Poucos dias após a morte de meu avô, a vovó chamou-me ao canto. Não demonstrava sinais de abalo, pelo contrário: diria agora mais lívida, em um respirar folgado após os meses de luta do marido contra o câncer de próstata. E me disse em uma confissão levemente envergonhada:
— Seu avô nunca me amou.
De imediato não captei sentido dela dizer um despautério desses. Vovô fazia de tudo para agradá-la. Jamais a deixou na mão nem por um instante. Por que agora dizia algo assim?
— Ele amou outra mulher. Uma certa Jurema. Namoraram na juventude, mas o pai dela a obrigou a casar com outro. Seu avô se conformou comigo, mas no fundo jamais deixou de amá-la.
Toda a dedicação de vovô, então, nascia não do amor, mas do sentimento de culpa. Por isso ele se levantava cedo para colocar o pão na mesa e sempre a abordava com um sorriso nos lábios, pelo seu incômodo consigo mesmo por trazer no peito a lembrança constante daquela com quem primeiramente pretendeu casar.
Pareceu-me algo um tanto quanto perturbador saber disso, e, mais ainda, a única pessoa a quem ela contou isso fui eu, em um estranho voto de confiança para quebrar em mim toda a crença na beleza da estrutura familiar. Como olhar os almoços de domingo sem mais imaginar o clima de amor e companheirismo antes reinante?
Vovó então, levando mais além essa revelação de segredos do passado, mostrou-me uma carta antiga, de papel bem amarelado, onde em letras apagadas os dois jovens amantes impunham os termos de sua paixão por toda vida. Infelizmente não se poderia ler o final, de tão apagada estava.
Duas semanas depois recebi uma ligação de uma moça chamada Ana Maria. Parecia aturdida e desejava encontrar com alguém da família de meu avô. Afirmava tratar de algo referente a ele e que preferia falar comigo, contanto que distante da minha avó.
Concordei em reunir-me com ela em uma lanchonete em local público, temendo cair em algum tipo de armadilha. Ela chegou e sentou na minha mesa, como se houvesse entre nós dois alguma intimidade. Não tirou os óculos escuros, como se escondesse marcas de choro.
Contou-me sobre as últimas vontades de sua vó, falecida há duas semanas. Disse que relembrou de uma aventura da juventude, e pediu que suas palavras de amor chegassem a seu antigo amante, em uma transmutação derradeira de sentimentos. E, ao procurar saber, se assustou ao descobrir o óbito de meu avô pouco antes.
Lamentei pelo ocorrido, contei a versão de minha avó acerca dos fatos e disse não entender o porquê dela querer abordar tal assunto. Tratava-se de um caso de amor pretérito, algo enterrado nas suas sepulturas, que não precisava vir à tona.
Eis então que ela sacou uma carta, a mesma carta que eu possuía, a cópia de sua avó, bem mais conservada. Consegui ler até o fim e me espantei e compreendi a expressão desgastada de Ana Maria: os últimos termos daquele documento firmavam um pacto de morte juramentado por ambos há mais de cinquenta anos. Prometeram um ao outro morrerem juntos e, da forma mais absurda e funesta, cumpriram com suas palavras.
Jamais compreendi ao certo como aquilo poderia acontecer, nem nunca comentei com mais ninguém minha descoberta. E, portador de um segredo inexplicável, me perdi em pensamentos, imaginando a união desse casal apaixonado no mundo dos mortos.