Guiomar Valdez — Brasil entre o freio civilizatório e a esperança

 

 

 

Nesta era ‘acelerada’, de vínculos frágeis, de ‘just in time’, de unidades fragmentadas, etc, etc, oriunda do ‘jeito de ser e de estar’ das demandas do sistema produtivo do capital e sua necessidade de auto sobrevivência, não está sendo fácil de viver na ‘compressão espaço/tempo’. Como consequência, é visível nas sociedades, a angústia, a ansiedade, o desânimo, a histeria, dominando nossas mentes e corações, bloqueando nossa capacidade de refletir e de agir de maneira mais ampliada, profunda e articulada. Atingindo elementos fundantes da natureza humana, como, por exemplo, a capacidade de desenvolver a razão crítica e a necessidade ontológica de se relacionar, de se integrar, de desenvolver o afeto, a liberdade, o respeito, o crescimento em conjunto. Porque é ‘do humano’, ser único, ser uma unidade na diversidade.

Daí, vivenciarmos uma era que me parece ‘anti-humanista’, portanto, um estado de barbárie, de torpeza, de estupidez e de aberração à vida e unidade humanas. Esse ‘fio condutor’ presente na interpretação das relações humanas nos faz concluir, mesmo que provisoriamente, que a saída para esse quadro, consciente, ou não, tem sido a competição e o individualismo exacerbados como premissa e ação, desdobrando-se na também exacerbação do fundamentalismo, da intolerância, da polaridade, do desrespeito ao que é humano e de suas relações. Paz, solidariedade, bem-comum, bem-querer, respeito, verdade, etc, passam a ser vividos apenas como retórica.

É um ‘freio civilizatório’, é um ‘brake nas utopias e esperanças’. É a vitória do conformismo, do enquadramento, do ‘salve-se quem puder’, para que se realize a perpetuação do sistema capital como ‘ordem e progresso’ na vida societária. Na verdade, não só a ‘história acabou’, como também, ‘a história nunca existiu’, é o ‘presente contínuo’ que vale, não há passado nem futuro. Há o ser humano sufocado e inerte, uma mercadoria à deriva.

Entretanto, e, muito, entretanto, o ‘freio civilizatório’ que passamos não é natural. Ele é histórico, é movimento, é movimento contraditório em suas faces. Essa tem sido uma das grandes dificuldades que temos hoje – enfrentar respeitosamente a dialética em nossas vidas! Chegamos ao fim, pensamos assim. Buscamos argumentos muitas vezes fundamentalistas para desesperadamente termos respostas. Mergulhamos numa insanidade social, numa culpa sem sentido, respondendo de forma messiânica os desafios colocados.

É neste contexto, ou ‘pano de fundo’ que percebo o meu país. Reconheço que os tempos estão sombrios. Parece que desmoronou tudo ou quase tudo no ‘universo brasileiro’ em todas as suas dimensões. Parece que a nossa História perdeu sentido como caminho hermenêutico. Inundamos nosso trajeto de correria, de pressa por respostas e proposições. Parece que não há espaço para o desenvolvimento de uma razão crítica, portanto, não passional; que não há espaço para o contraditório, para a autocrítica, para (re)construção de laços marcados pela lealdade, capazes de formular um projeto de nação. Reconheço que mergulhamos bem fundo nos elementos do ‘freio civilizatório’.

Como vivemos num ‘presente contínuo’, esquecemos completamente que em 517 anos predominaram o arbítrio, o clientelismo, o paternalismo, o patrimonialismo, a mão-de-obra escrava, a cultura exógena/subalterna, a economia dependente primário/exportadora. Pensando em democracia, tivemos um ‘ensaio geral’ de 19 anos (1945-1964), intermediado por 21 anos de Ditadura Civil-Militar, para retomarmos a vivência deste ‘modo de vida’ e seus símbolos, que não chegaram ainda aos 30 anos: 29 anos da Constituição Cidadã (1988), 28 anos da 1ª eleição direta à presidência da República (1989)! Assimilando, na nova síntese histórica, elementos conservadores ou reacionários, vivenciados e acordados na ‘transição lenta e gradual’. Esquecemos que nos 517 anos sempre tivemos um lugar periférico no sistema/mundo!

