentar teorias da conspiração de todos os tipos, à direita e à esquerda. Nas redes sociais o próprio filho de Zavascki levantou suspeita de algo poderia existir de “não acidental” na queda do avião. Em maio do ano passado, o mesmo filho registrou em rede social que se algo acontecesse a sua família, a Polícia saberia a quem procurar. Mais não disse e nem mais lhe foi perguntado.
Em quatro anos na Suprema Corte, Zavascki contrariou interesses diversos: suspendeu o mandato de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), tirando-o da presidência da Câmara, cortando assim o suprimento de oxigênio político que o fazia manter em vergonhoso banho-maria o processo de cassação do próprio mandato. Algumas decisões favoreceram ao Lula e outras foram de encontro aos interesses dos ex-presidentes petistas. Com Renan Calheiros (PMDB), também deu uma no prego, outra na ferradura: determinou o indiciamento num processo que se arrastava quase há uma década, mas votou com a maioria para mantê-lo na presidência do Senado, mas fora da linha sucessória da Presidência da República. Um “puxadinho constitucional”.
Teori Zavascki já figura na extensa lista de personalidades brasileiras que saíram de cena de maneira que se tornaram suspeitas porque ocorridas em momentos de proeminência das vítimas e em circunstâncias limítrofes entre a fatalidade e o ardil humano. Acidentes acontecem, da mesma forma que sabotagens, envenenamentos ou homicídios. Ao longo das últimas décadas a história do Brasil está salpicada de casos que podem ser obras do puro e simples acaso ou de sórdidas conspirações. Trapaças da sorte?
Em outubro 1992, Ulysses Guimarães estava no auge da campanha pelo impeachment de Collor e o helicóptero que o levava de Angra para São Paulo, caiu no mar matando todos a bordo. Antes, em 1985, na véspera da posse como primeiro presidente civil após duas décadas de ditadura militar, Tancredo Neves foi internado às pressas no Hospital de Base de Brasília para uma cirurgia realizada num centro cirúrgico improvisado. Tancredo morreu 35 dias depois de uma sucessão de erros, farsas e egos inflados. O livro “O paciente – O Caso Tancredo” (1), do jornalista Luis Mir, é um dos mais completos trabalhos sobre a agonia e morte daquele que seria o presidente que faria a travessia do país de volta à democracia. A conclusão do livro não agrada aos adeptos das teorias conspiratórias. Para Mir, a partir da escolha do local da cirurgia (“território hostil do primeiro ao último minuto em que esteve lá”), o resumo é que houve uma “tragédia médica que colocou a transição democrática à beira do abismo…”. Só para ter um exemplo, na sala de cirurgia onde Tancredo foi operado, estavam 25 pessoas incluindo os profissionais, políticos como Antônio Carlos Magalhães, o embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima e a família Neves: a mulher, o filho, duas filhas, dois irmãos, uma irmã, dois netos (um era Aécio Neves) e um sobrinho (Francisco Dornelles).
Nas eleições presidenciais de 30 anos depois, em 2014, o candidato apontado como opção para o rodízio entre petistas e tucanos, morreu, também num desastre aéreo. Eduardo Campos, neto do lendário Miguel Arraes, tinha 45 anos e foi substituído na chapa pela vice, Marina Silva. A eleição foi vencida pela petista Dilma Rousseff.
Ministro da Reforma Agrária no governo Sarney, o advogado e militante histórico do MDB, Marcos Freire era um dos políticos mais promissores naquele alvorecer na “Nova República”. Pernambucano do Recife, chegou ao Senado com pouco mais de 40 anos. Em 1987 era ministro da Reforma Agrária do Governo Sarney quando o avião em que viajava, visitando o conflagrado Sul do Pará, explodiu em pleno ar matando também o presidente do Incra e outros técnicos. A reforma agrária, ainda era (é) um tabu que contribuiu para a queda do presidente constitucional, João Goulart, em 1964.
Goulart, aliás, é outro personagem que protagoniza diversas teorias de conspiração. Jango morreu em dezembro de 1976. O que chama atenção, como é esmiuçado no livro “O Beijo da Morte” (2), de Carlos Heitor Cony e Ana Lee, é que num período de nove meses morreriam, em condições, digamos, inesperadas, os três principais líderes da oposição ao regime militar. Os três, potenciais candidatos ao Planalto, tinham fundado a “Frente Ampla” meses antes com objetivo de restabelecer a democracia no Brasil. Juscelino Kubitschek morreu num acidente de carro na Rio-São Paulo, próximo à cidade de Resende, já no Estado do Rio. O Opala em que estava, dirigido pelo fiel motorista Geraldo Ribeiro, atravessou o canteiro e colidiu com uma Scania que transportava 30 toneladas de gesso. Os dois morreram na hora. Uma semana antes, correu um boato que Juscelino teria morrido em acidente semelhante, próximo a Brasília. Era agosto de 1976. Em dezembro do mesmo ano, João Belchior Marques Goulart, o Jango, morreu no exílio na cidade de Mercedes, na Argentina, oficialmente de ataque cardíaco.
