O estouro da manada galga as escadas do metrô em passos agitados e tropeções. A multidão coletiva é opressora e cada indivíduo é uma unidade esmagada contra paredes e corpos a esmo. A cara se aperta no vidro dos vagões enquanto braços manietados de precisão tentavam consultar relógios constantemente, afinal cada segundo é precioso. Parecem controlar o tempo com rigidez quando na verdade o tempo as controla com rigidez.
Ela anda pela calçada. Sem afã. Sua presença vagarosa a transforma em obstáculo. Quem corre para bater ponto antes das oito se desvia de placas de compradores de ouro e de bancas de camelôs. Ela se assemelha a mais um cone inerte. Desses com o aviso de homens trabalhando.
Os carros buzinam e se enroscam no entrocamento provocado por um motorista de primeira viagem que não soube sair do nó. Começa a sinfonia de sons automotivos, os gritos urbanos ecoam decifrados em um linguajar sem palavras, mas sua onomatopeia era inteligível por qualquer morador da cidade. Muitos xingamentos partem rumo a destinatários desconhecidos em uma demonstração de cordialidade fraterna entre anônimos.
Ela para. Defronte um hidrante. Nada o diferenciava. Perdiam-se centenas de outros encravados por cada quarteirão das imediações. Apenas seus olhos e nenhum outro descobriria alguma singularidade. Aquela escultura de ferro cuja tintura vermelha se desgastava ano após ano. Ela esperaria para notar cada uma de suas mudanças.
Dois policiais perseguem um rapaz que acabou de assaltar uma joalheria, avisados ao ouvirem o ressoar do alarme à distância pondo-se rapidamente a postos para prender o meliante. A dona da loja gritou assustada após o bandido apontar uma arma na sua cabeça e pedir toda a grana do caixa sendo prontamente atendido em uma velocidade que nem fidelíssimos clientes receberiam. Cercaram-no em um beco sem saída e o levaram à delegacia, onde a imprensa o transformou em uma notícia que chamou a atenção da população, comoção logo esquecida no dia seguinte ao suceder novo crime a substituir o anterior.
Ela avistou um mendigo. Analisou-o. Roupas corroídas. Odor fétido. Poucos dentes na boca. Abriu a carteira com paciência. Procurou algumas moedas. Entregou-as. Recebeu um carinhoso obrigado. Ambos sorriram.
O corretor da bolsa de valores vigia prudentemente cada pequena mudança nos gráficos de empresas diante do monitor de seu computador. As variações podem significar alterações abruptas em investimentos realizados, precisando vender ou comprar conforme os indícios cautelosamente expressos pelos dados do mercado financeiro. Se tudo descambasse em fracasso ao fim da tarde, se perdesse somas consideráveis ou entrasse em bancarrota, desceria pelo elevador contando ansiosamente cada andar até chegar ao térreo buscando uma dose de uísque no bar da esquina.
Ela se atenta à vitrine. Cartazes anunciam promoção. Porcentagens de desconto. Prazos de pagamento. Calcinhas. Bermudas. Blusa de frio. Manequins estampados. Eles eram calmos. O extremo oposto dos vendedores. Bulhufas lhe interessava. Saiu dali.
Um casal passou às pressas pela entrada de um hotel de baixa qualidade caindo aos pedaços após anos sem reforma. Horário de meio-dia e dispensaram a refeição pela possibilidade de agenda para um encontro amoroso sem que o marido dela pudesse desconfiar, perdidos pelas ruelas anônimas do centro. Deixaram de engolir a comida sem mal mastigá-la para aproveitarem a estreita brecha dentro de seu apertado cotidiano pré-definido antes mesmo de acordarem.
Ela. Praça. Banco. Bengala. Passarinho. Canto. Solicitude. Felicidade.
Um atropelado por ônibus é arrastado do asfalto para a calçada por populares que o circundaram enquanto agonizava. Ele implorava por ajuda e todos aguardavam o resgate que vinha de longe para tentar socorrê-lo, sem saber que a sirene não ajudava a ambulância a driblar o trânsito congestionado. Faleceu ganindo de dor torturante tombado entre tanta gente desconhecida a acompanhar sua agonia com urgência em ser resgatado.
Ela encostou. A respiração reduzia. Morreu lentamente. Parecia feliz.
Cenas ligeiras, e tocantes, de uma cidade enfurecida pela esquizofrenia crônica, de quase todas as cidades. No meio do caos o ordenamento da poesia e da crônica literária, muito bem escritas.