Vanessa Henriques — Afinal, o que é femicídio?
Novembro de dois mil e dezesseis. Celsiane Queiroz do Amaral, trinta anos, foi estrangulada em Chapéu do Sol, São João da Barra, pelo namorado que já acumulava um histórico de agressões à vítima. Somente na semana passada o autor do crime revelou o local onde havia enterrado o corpo, dez meses depois de ter cometido o assassinato. O namorado afirmou que matou Celsiane devido a “provocações injustas” que ela teria dirigido a ele durante uma relação sexual. Segundo a irmã da vítima, Celsiane costumeiramente apanhava do namorado na frente dos filhos.
Nove de março de dois mil e dezessete. Mônica Gomes Rangel, de vinte e nove anos, foi morta (aqui) com um tiro de espingarda calibre 12 na frente da filha de treze anos, no distrito de Vila Nova, em Campos. O autor do crime foi o ex-marido de Mônica, de quem ela havia se separado pouco tempo antes da tragédia. O assassino confesso justificou o crime alegando ter descoberto um “vídeo íntimo” da esposa.
Doze de setembro de dois mil e dezessete. Dandara Ramos, vinte e um anos, foi morta com dois tiros na cabeça por um homem com quem se relacionava há seis meses, em Conceição de Macabu. O autor do crime confessou sua autoria à polícia e revelou o local no qual havia ocultado o corpo da vítima. Disse que matou Dandara porque ela contou que estava esperando um filho dele. Para ele, a gravidez poderia atrapalhar os planos que tinha para sua vida, dentre eles o de iniciar um relacionamento com outra mulher.
Esses foram três casos de assassinatos de mulheres que aconteceram na região nos últimos tempos. Escolho elencar apenas três de uma longa lista deles. O que os três crimes possuem em comum? São qualificados como feminicídios.
No Brasil, a Lei nº 13.104/2015 alterou o artigo 121 do Código Penal para incluir o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, aumentando a pena do crime e impedindo o pagamento de fiança. Tal alteração segue a recomendação de organização internacionais, como o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW), da Organização das Nações Unidas.
Sendo assim, no Código Penal brasileiro, o crime de feminicídio está classificado como um crime hediondo, tipificado nos seguintes termos: é o assassinato de uma mulher cometido por razões da condição de sexo feminino, quando o crime envolve violência doméstica e familiar e/ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher. O feminicídio, então, seria uma forma de violência originada pela desigualdade de poder de que desfrutam mulheres e meninas nas diferentes esferas sociais.
Desta forma, nem toda morte de mulher configura-se necessariamente como feminicídio. A maior parte dos feminicídios acontece no âmbito doméstico e é levado a cabo por parceiros ou ex-parceiros da vítima. Frequentemente os crimes são marcados por requintes de crueldade, como mutilação dos seios ou da área genital, partes do corpo fortemente vinculadas ao feminino, dilacerações do rosto da vítima, além de violência sexual.
O famoso caso da menina Eloá, cujo sequestro pelo ex-namorado Lindemberg culminou em seu assassinato no dia dezessete de outubro de dois mil e oito, é exemplo de um feminicídio em que a vítima recebeu um tiro no rosto e outro na virilha, além de ter apanhado diversas vezes enquanto permaneceu no cárcere. O caso que foi massivamente publicizado pelos meios de comunicação na época (com direito à apresentadora Sônia Abrão transmitindo ao vivo uma ligação para o sequestrador), pode demonstrar algumas características típicas do crime de feminicídio: Lindemberg era um rapaz de vinte e dois anos que não aceitava o término do namoro, tal como outras centenas de milhares de rapazes e homens que veem suas parceiras como sua propriedade, negando a elas o direito de determinarem os rumos de suas próprias existências. “Se ela não for minha, não vai ser de mais ninguém” é frase que não raramente ouvimos desses homens que decidem por fim à vida das mulheres com as quais se relacionaram.
É comum que os meios de comunicação classifiquem este tipo de crime como “passional”, fruto de um lapso momentâneo em que o autor da agressão perde o controle racional sobre as próprias ações e acaba cometendo o assassinato. No entanto, especialistas no tema alertam para o fato de o feminicídio ser o ponto culminante de um processo contínuo de violência já vivenciado pelas vítimas. Antes de serem mortas, essas mulheres já sofriam outros tipos de violência machista de seus companheiros, tais como violências psicológicas e físicas. Essas violências vão desde o controle do corpo dessa mulher, seja através da supervisão de suas vestimentas, do seu direito de ir e vir e de seus direitos reprodutivos e sexuais, até violências físicas que deixam marcas visíveis em seus corpos.
Os feminicídios são entendidos como verdadeiros crimes de ódio e não como “casos isolados”, cometidos por “monstros”, “animais”, doentes mentais” ou qualquer outro nome que frequentemente é atribuído aos homens perpetradores desses crimes. Os “feminicidas” são homens “comuns”, socializados numa cultura machista, que propicia a esses indivíduos a noção de que são senhores da vida dessas mulheres. Não raras vezes os feminicídios acontecem quando a mulher decide se separar, quando existe a possibilidade real ou imaginada de traição (o que fere a noção de “honra” dos autores do crime), quando a mulher engravida e não aceita abortar (e muitas vezes, nesses casos, o autor do crime entende que essa gravidez é uma agressão a ele, culpa exclusivamente da mulher que “não se cuidou”, que quer “arruinar” a vida dele), dentre outros fatores que corriqueiramente acontecem durante relacionamentos.
Para evitar que esses crimes continuem a acontecer em grande escala como é o caso do que acontece no Brasil – país com o quinto maior índice de feminicídio do mundo – é preciso não somente que exista uma potente e articulada rede de enfrentamento à violência contra a mulher, intento que deve conjugar esforços dos três poderes, no âmbito municipal, estadual e federal, como também é preciso investir em ações de educação e reeducação a respeito de temas como gênero, igualdade, diversidade e direitos humanos. Desta forma, poderemos combater noções e valores discriminatórios contra as mulheres que nos são ensinados desde a infância, reproduzidos de geração a geração, e que são, ao fim e ao cabo, a raiz ideológica desses crimes que atentam contra a vida das mulheres.