Marcelo Amoy – Fato ou Ficção?

Histórias de ficção científica sempre me instigaram. Quando criança, era só pela tecnologia “de sonho” que apresentavam; depois de adulto, por me fazerem pensar no grau das esperanças e ameaças que seriam razoáveis considerar para o futuro dado o nosso presente. Algumas das maravilhas tecnológicas com que eu sonhava lá na aurora dos anos 70 já andam por aqui há tanto tempo que algumas até ficaram ultrapassadas – vejam o vídeo cassete, por exemplo. Outras vão além do imaginado antes. Minha geração viu surgir (e/ou ficar amplamente acessível no Brasil) o microondas, o CD, o DVD, o vídeo game, o computador doméstico, a TV de tela plana (pra pendurar na parede como um quadro), o armazenamento de dados “em nuvem” e mais uma série imensa de objetos e tecnologias que, na minha infância, existiam apenas nas páginas e telas dos livros e filmes de ficção científica. Nenhuma delas, contudo, trouxe tanta mudança de hábitos como a internet e os telefones celulares.
Uma pesquisa recente indicou que o acesso à internet no Brasil se dá hoje, majoritariamente, pelos aparelhos celulares. Mais do que um telefone sem fio de alcance virtualmente ilimitado (quem veraneia em Atafona sabe que não é bem assim, rsrsrs), o que menos se faz hoje com um celular são… chamadas telefônicas. A ficção científica de minha infância – aquele aparelhinho capaz de se comunicar com todo mundo, escanear coisas, guardar informações, avisar de compromissos, executar pagamentos e mais um sem número de coisas – é hoje a mais banal das realidades. Assim como a internet.
Imagino como os historiadores do futuro chamarão essa nossa época: a de tantas e tão profundas mudanças em comunicação. O que virá (melhor dizendo: já chegou) depois da “Idade Contemporânea”? Nesse exato momento, antropólogos, sociólogos, filósofos, historiadores, psicólogos, educadores e pesquisadores de incontáveis áreas estudam como nossas relações têm sido modificadas pela internet – pelo uso que fazemos dela. As enciclopédias em que eu pesquisava meus trabalhos escolares hoje estão todas (e muitas mais) ao alcance de um toque, no sofá de qualquer sala, num banco de ônibus, na praia. Difícil imaginar um progresso tão amplo em profundidade e acesso democrático: grosso modo, da mais rica cobertura ao barraco na periferia, a internet está ali, “de graça”, para quem quiser usá-la. Os interesses individuais, contudo, seguem variando como sempre – não haveria de ser diferente.
Dizem que a internet tem sido usada como um divã onde são exibidos dramas pessoais e experiências psicológicas mal resolvidas; que virou uma vitrine em que a pessoas, voluntariamente (inadvertidamente?), abrem mão de sua privacidade por vaidade; um lugar em que se vivem vidas de personagens de romances de texto duvidoso – com altos e baixos que revelam carências e movimentos desordenados. Eu até gostaria de sugerir a certas redes sociais que oferecessem serviços de psicólogos online – fariam um bem danado pra muita gente!, rsrsrs –, mas deixemos isso pra lá. As constatações anteriores, mesmo que verdadeiras, não me incomodam: acho que as pessoas devem fazer o que quiserem sempre que permitido pela lei e por suas consciências. O drama se torna grave quando não há consciência nem autocrítica – e o grave se torna gravíssimo quando notícias são distorcidas por descaso, má vontade ou por expressa intenção de enganar interlocutores. A falta de educação formal ou mesmo de bom senso, quando ingênua, é perdoável pela ausência de condições para uma conduta contrária. No entanto… essa não é uma justificativa que todos possam apresentar.
Impulsos incontrolados de nivelar tudo por baixo; de rotular tudo apressada e rasteiramente – como se nada tivesse nuances; de julgar no primeiro ímpeto; a raiva como argumentação para ideias sem lastro… assim vejo se comportarem muitos doutores que, apesar de seus PhDs, infelizmente faltaram às aulas de civilidade, respeito e honestidade intelectual. Como tem gente por aí espalhando notícia falsa ou deturpada por interesses subterrâneos! Mesmo que cotidianas, essas atitudes ainda me espantam e sempre espantarão, embora as palavras de Hannah Arendt (no seu “As Origens do Totalitarismo”) as coloquem em perspectiva: “Num mundo incompreensível e sempre em mutação, as massas chegariam a um ponto em que, ao mesmo tempo, acreditariam em tudo e nada, pensariam que tudo seria possível e nada seria verdade”. Chegamos: é tanto absurdo verdadeiro que a falsidade soa real. E há tanta gente propensa a acreditar em qualquer coisa quanto há pessoas dispostas a se aproveitar disso a favor de sua agenda particular. Como exemplo, citarei duas postagens tresloucadas que vi recentemente – uma à esquerda, outra à direita.
