Guiomar Valdez — Educadores(as): decifra-me!

 

Dedico este artigo as admiráveis companheiras educadoras de nossa cidade — Campos dos Goytacazes, que, numa triste coincidência, faleceram neste mês de outubro, mês do(a) Professor(a) – REGINA SARDINHA (03), MARIA THEREZA VENÂNCIO (14) e LÚCIA BASTOS L. BARRETO (16): perdas incalculáveis!

 

 

 

 

Estamos finalizando uma semana, que teve no seu início as “comemorações”(?) do ‘DIA DO(A) PROFESSOR(A). É unânime nos discursos e nas pautas políticas a importância da EDUCAÇÃO, a relevância da ESCOLA na formação das pessoas, das comunidades, das sociedades. Observando atentamente a História da Educação Brasileira esta pauta como Política Pública é nova, ela não se deu no século XVI – nos primórdios de nossa formação ocidentalizada. Inicia-se lentamente, muito lentamente, no século XX. Ela está estreitamente vinculada a transição de uma economia primário-exportadora para uma economia urbano-industrial, que se consolida fragilmente nos anos da Ditadura Civil-Militar, e, que, hoje, sofre uma inflexão socioeconômica desindustrializante, primário-exportadora, financeirizada-especulativa.

Há de se lembrar que este processo de modernização da economia e da sociedade brasileira, caracterizou-se pela dependência externa, por um lugar subalterno na Divisão Internacional do Trabalho. Há que se destacar, que não existiu e nem existe a ‘belíndia’ por aqui. Não há no Brasil uma dicotomia ou contradição entre os binômios, ‘atraso-moderno’, ‘campo-cidade’, ‘periferia-centro’, ‘pobre-rico’, é uma maneira muito superficial para explicar nossa condição. Esses ‘binômios’ representam o ‘jeito construído’ da nossa modernização, onde, articulados e interdependentes, todos eles, realizaram o que se denomina ‘modernização conservadora’. Aqui, um, não é a negação do outro. Eles se complementam, eles se auto reproduzem. Da mesma forma ocorre com as diversas frações do empresariado. O ‘novo’ é continuamente ressignificado, traduzido, à luz dessa secular estrutura histórica escravista, patriarcal, provinciana, dependente, subalterna, infelizmente não superada até 2017.

Por isso, ao avaliarmos o âmbito da Educação Brasileira não podemos desconsiderar criticamente este ‘pano de fundo’. Por estar umbilicalmente ligada à estrutura sócio-econômico-cultural, e, se, esta é DESIGUAL, a Educação será predominantemente marcada pela DESIGUALDADE E DUALIDADE em suas diversas expressões ao longo do tempo. A modernização urbano-industrial necessitou colocar o ‘povo’ na Escola. Não há dúvidas sobre isso. Daí o início dos exercícios de Políticas Públicas e de Legislações mais estruturadas e ampliadas. Entretanto, o que vem marcando a ‘forma’ nos conteúdos, pautas e discursos políticos é o que Paolo Nosella denomina de ‘Populismo Educacional’ – abre-se a porta da Escola para o povo, escancara-se o acesso, mas, a permanência e a qualidade socialmente referenciada, saem na mesma proporção por outras portas e janelas!

Assim, explicitamente ou não, teremos ao longo do tempo ‘duas escolas’ interdependentes, articuladas e consolidadas nos aspectos legais e de legitimidade, refletindo a desigualdade-dualidade. Esta ‘dualidade interdependente’ se explicita o tempo todo em Legislações ‘truncadas’, para atender as demandas do setor produtivo e aos atores dirigentes das Instituições, Sistemas e Redes educacionais de qualquer nível e modalidade de Ensino, a saber – Público-Estatal, Confessional e Privado. No atendimento a atores tão diversos, e, na maioria das vezes, tão incompatíveis em suas ‘missões’ e necessidades, observamos a hegemonia da lógica privada no pensar, no formular e no executar o Ensino, mais uma vez, em todos os seus níveis e suas modalidades.

