Por Aluysio Abreu Barbosa
O maior problema de se escrever por duas semanas sobre um tema pré-determinado é fazê-lo numa cidade, num Estado, num país e mundo onde os fatos relevantes se atropelam em sucessão tão espantosa. Como escrever um texto de opinião para este domingo sem falar da guerra civil na Síria, tomando proporções geopolíticas cada vez mais preocupantes? Ou sem citar a utilização inédita pelos EUA (aqui), sobre o Afeganistão, da mais poderosa bomba não nuclear do seu vasto arsenal, capaz, como o da Rússia, de varrer a espécie humana da Terra algumas vezes? Aliás, bastaria mais de uma?
Em termos locais, nem por isso menos destrutivos, como escrever para hoje sem falar sobre a “delação do fim do mundo”, feita por 77 executivos da Odebrecht, a eviscerar a podridão da prática política brasileira desde os tempos da Ditadura Militar (1964/85)? Para quem não é caso clínico da teoria freudiana da negação, saber que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) recebia da construtora para agir em seu favor desde os tempos de sindicalista do ABC paulista, ainda nos anos 1970, causa menos espanto do que constatar que não escapou nem o ex-governador Leonel de Moura Brizola (1922/2004), outro figura emblemática da esquerda brasileira e cuja probidade sempre pareceu inquestionável, com a revelação de que o Sambóbromo e os Cieps não foram erguidos como exceções à promiscuidade nada republicana entre poder público e empreiteiras.
De fato, nem o atual presidente Michel Temer (PMDB), nem nenhum dos seus antecessores vivos — Dilma Rousseff (PT), Lula, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Fernando Collor de Mello (PTC) e, lógico, José Sarney (PMDB) — ficaram de fora. E, como a Folha indicava (aqui) desde 29 de maio de 2009, quando a coluna “Ponto Final” antecipou em quase quatro meses a licitação do “Morar Feliz” vencida pela Odebrecht, no valor total de quase R$ 1 bilhão, maior contrato dos 182 anos de história de Campos, os ex-prefeitos Rosinha e Anthony Garotinho (PR) também foram alvos da delação. Em troca, receberam (aqui) repasses às campanhas dela a prefeita em 2008 e 2012, e dele, a governador, em 2014, segundo Benedicto Barbosa da Silva Júnior e Leandro Andrade de Azevedo denunciaram a Lava Jato. Ironicamente, foram os mesmos dois executivos da Odebrecht que assinaram (aqui) com Rosinha o primeiro contrato do “Morar Feliz” — com a Folha também noticiou com exclusividade, em 03 de abril de 2016.
Mas o assunto que determinou a primeira rodada temática de duas semanas dos colaboradores do blog “Opiniões”, com a qual os dois últimos artigos (aqui e aqui) deste espaço dominical também dialogaram, foram os 100 primeiros dias do governo municipal Rafael Diniz, do PPS — cujo presidente nacional, o ministro Roberto Freire, decepcionou muita gente ao aparecer na “delação do fim do mundo”. Os 100 dias de Rafael se completaram na segunda-feira, dia 10. Foi quando o tradutor Marcelo Amoy abriu (aqui) a última semana de análise do tema coletivo. Uma semana em que o tom da cobrança de alguns colaboradores parece ter subido, em relação à semana anterior.
Ao falar das “demandas reprimidas” do campista, Marcelo ressalvou: “Esperamos que o governo Diniz as atenda, mas ficamos impacientes que ainda não pareça que tudo já começou a deslanchar. Sei que há necessidades urgentíssimas, que não podiam esperar nem um dia, quanto mais cem ou mais, mas… até que ponto estamos cobrando o impossível dado o ‘pouco’ tempo até agora transcorrido? Por outro lado: você tem certeza que não dá pro governo acelerar um pouco o ritmo e demonstrar que já sabe o que pode e vai fazer – e de que forma?”.
Na terça (11), o jornalista e poeta Ocinei Trindade começou falando (aqui) das suas impressões pessoais a partir de um encontro com Rafael em Atafona, para depois passear pelas interpretações da astrologia, numerologia e tarô sobre a data de nascimento do prefeito, nas mesmas data e mês do líder cubano Fidel Castro (1926/2016), não sem antes advertir: “Nas redes sociais vemos uma ciberinquisição, e pelas ruas, uma neo-inquisição surgindo. Descontentes a fim de desconstruir, de algum jeito, a imagem do novo governo. Nas mídias digitais são frequentes”.
O jornalista e servidor federal Ricardo André Vasconcelos, que foi secretário municipal de Comunicação nos governos Garotinho (1989/92) e Sérgio Mendes (1993/96), usou a quarta (12) para questionar (aqui) os rumos da nova administração municipal entre a “ruptura” e a “velha política”. E avaliou criticamente o canal de interlocução entre governo e cidadão: “alguém tem que dialogar com a sociedade que comprou a ideia de um ‘governo diferente’ (…) o prefeito deveria (…) manter atualizado o discurso da diferença, enquanto sua equipe elabora o que será diferente na prática (…) Se a demanda reprimida não pode ser atendida, é preciso que se leve ao conhecimento da população os motivos, as dificuldades e as soluções viáveis. É preciso reconectar o cidadão que cobra soluções ao eleitor que apostou na mudança”.