No tumulto ocorrido no retorno das atividades da ALERJ, queimaram um ônibus na Av. Rio Branco. Um “luminar” da esquerda publicou o seguinte: “Eis aí o incêndio causado por uma bomba de efeito moral que a PM jogou nos manifestantes pacíficos.” Só quem não sabe que bomba de efeito moral jamais causaria um incêndio é que talvez imagine que a PM jogue bombas por esporte. No extremo oposto, na mesma época, um “expoente” da direita decretou: “A globalização é um plano dos comunistas (União Europeia e China) pra acabar com o dólar e dominar o mundo.” Ora, ora… quantas pessoas seriam capazes de misturar tanto alho e bugalho juntando UE com China, defesa do dólar, globalização e comunismo de uma forma tão rasa? Observem que não pretendo restringir nem invalidar nenhum debate sobre direito à manifestação, nem sobre a globalização ser boa ou não: o que critico aqui são a pobreza e a infantilidade e/ou o sensacionalismo e o alarmismo dos comentários. Só estupidez ou mau caratismo os justificariam – ou justificariam o surpreende número de curtidas e comentários raivosos que ambas as postagens receberam em anuência. Espanta que haja muita gente disposta a acreditar.
Eu nunca soube de nenhuma ficção científica em que houvesse uma vacina contra a estupidez ou o mau caratismo… Precisam criar uma estória dessas: quem sabe não inspira algum pesquisador por aí? Imagino se um dia o mundo conseguirá se livrar disso tanto quanto da miséria (material e intelectual). Joubert, o pensador francês cuja única obra foi publicada postumamente no começo do séc. XIX, nem se tivesse podido ler Júlio Verne (morreu antes) imaginaria a atualidade de seu pensamento 200 anos depois ou o tanto de paroxismo que a modernidade lhe emprestaria – ou seria melhor dizer: liquidamente lhe emplastaria? Até mesmo na argumentação política, hoje em dia se busca mais vitória que progresso – mas se obtém o resultado inverso: repulsa ao invés de aproximação; separação ao invés de convergência; retrocesso ao invés de avanço. Para cada mentira inventada ou replicada, a Humanidade dá um passo para trás.
Não há ganho na insistência em reduzir o debate de temas tão fundamentalmente importantes para o Brasil (e o mundo) a uma birrinha de crianças mal criadas num ringue de areia (movediça) no parquinho da internet. Sugiro que troquem a guerra de desinformação por uma de travesseiros – vai ser mais divertido, garanto! Pelo menos será mais edificante – é que as coisas, do jeito que estão, só fazem corar a Tico e Teco. Quem inadvertidamente espalha absurdos merece ser desculpado, mas precisa sobretudo ser instado a desenvolver melhor seu pensamento para deixar de ser tão bobo. Quanto a quem o faz de propósito, aí vai de cada interlocutor decidir se ignora ou se expõe e contesta o comentário malicioso com argumentação digna do nome. Já aviso que altas doses de altruísmo são necessárias porque, na maioria das vezes, essas pessoas não estão preocupadas com os fatos nem com a lógica: ou estão mais a fim de tumultuar o processo ou querem mesmo é ganhar pontos junto aos outros membros de sua facção radical – mesmo que só ecoem Umberto… Umberto… Umberto… E um Umberto é um Umberto é um Umberto…, né Gertrude? (Notem que citei o nome Umberto 6 vezes: se fosse um político na Lava Jato, poder-se-ia afirmar que temos aí seis diferentes delitos?)
Para lhes poupar a paciência, encerro – mas com outra reflexão de Joubert: “Podemos convencer os outros com as nossas razões, mas só os persuadimos com as razões deles.” Assim se estabelece o debate lúcido e se possibilita o convencimento. Será que o tele-transporte virá antes do entendimento?

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