Inspirada e instigada pelos recentes artigos neste blog de Vanessa Henriques (“Afinal, o que é feminicídio?”) e de Carol Poesia (“Foto bebendo de perna aberta”), venho contribuir no tempero das questões que envolvem a MULHER e o FEMININO, neste mundo HUMANO, incorporando uma ‘pimenta’, que para muitos ainda é ‘forte’, para outros, é ‘apenas de cheiro’, e, para tantos demais, ‘não é palatável’ – a superação do sistema capital, como condição estrutural da emancipação da Mulher e da dimensão do Feminino.
Minha reflexão está impulsionada por este Outubro/2017, que é Rosa – campanha sobre o câncer de mama, mas, também, é Vermelho – 100 anos da vitória da Revolução Russa! Não consegui desvencilhar, os dramas, as barbaridades e a opressão que sofrem as Mulheres e a dimensão Feminina, muito bem exemplificadas pelas companheiras no blog, com a utopia e com a caminhada para superação, deixadas como herança pelas Mulheres revolucionárias de 1917. Isso mesmo! Adiante voltaremos a este assunto.
Olhando a realidade da luta das Mulheres por Direitos, sem nenhum romantismo, concluo que avançamos, sim! Não há como negar. Mas, velhos e novos limites continuam neste movimento, nos espaços públicos e privados, na imanência e no espírito! No balanço, rupturas não aconteceram, e, elas, são imprescindíveis para a emancipação! Não me contento com o que conquistamos, não me deslumbro com discursos, com leis, com projetos específicos, com esta presença feminina nos espaços de poder/institucionais, etc!
No final, estamos reproduzindo muito mais, e, preocupante, de maneira fragmentada, de maneira excludente. Isso porque lá no fundo, não propomos e nem vivenciamos para dentro e para fora, uma nova Cultura, entendida aqui, como visão de mundo! Historicamente o patriarcado predominou sobre o matriarcado (sinceramente, não sou afeita a nenhum desses ‘arcados’), ambos, promovendo a divisão social do trabalho em gênero, em sociedades desiguais e de classe. O patriarcalismo na sociedade moderna (capitalista, burguesa), muitos pensam que este foi extinto, alça o machismo como sua face mais destruidora e permanente até os dias atuais.
A ‘Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade’, elementos da cultura política, econômica e social da nossa Sociedade Moderna, não chegaram às mulheres de maneira plena. Fomos incorporadas formalmente ao sistema produtivo, sim. Mas de maneira desigual, inferior, hierarquizada, discriminatória e preconceituosa. Atualizando a opressão com um novo diferencial – ACUMULANDO O TRABALHO PRODUTIVO COM O TRABALHO REPRODUTIVO, a centralidade do trabalho das Mulheres nesta ordem moderna, torna-se imprescindível, perfeito, para a reprodução social, econômica e cultural do status quo.
E, assim, se dará em todos os outros espaços sociais, da ‘nova’ família (tipo burguesa – que será o ‘símbolo’, o ‘sonho’ dos oprimidos) aos espaços de poder; dos ‘novos tipos de família’, com forte domínio e direção das Mulheres às questões que envolvem ‘minorias’, etnias, raça, sexualidade, gênero, através da alienação total das razões estruturais que alimentam a opressão, às vezes, entendida e ressignificada como conquistas no âmbito da Liberdade e da Igualdade.
Nossas conquistas foram e são mergulhadas de machismos, de exclusão, de competição, portanto, dos valores hegemônicos da sociedade em que vivemos, incrivelmente, razão das nossas dores. Muitas de nós, reproduzimos nos espaços públicos e privados o machismo, a desigualdade, a cultura da dimensão masculina, no pior que construiu historicamente. Ouso afirmar, que nos espaços organizados de poder/institucionais denominados ‘progressistas’, tidos como de lutas por direitos, de conquistas, de transformação, etc, etc, como os partidos políticos e sindicatos, predominam ainda o machismo, o preconceito e os valores hegemônicos. Quantas situações já vi, já assisti…quantos discursos de homens a favor das Mulheres, já ouvi, como vi a dualidade de vida e ação em suas vidas privadas!
Imagina, somar a isso, toda a dor presente da opressão, repressão e violência, para além dos espaços formais de lutas por Direitos? Nas relações mais íntimas, mais particulares, estampadas e publicizadas pelos meios de comunicação? Opressão, repressão e violência, vividas cotidianamente física ou psicologicamente, como apresentados nos artigos de Vanessa e Carol?
Nós, Mulheres, lutamos muito no âmbito privado e público, é bem verdade. Lutamos como mães, esposas, irmãs, avós, trabalhadoras, desafiamos estruturas autoritárias, demos abrigos, pegamos em armas. Foram incontáveis nossas formas de resistências. Mas, ainda não é suficiente. Morrer do machismo/feminicídio, uma, duas, dez, milhares de vezes ainda não é suficiente! Ainda não se tornou verdadeiramente uma ação intolerante pela sociedade, mesmo sendo hediondo, enquanto crime. Ao saber que, por exemplo, o feminicídio pode ser evitado, revela para mim a conivência social e institucional, de homens e mulheres; garantir Direitos, quando o Estado falha em defender a Vida, para onde vamos?
É preciso lembrar sempre: NÃO É A VIOLÊNCIA QUE CRIA A CULTURA, MAS É A CULTURA QUE DEFINE O QUE É VIOLÊNCIA. De acordo com Luiza Bairros, ‘ela (cultura) é que vai aceitar violências em maior ou menor grau, a depender do ponto em que estejamos enquanto sociedade humana, do ponto de compreensão do que seja a prática violenta ou não’.
