Guilherme Carvalhal — Romance em Sol Maior

 

 

 

Calor de rachar. Radiador estropiado. Garganta tá seca. Mangueiras imploram água. Vira a ignição. Tosse, estrepita, morre. Motor arriado. Sai um vapor lá de dentro. Ficamos no nada. O caminhão imóvel. O vento também. Nenhuma brisinha refresca. Mormaço torrando com vagareza.

Sô Nonato. Mora cá perto. Sítio decadente. As vacas magrinhas. O pomar moribundo. Umas goiabas sem sumo. Um açude desértico. Terra rachada. Metia nela estrume. Mijo de égua. Nada resolvia. Os troncos caíam. Sobrava caruncho. Folha escasseava.

Palmas à porteira. A menina atende. Doçura de moça. Vestido de estampa. Aquele jeito quieto. Mãos um tanto tímidas. Fala truncada. Responde monossílabos. Sim. O pai tá. Vou lá. E vai chamar. Caminha em pulos. A barra esvoaça. Minha respiração ofega.

O velho vem. Passos lentos. Igual ponteiro de hora. Alpercata arrastada. Sola cheia de areia. Mastiga fósforo. Cospe saliva minguada. Mão calejada. Olhar um bocado perdido. Pensa de tudo. Gente diferente. Ele estranha. Queria a espingarda. Ladrão se expulsa. Preferencialmente à bala.

Que que cê deseja? Água, senhor. Caminhão enguiçado. Lá acima da estrada. Vamos pra Minas. Carregamos madeira. Dessas de lenha. Que acendem caldeira. Somos honestos. Motoristas. Somos da Santa Clara. Filhos do Amílton. O criador de porcos.

Faz feição cordial. Amigo antigo. Destranca a porteira. Podem entrar. Lá atrás. Anda uma légua. Passa um riacho. Até tem peixe. Pouco, tilápia, traíra. Tudo morre rápido. Girino definhado. Pardal sem pouso. Uma desgraceira só. Fica à vontade.

Me vou sozinho. Tadeu retorna. Planeja mexer mais. Tentar de novo. Às vezes pega no tranco. Levo o garrafão. Corto volto pela casa. Antena parabólica. Galinheiro. Um cão sarnento. Um carro velho. Tudo sempre igual.

O caminho dista. Não esperei esse tanto. Sol bate forte. Quase nocauteia. Suor em bicas. Desce cachoeira. Olhos salgados. Reflexos cegantes. Tateio com os pés. Caminho se perde. Danação.

Barulho d’água. Rocia nas pedras. Lembra um canto. Me esbaldo. Caio de cara. Boca alivia. Esôfago amornado. Sangue refeito. Rins filtrados. Lavo o rosto. Molho os cabelos. Esfrego a barba. Poeira vira lama. Me esfrego. Renasço.

Um barulho diferente. Não é pio. Nem coaxar. É música. Um rádio. Melodia de viola. Cantoria afinada. Palavras de amor. Arranjos toantes. Dó, sol, lá, mi, dó. Conta uma história. A mulher se vai. Ele fica. Coração em pedaços.

A moça se achega. Vexada. Escondida do pai. Meteu-se fora na surdina. Ele cochilava. Manso feito cabrito. Curiosa comigo. Mal sabia porquê. Aquelas dúvidas apoquentadas. Seguiu na coragem. Uns desmandos desvairados. Só seguiu adiante.

Apeteceu-lhe estar comigo. Brandamente desatinada. Sentada ao lado. Na grama mesmo. Solas na água. Dedos molhados. Esmalte descascado. Choque térmico. Frio subiu a espinha. Tremeu toda. Sorriu.

Não entendi. Me afastei. Sou respeitador. Nunca bulo. Filha de família direita. Pai com ombridade. Longe de mim. Chego ao lado. Ela acompanha. Insiste. Carece um toque. Um roçar de pele. Contato de dedos. Quentura dérmica.

Me aguento. Não devo. Quase criança. Cheiro de leite. Se diz mulher. Pegaram-na na baia. Um certo Quinho. Colhedor de tomate. Bonito, mas bruto. Grande, mas infantil. Ela queria homem. Desejava arder.

Levo-me em suas palavras. Dois corpos deitados. Uma preocupação conjunta. Um bisbilhotar curioso. Fofocas correndo. Um pai em fúria. Tiros. Temperamos com medo. Afrodisíaco. Ela se despe. Recebe raios solares. Reluz nua. Deita-se em mim. Juntos em ebulição.

O rádio prossegue. Toada contínua. Dita o ritmo. Movimentos de baile. Praticamente uma dança. A do acasalamento. Entrecruzamento. Passos deitados. Lento. Larghetto. Andante. Allegro. Presto. Regozijo. Estertores expressos. Espasmo aprazível. Fim das contas. Fim das forças.

Saio às pressas. Ela permanece. Lânguida. Meio desfalecida. Desfeita sem fôlego. Imanações do céu. Prisma concentrado. Exclusivamente nela.

Tadeu me aguarda. O caminhão ainda morto. Despejamos água. Vapor sobe. Ele pega. Treme todo. A moça aponta. Lá de longe. Esbaforida. Lançou um último olhar. Quis marcar-me a fogo.

 

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