Meses antes, Jango encontrou-se em Montevidéu com o inimigo político Carlos Lacerda, o “corvo”, para fundar a Frente Ampla e andava espalhando que voltaria ao Brasil, de qualquer maneira. Só voltou morto. Era cardiopata em uso de medicamentos e há pouco havia passado por um check-up em Lyon, na França.
Carlos Lacerda — um dos líderes civis do movimento de 64 que passou a combater e, por isso, teve os direitos políticos cassados — deu entrada na Clínica São Vicente, na Gávea, em maio de 1977, com sintomas de febre que, em poucas horas evoluiu para uma septicemia que o matou. Era o terceiro integrante da Frente Ampla morto em nove meses. As mortes de Jango e JK foram investigadas na ditadura e posteriormente já no retorno à democracia. Jango teve o corpo exumado em 2001 e nenhuma tese conspiratória comprovada. Mas sobre as três mortes pairam as asas de certa Operação Condor, conspiração liderada pela CIA para eliminar opositores dos regimes ditatoriais que dominavam a América do Sul com apoio dos Estados Unidos na segunda metade do século passado.
Casos confirmados de tortura e assassinatos de presos políticos pelos agentes do Estado autorizam as teorias conspiratórias. Ora, se assassinaram o jornalista Wladimir Herzog, o operário Manoel Fiel Filho, a estilista Zuzu Angel e muitos outros por se opor ao governo, por que não calar os que eram ameaça real ao regime?
Outro ex-presidente morto em desastre de avião e quase nunca incluído na lista de mortes suspeitas é Castelo Branco. O Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, presidente militar entre 1964 e 1966, perdeu a batalha da própria sucessão para os militares da “linha dura” que impuseram Costa e Silva, que anos depois legaria ao país o famigerado AI-5. Castelo voltava de uma visita à escritora Rachel de Queiroz, sua prima, na fazenda “Não me Deixes”, no Ceará, quando o avião em que voava entrou numa área de exercício da Força Aérea Brasileira (FAB) e foi atingido por um jato.
Num andar mais abaixo, há outras mortes com características mais de “queima de arquivo” do que conspiração política. Paulo César Farias, o ex-tesoureiro e pivô do impeachment de Fernando Collor, foi encontrado morto a tiros ao lado da namorada, Suzana Marcolino, em junho de 1996. Crime passional, foi a versão oficial. Suzana teria matado o namorado e depois posto fim à própria vida. Mais misterioso ainda é o assassinato, em plena rua em São Paulo, em janeiro de 2002, do então prefeito de Santo André, Celso Daniel. Estrela do petismo em ascensão, Daniel estaria prestes a detonar um esquema de corrupção na prefeitura, do qual perdera o controle. Testemunhas e suspeitos foram morrendo como num dominó macabro e a história virou toneladas de papel dos processos judiciais sem conclusão.
De coincidências e conspirações vai-se tecendo a história do Brasil. Sabe lá Deus o que mais nos espera…
Referências:
1. – CONY – Carlos Heitor e LEE Anna. O Beijo da Morte. Rio de Janeiro. Editora Objetiva. 2003.
2. – MIR, Luis. O paciente – O Caso Tancredo Neves. São Paulo. Editora de Cultura. 2010

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Este post tem um comentário

  1. Sérgio Provisano

    Eu penso que, Ricardo André Vasconcelos é uma das raras cabeças que pensam e externam o seu pensar de forma lúcida, crítica e didática e isso traz luz nessa irrefreável democracia das redes sociais, tão pobre de ideias e debates, onde impera a reprodução de scrapps e coisas e tais, onde eu sinto falta de ler coisas profundas e assim ir ampliando o meu pensar, tendo o imenso prazer de enxergar não só coisas que comungo, também como o contraditório. Esse texto em tela, eu adoraria ter escrito e fico com uma baita inveja de não tê-lo escrito, mas um dia escreverei algo assim, espero, ele é um primor de pesquisa histórica e deveria ser o mais compartilhado de forma a abrir as mentes daqueles que insistem em ficar na superfície das coisas, daqueles que insistem em não pensar, daqueles que negam a História, Li, reli e lerei outras vezes. Parabéns ao Ricardo e ao Opiniões por abrir espaços para o livre pensasr, Aluysio Abreu Barbosa.

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