Vanessa Henriques — Um novo “espírito” dos nossos tempos

 

 

 

Para acompanhar a velocidade do debate público em grande parte impulsionado pelas redes sociais, tratarei neste breve artigo das discussões em torno do problema do assédio sexual que atualmente tem estado em voga em boa parte do mundo. Nas últimas semanas, li dezenas de artigos sobre os movimentos virtuais #MeToo e #TimeIsUp, que tiveram como ápice o discurso de Oprah Winfrey na cerimônia de premiação do Golden Globes. Li também a crítica publicada no jornal “Le Monde” por 100 mulheres francesas, dentre elas a notável atriz Catherine Deneuve. Li muitos artigos que buscavam tratar da oposição que foi criada a partir do manifesto das francesas: combate ao assédio sexual ou puritanismo?

A princípio, fiquei apenas estarrecida com o texto assinado por Deneuve. Pelo menos para mim, estava claro que gozar de liberdade sexual não dá direito a assediar sexualmente, a importunar, a constranger, a forçar. A acusação de que os novos movimentos feministas seriam, no fundo, puritanos, me pareceu algo incrível, uma vez que a maior parte das mulheres feministas que conheço são grandes fãs de sexo e lutam pelo direito de poder vivenciar sua sexualidade de forma livre e saudável sem que sejam estigmatizadas como “vagabundas” e tantos outros termos sinônimos que, historicamente são anexados às mulheres que se negam a ser, justamente, puritanas.

Fiquei verdadeiramente entusiasmada por testemunhar esse debate ser travado com tanta vivacidade como está sendo feito atualmente, e me impressiona que os valores feministas, que buscam respeito e equidade, estejam se espalhando com maior rapidez do que eu poderia sequer imaginar há apenas cinco anos atrás, quando comecei a conhecer mais sobre o feminismo. Algumas intelectuais que estudam o tema tem chamado este fenômeno de “zeitgeist feminista”. “Zeitgeist” é um termo de origem alemã que quer dizer “espírito do tempo”, de uma época, um novo clima cultural no mundo. Será possível afirmar que estamos vivenciando uma verdadeira revolução no campo das ideias?

A discussão nas redes engloba não somente os casos mais graves de estupro, abuso sexual e assédio (Harvey Weinstein, Larry Nassar, Kevin Spacey), mas também o comportamento sexual masculino que seria inadequado, tendo como exemplo a recente denúncia ao ator Aziz Ansari. Neste último caso, o problema é mais sutil, tendo sido classificado por alguns como apenas um “encontro ruim”. O caso diz respeito a uma moça que foi com Ansari até a casa de um dos dois, após uma festa, e que pediu a ele que fosse “mais devagar” depois que ele avançou sexualmente sobre ela. Aparentemente os dois começaram a transar, mas durante o processo ela, alcoolizada, pedia para parar, dizia-se desconfortável, mas apesar disso, como a moça não ia embora, o ator prosseguiu com as tentativas de terminar o que havia começado. Muitos comentaram que bastava a moça ter sido mais assertiva e ter chamado um táxi que a tirasse de lá. Mas, além de ter dado a Ansari alguns sinais claros de desconforto diante da situação, para muitas mulheres ser ainda mais taxativa nesses momentos não é algo fácil.

Mulheres e homens recebem uma educação diferenciada: enquanto nós somos ensinadas a sermos dóceis, recatadas, comedidas quanto ao nosso desejo sexual, os homens recebem os estímulos opostos da sociedade. Para muitos homens, a satisfação de seu desejo sexual é uma necessidade maior, muito maior, do que a de respeitar o desejo da pessoa que está a sua frente, ora pedindo para parar, ora se esquivando das suas investidas. Não acho que o caso seja de condenar Ansiri ao ostracismo ou de torná-lo uma espécie de “leproso social”, tampouco estimulo tais punições; mas devemos aproveitar o ensejo para discutir amplamente essas questões que comumente permanecem sufocadas entre quatro paredes. Muitas mulheres, diante de uma situação sexual que causa desconforto tentam, delicadamente (tal como são instruídas), expor o que estão sentindo. No entanto, comumente ouço relatos de mulheres que mesmo quando não estão gostando da situação, mesmo não sentindo prazer, acabam permitindo que o ato prossiga para não causar um “constrangimento maior”, para não “fazer um drama”. Faz parte do “habitus feminino”, como diria o sociólogo Pierre Bourdieu, ter dificuldade de dizer “não”.

Historicamente, acusar homens poderosos de violência sexual é um caminho tortuoso e quase que condenado ao insucesso. Inúmeras mulheres tem que conviver todos os dias com o fato de que seu assediador, seu abusador ou seu estuprador são homens que não colheram quaisquer consequências pelos seus atos e permanecem sólidos em posições sociais de destaque, muitas vezes ocupando cargo público e sendo admirados pela reputação impecável. Este tipo de violência comumente acontece sem a presença de testemunhas ou sem provas materiais, sendo a palavra da vítima a única forma de expor a violência perpetrada. Este é o drama cotidiano de muitas mulheres que são agredidas dentro de suas casas e não conseguem reunir provas suficientes para conseguir realizar sequer um registro de ocorrência nas delegacias especializadas. Por conta dessas dificuldades, muitas encontraram nos relatos nas redes sociais e nas colunas dos jornais uma saída para que fossem ouvidas. No Brasil, este é o caso da figurinista Su Tonani, que acusou o ator José Mayer de assédio sexual em um artigo na “Folha de São Paulo”.

Em Campos, tivemos o caso das “Meninas de Guarus” e pudemos acompanhar a dificuldade para que o processo se desenrolasse, tendo em vista as figuras “notáveis” envolvidas. E mesmo após as condenações, muitos são os “fios soltos” da história e a sociedade segue sem informações necessárias sobre os desdobramentos do caso. Também na planície pude acompanhar de perto o caso do professor da UFF-Campos que foi acusado de assédio por dezenas de alunas. O processo está há meses parado na procuradoria da Universidade e a reitoria não fornece informações aos alunos e professores que estão buscando repostas.

Se há denúncias falsas no âmbito deste movimento, estas são exceções. Toda construção humana é passível de falhas e estas não devem servir para deslegitimar o movimento e sua necessidade de existir para que outras mulheres continuem se libertando de suas amarras e para continuar proporcionando a mudança na mentalidade de mulheres e homens sobre os comportamentos que são aceitáveis ou não, sobre as diferenças entre assédio e a sedução prazerosa e saudável, enfim, sobre questões capitais como respeito e empatia.

 

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Este post tem um comentário

  1. cesar peixoto

    Belíssima matéria se fossem uns pobres coitados estáriam presos condenados, se duvidar até esquartejados na prisão,aguardo os proximos episódios

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