Pensamos o quê? Que vivíamos numa democracia plena e longeva? Que a corrupção terminaria por si só, ou com as leis? Ou que não seria tão grande? Que os conquistados direitos do trabalho, direitos sociais e direitos humanos, estariam seguros? E que por tudo isso, diante desta profunda e ampliada crise estrutural, a ditadura seria melhor? Ou que só temos o ‘caminho único’ para solucionar nossos problemas?

Pensamos o quê? Que éramos uma economia urbano/industrial autônoma? Que atingimos a equidade na distribuição da riqueza, da terra, do fruto do trabalho? Que construímos, diante da nossa diversidade, uma cultura em síntese? Que reconhecemos a diferença como elemento fundante da unidade? Que o trabalho foi valorizado como a atividade humanizadora? Que teríamos ultrapassado o tripalium? Que, se tudo isso fosse verdadeiro, teríamos extirpado a intolerância, o preconceito e a discriminação?

Poderia continuar fazendo perguntas simples, como essas. Mas não precisa. Elas nos ajudam a reafirmar que o ‘freio civilizatório’ é construção em todas as suas facetas, não é destino, nem o fim. Ele é ‘projeto de classe’ desnudado, que aliena e impõe o medo, o desespero e o conformismo, porque ainda não foi construído uma alternativa visível e robusta para combatê-lo. Vivemos em tempos de ‘interregno’. Por isso está valendo tudo, até o inimaginável!

Um exemplo desta ‘crise de alternativa’ de caráter civilizatório, são as eleições de 2018! Para o campo conservador e reacionário, está tudo compreendido, pensado a curto, médio e longo prazos. Eles vão à luta buscando sua consolidação. Para o campo progressista, infelizmente só pensado a ‘curto prazo’ (bem ao gosto hegemônico), apresenta-se o ‘caminho único’, sem autocrítica, sem generosidade, sem projeto de nação. O ‘presidencialismo de coalisão’ e a enganosa e frágil ‘conciliação de classes’ já se apresentam superados, tiveram seu sentido histórico ao chegar ao poder, mesmo considerando todas as críticas e devaneios.

Devemos enfrentar esta realidade, não fugir dela. Não buscar argumentos que acalentam mais o coração individualizado, do que a esperança de construção de um projeto de nação que busque o bem-comum. Não devemos aprisionar o ‘tempo’ e seu fardo, nem mesmo a História, ao nosso desejo. Não ao ‘messianismo’, não ao ‘populismo’, não ao ‘presente contínuo’, não à alienação tão desejada pelos conservadores e reacionários como elemento forte de continuidade!

Daí que precisamos retomar com altivez e esperança equilibrista, de onde partimos, nas origens da extinta Nova República, tão cheia de sonhos e de viabilidade para nosso país. Mas, também, encharcadas do ‘velho travestido de novo’, de perpetuidades, que bloquearam e podaram o amadurecimento das forças progressistas. Por isso o final dessa etapa histórica, é melancólico. Mas não é o fim da História.

Para esta retomada exige-se tempo, não o tempo acelerado, promíscuo e de vínculos frágeis. No período de ‘interregno’ é fundamental aprendermos e exercitarmos a dialética enquanto possibilidade interpretativa de formulações, de mudanças e de novas sínteses. O ‘freio civilizatório’ e o que vier das eleições de 2018 não deverão congelar ou abalar a nossa esperança. Pelo contrário, muitas vezes, quando há um brake, perdemos a estabilidade, encontramos obstáculos, rodopiamos, mas podemos, dependendo do condottiere coletivo, voltar à estrada rumo a um ‘destino’ construído por homens e mulheres generosos, solidários, pacientes, tolerantes e sem preconceitos!

 

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