É o que se denomina – ‘mercantilização da Educação’. Não apenas observando o número de matrículas e de estabelecimentos, e, nem, quem ocupa os cargos dos diversos Conselhos Educacionais e suas representatividades. É muito mais que isso! Estou falando de lógica, de pensamento, de projeto de vida, de valores, de ética, de convencimento, que perpassam o público-estatal, o confessional e o particular. O que é ‘estudar para o mercado de trabalho’? O que é ‘estudar para ser competitivo’? O que é ‘estudar para ser vitorioso’? O que é ‘estudar para o empreendedorismo individual’?

Não é à toa que o Banco Mundial se tornou o ‘pedagogo do capital’ a partir da década de 1990 até hoje, inspirador das mudanças educacionais para os países subalternos; não é à toa o fenômeno atual dos Sistemas educacionais privados, articulados a grandes investidores externos, abrirem seus capitais ao jogo especulativo, portanto, estéril para a maioria da sociedade, nas Bolsas de Valores. Na disputa pela Educação, presente, especialmente, nos debates duros das formulações legais, a hegemonia, a vitória, é a da lógica do mercado.

Podemos, e, devemos até replicar. Não é bem assim! Afinal, tivemos e temos espaços para inclusão de novas teorias e metodologias educacionais/pedagógicas nas Escolas, inclusive, inspirados em pensadores críticos da Educação, da Psicologia, da Psicopedagogia, da Neurociência, etc, etc. É verdade! Mas esta inclusão é feita ‘remendo novo em pano velho’; são adaptações e ressignificações necessárias frente a desigualdade-dualidade estrutural, lembram-se? Na maioria das vezes são verdadeiros ‘monstros didático-pedagógicos’, ‘vendidos’ como algo novo e libertador; ‘vendidos’ como modernidade criadora; ‘vendidos’ como panaceia para solucionar os problemas da Educação Brasileira. Não há começo, meio e fim, de forma coerente!

E assim o ‘Populismo Educacional’ avança, desmedidamente, agora assumindo o discurso da busca da qualidade socialmente referenciada, sobreposto ao Direito de acesso diferenciado, e, aos problemas não resolvidos da permanência, e muito mais! Incorporando e importando teses, ideias, conceitos, autores, inclusive, tidos como do campo progressista. Quanta interpretação equivocada, quanta ressignificação oportunista, etc, etc!

E nós Educadores neste contexto apresentado da Educação Brasileira? Considero-os o principal MEDIADOR do conhecimento técnico-científico-humanista, bem como, o principal mediador da visão de mundo hegemônica. O seu PODER é imenso, como é imenso o poder da apropriação e da produção do conhecimento técnico-científico-humanista. Por isso, e, não por outra razão, ele é exaltado. Entretanto, exatamente a partir da ‘abertura das portas das escolas para o povo’, verificamos ao longo do tempo alguns processos em suas vidas, aparentemente contraditórios – a profissionalização e organização reconhecidas, convivendo passo-a-passo com um tripé em ‘3 Ds’ – a desvalorização, a desqualificação e a desmoralização! Isso não é natural, é histórico! É desta forma, não sendo a única razão, que nós servimos a reprodução e a perpetuação do status-quo.

Jamais serei romântica ou corporativa com a minha categoria docente, exatamente porque sei objetivamente do nosso papel na sociedade e porque fui privilegiada em poder escolher livremente esta profissão, no lugar da medicina que já iniciara! Gosto demais de ser professora, por isso ‘cuido’ e dou atenção a tudo que envolve o seu mundo do trabalho. Somos um POTENCIAL imenso de mudança para a construção de uma contrahegemonia que realize a Educação Pública, de Qualidade socialmente referenciada e Emancipadora! Até agora, só potencial!

Alguns elementos podem explicar esta condição perpetuadora do trabalho docente, esta ‘esquizofrenia’ que oscila entre a exaltação/consideração e a realidade concreta dos ‘3Ds’. Para começar destaco a nossa FORMAÇÃO – ela é também carimbada com a ‘dualidade interdependente’. Quantas e quantas vezes, encontramos professores que detestam assuntos que envolvem a Educação! Para eles o que importa é o conteúdo específico de sua formação ‘técnica’ – matemática, história, física, geografia, eletricidade, língua portuguesa, mecatrônica, literatura, educação física, etc! É a versão da divisão social do trabalho docente – uns pensam a área em sua totalidade, e, outros, executam o conhecimento de forma fragmentada. Pior ainda, quando, enquanto professor de determinada disciplina, rejeitamos e fazemos pouco dessa aprendizagem! E quando são hierarquizadas as disciplinas e/ou os cursos? Uns são mais importantes que outros, etc, etc!