Fora de Campos há 10 anos, a antropóloga e poeta Manuela usou da crônica, na quinta (13), para lembrar (aqui) seu passado comum com o prefeito, nos tempos de ambos estudantes do Auxiliadora, quando ela já podia observar a capacidade de liderança de Rafael. Ao saudar a presença da atriz Lúcia Talabi e da socióloga Sana Gimenes na equipe de governo, Manuela apostou numa lembrança comum: “Passados os primeiros cem dias e com a sensação de mudança não tão latente, mesmo para alguns de seus próprios eleitores, permanece a confiança na competência do atual prefeito e de todo seu grupo. Particularmente para mim, ainda ecoa a continuidade do hino da escola, pertinente, para a atualidade dos caminhos de Rafael: ‘Queremos ser promessa no futuro/ Luz no escuro, solução!’”.
Na sexta (14), talvez tenham se dado (aqui) os questionamentos mais duros, entre os colaboradores do blog, aos 100 dias do novo governo de Campos. Apesar das críticas severas quanto ao “desGoverno” rosáceo e de se assumir eleitor de Rafael, o professor e comunicador visual Sérgio Provisano foi enfático: “Chega do ‘blá-blá-blá de paciência’, de que herdamos uma cidade falida, sem orçamento e coisa e tal. Disso todos sabíamos, não era nenhuma novidade tanto que decidimos mudar tudo e mudamos no primeiro turno das eleições”. Antes de fazer críticas diretas ao Transporte Público, Educação e Saúde, ele afirmou: “não observei, até o presente momento, mudanças significativas em relação ao governo anterior, os serviços públicos continuam com sérios problemas estruturais”.
Por fim, ontem, no sábado (15), foi a vez da cientista social Vanessa Henriques usar seu espaço para fazer (aqui) um balanço não dos 100 dias governo Rafael, mas especificamente da secretaria de Desenvolvimento Humano e Social, capitaneada pela mesma Sana Gimenes saudada por Manuela. Integrante da secretaria, Vanessa resumiu: “como foi apontado por muitos dos colaboradores deste blog, este primeiro momento está sendo marcado pela análise da situação encontrada e pela reorganização e reestruturação dos serviços prestados à população campista (…) Transformar este cenário será uma tarefa hercúlea (…) Os profissionais que trabalham na ponta, que muitas vezes sentem-se incapacitados diante da grandeza da missão, (…) são verdadeiros heróis que, a cada atendimento prestado aos munícipes, dão um passo na direção da reconstrução da nossa cidade”.
Comparadas todas as análises sobre os 100 dias do novo governo de Campos, não só da última semana, como da anterior, percebe-se que a “tarefa hercúlea” não se atém a quem vê o governo de dentro. Mais difícil ainda pode ser tirar uma conclusão de tudo que foi dito. A defesa da manutenção da assistência das “13 mil famílias que recebem o Cheque Cidadão e cerca de 30 mil famílias que recebem o Bolsa Família”, contabilizadas pela Vanessa, se choca, por exemplo, com a advertência do Marcelo: “O velho assistencialismo da mão estendida e dos favores a retribuir tem que morrer nesta cidade (…) Acreditem: dinheiro não cai do céu. Juro!”.
Da mesma maneira, quando o jornalista e poeta Fernando Leite abriu (aqui) a rodada temática de análises, no último dia 3, pregou: “Querem alguns que o prefeito repita o modus operandi do adversário vencido, que expunha as vísceras dos seus inimigos, ao sol, na praça central da cidade. Tolos! (…) O prefeito venceu esse modelo próprio dos carniceiros. Repetir o contendor tombado seria o maior de todos os equívocos”. E a fala é diametralmente oposta à cobrança feita, nove dias depois, pelo Ricardo André, antes da notícia (aqui) das CPIs das Rosas e da Lava Jato na Câmara de Campos: “É preciso que se conheça o que foi apurado nas auditorias e trazer à luz os malfeitos de um governo que foi escorraçado nas urnas justamente porque sobre ele pairavam todas as suspeitas. E, se nada vem à tona, anistiam-se todos os dias um governo que acabou em caso de polícia”. Como Fernando e Ricardo, depois convertidos em desafetos, estavam na gênese do garotismo, nota-se que a discordância de método não é de hoje.
Num país em que 200,4 milhões de pessoas se convertem em técnicos de futebol, no ufanismo cometa que nos visita de quatro em quatro anos, a cada Copa de Mundo de futebol, tão importante quanto ouvir, é saber fazê-lo criticamente. Na ágora ateniense, berço da democracia, o filósofo grego Aristóteles (384/322 a.C.) ressalvou que o limite daquele então revolucionário sistema de governo deveria ser: “kêryx mè stentóreios” (“um orador sem megafone”). Abraçada a premissa clássica, a Folha e o “Opiniões” se orgulham, independente da concordância, por se prestarem à função do eco.
Publicado hoje (16) na Folha da Manhã