Falta ‘algo mais’ em nossas lutas e conteúdos da vitória! NÃO É SUFICIENTE o que já fizemos! Para início de conversa, ouso sugerir alguns pontos:
CONHECER a História e RECONHECER os limites, as idas e vindas; ATENTAR para as permanências do machismo e da opressão em nossos espaços públicos e privados de atuação, incluindo aí, a família; realizar uma CATARSE em nossa visão de mundo, contaminada pelos valores hegemônicos da pós-modernidade (burgueses), expulsando na prática o individualismo exacerbado, a competição, a fragmentação, a atomização, os fundamentalismos, a fluidez, a mercantilização da Vida e da Morte, etc
ALIMENTAR e VIVENCIAR os elementos e a ética da dimensão humana do FEMININO – cuidado, unidade, solidariedade, articulação, coesão, etc; RECONHECER que na luta da Mulher é imprescindível o Homem – é conjunto, não apartado. Não podemos recriar uma nova forma de dualidade, ela reproduzirá os horrores da opressão, da repressão e da violência. É de uma nova MULHER e de um novo HOMEM, que forjaremos uma nova HUMANIDADE.
Daí que retomo ao ‘Outubro Vermelho’- 100 anos da vitória da Revolução Russa. Lições, atuações, conquistas e experiências das Mulheres revolucionárias da Rússia de 1917, não apenas porque foi a partir da ação das Mulheres operárias que precipitou este movimento, mas, muito mais, pelo vigor, profundidade e amplitude de suas formulações e militância, bem como, as utopias, muitas das vezes invisíveis, para nós, Mulheres!
Com a licença dos leitores, reproduzo aqui, um trecho do livro – “A revolução das mulheres – emancipação feminina na Rússia soviética: artigos, atas, panfletos, ensaio”, uma antologia, organizada por Graziela Schneider Urso (Boitempo/2017), que qualifica o quanto precisamos revisitar a História, articulando o passado e o presente:
“Aleksandra Kollontai, Maria Pokróvskaia e Nadiéjda Krúpskaia, entre outras, reorientaram os eixos da revolução iniciando um profundo e complexo processo de emancipação feminina. É possível acompanhá-lo por meio da leitura de uma produção intelectual e política pouco conhecida não só pelas circunstâncias desfavoráveis em que foi produzida, mas pelas suas consequências e prolongamentos na contemporaneidade: mostrar que no início do século XX as russo-soviéticas alcançaram direitos que ainda nos parecem impossíveis representa uma ameaça à ordem vigente. Quais estruturas de pensamento e ação se moveriam se fosse amplamente divulgado que o aborto foi legalizado na União Soviética em 1920? Ou que o programa do Partido Comunista Revolucionário garantiu igualdade de cargos e salários entre homens e mulheres?
Foram mulheres como Krúpskaia – infelizmente, mais conhecida por ter sido companheira de Lenin – que construíram respostas para problemas que, embora fossem próprios de sua época, persistem ainda hoje. Questões consideradas insolúveis, como a divisão sexual do trabalho, têm soluções tão simples como revolucionárias. Por exemplo, a construção de restaurantes, creches e lavanderias populares. Parece que a revolução mais difícil é aquela que está ao nosso alcance.
É preciso ressaltar que todo esse processo se deu em um dos períodos mais sombrios da história russa: em 1917, as mulheres representavam um terço dos operários de Petrogrado. Enfrentavam jornadas de trabalho extenuantes, recebiam menos da metade do salário dos homens e não tinham condições mínimas de segurança. Se nas fábricas eram claramente exploradas, no campo eram escravizadas e vendidas. Em ambos os contextos estavam sujeitas aos mecanismos capitalistas inseridos em estruturas patriarcais, ou seja, viviam o aprisionamento dentro do aprisionamento. Foi nesse cenário que as mulheres russas tomaram a palavra e as ruas.
O resgate deste tema não representa apenas uma reconstituição histórica necessária – visto que mulheres são vítimas de um constante apagamento –, mas a possibilidade de olharmos para nós hoje de uma perspectiva radicalmente outra. É possível enxergar no pensamento dessas mulheres um horizonte para além das propostas de inclusão na ordem existente e de liberações parciais. Escutar essas vozes é desconfiar de que o esforço tão em voga de tratar a revolução como um evento impossível é parte do funcionamento dos mecanismos de dominação vigentes.”
Assim, queridas Vanessa e Carol, Mulheres em luta, fui instigada e inspirada pelos seus escritos, propondo incorporar uma reflexão em nossas lutas, onde, para além das reivindicações e denúncias de curto prazo (o tempo da reprodução), necessárias e urgentes, avancemos com a Utopia (o tempo de médio e longo prazos) que articula todas as Mulheres e todos os Homens, na busca de uma nova Humanidade, de uma nova sociabilidade ‘para além do capital’ (Mészáros) .
Se assim compreendermos e concordarmos, seremos, já aqui e agora, verdadeiras BRUXAS, porque desnudaremos e incorporaremos questões INTOCÁVEIS em nossos movimentos; seremos as HEREGES DO FUTURO, porque sabemos e poderemos provar que:
“Não é inteiramente verdade que as bruxas foram mortas e caçadas em nome de um ‘obscurantismo religioso’. Não! Elas foram queimadas também em nome de um futuro. Um futuro fabril, assalariado, masculino e moderno. Um futuro cromado, veloz e imponente… Somos hereges do novo mundo moderno. Hereges do regime assalariado. O capitalismo não seria possível sem esses dois cercamentos fundamentais: o das terras e da possibilidade comunal por um lado, e por outro, o cercamento dos nossos corpos e a transformação deles em um terreno inesgotável de apropriação de trabalho. Somos hereges do futuro.” (Alana Moraes)
A ‘pimenta’ foi colocada no tempero!
[1] Lamento profundamente o falecimento nesta semana, deste grande pensador marxista – István Mészáros.