Ah, se soubéssemos que essa condição é reveladora da reprodução e da produção minimalista e subalterna do conhecimento, portanto, da Educação!

Outro aspecto que destaco no caráter perpetuador da profissão docente, é a sua CONDIÇÃO E SEU LUGAR DE CLASSE. Estudos apontam que os professores, em sua maioria, pertencem a frações da classe média. Trazendo dentro de si e para fora, algumas caraterísticas desse meio, marcadas pela insegurança de seu ‘lugar no mundo’ (o horror do rebaixamento econômico-social!); pela tendência a se identificar com a visão de mundo das elites dominantes, já que não existe uma visão de mundo própria enquanto fração de classe média; portanto, é forte a sua tendência ao conservadorismo, e, às vezes, ao reacionarismo, devido ao ‘entre-dois’ de sua condição de classe. Somos uma ‘metamorfose ambulante’, somos ‘gelatinosos’, somos a ‘contradição social em ação’, somos ‘ventríloquos’!

Assim, quando trabalhamos com a camada popular, nas Escolas Públicas das periferias ou não, carregamos diversos preconceitos que se concretizam em atitudes, ora assistencialistas, ora descuidadas, ora fortemente marcadas pelo pedantismo e arrogância. Comportamento diverso quando atuamos nas Escolas Privadas e/ou Confessionais – parece que a gente se encontra nesse ambiente, nos tornamos ‘cordeiros’ convivendo com os ‘leões’ do Ensino. Um exemplo incontestável desse ‘entre-dois’, é quando grande parte de nós, ao não confiarmos no trabalho desenvolvido nos espaços públicos, onde a maioria de nós trabalhamos, colocamos nossos filhos nas Escolas Privadas e/ou Confessionais, especialmente na Educação Básica! No Ensino Superior, há uma tendência a inversão, não é mesmo? Por que?

É claro que existem exceções, brilhantes e heroicas exceções, mas são ‘pontos fora da curva’! Reafirmam a nossa condição descrita.

Ah, se soubéssemos que a precariedade, a privação, as fragmentações didático-pedagógicas e o desmonte de nossas Instituições Públicas de Educação articulados aos ‘3Ds” da condição dos educadores, fazem parte do utilitarismo burguês associado-dependente, é seu projeto de Educação! Que nossa estrutura socioeconômica, como é medíocre e subalterna dentro da ordem do capital, não exige qualidade de formação para a maioria, mesmo em tempos de reestruturação ‘fina’ do sistema produtivo. Nosso lugar no mundo ainda é periférico e interdependente. Por isso tudo em Educação, de todos os níveis e todas as modalidades, é tratado sem seriedade e de forma populista!

Ah, se soubéssemos que essa condição é reveladora da reprodução e da produção minimalista e subalterna do conhecimento, portanto da Educação!

Numa autocrítica rigorosa e generosa, encontraríamos em nós, um ‘tesouro’ explicativo – o individualismo de tipo ‘meritocrático’, que deveria ser extirpado de nossas consciências, pois, este, aparentemente inofensivo, nos faz compreender que a Desigualdade é fruto das diferenças de capacidade, de esforço, de oportunidade, de dedicação individual, em resumo, de dons e méritos. Se assim continuarmos, pouco avançaremos em nossa valorização, em nossa qualificação e no respeito e na dignidade que temos direito. As lutas no nível econômico, por salários, devem continuar, mas não podemos resumir nossas reivindicações a um ‘prato de lentilhas’!

Portanto, nesta semana de outubro que vai se encerrando, a minha celebração enquanto professora-educadora, é a celebração do conhecimento ‘decifrado’ e contrahegemônico, da autocrítica generosa e do potencial mobilizador e emancipador dos educadores e educadoras, alimentador da Esperança equilibrista de quem pode revelar um ‘coração’ solidário e competente para as justas transformações urgentes em nosso mundo, em nosso país, em nosso município!

Sigamos em frente!!

 

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