Uma pequena notícia intitulada “Recuperação em praças no 5º distrito”, publicada (aqui) na Folha da Manhã de 18 de janeiro do corrente ano, informa que secretarias de São João da Barra estão promovendo obras de recuperação e manutenção em Enjeitado, Barra do Jacaré, Sabonete, Cazumbá, Córrego Fundo, Quixaba, Azeitona, Açu, Mato Escuro, Capela de São Pedro e Água Preta.
Compreendi e não compreendi. Desde o século XVII, o limite entre as vilas de São João da Barra e Campos foi fixado na barra do rio Iguaçu, que nascia na lagoa Feia, corria de oeste para leste, como vários cursos d’água da baixada dos Goytacazes, e desembocava no mar por uma foz estreita mas profunda. Segundo Fernando José Martins, historiador sanjoanense do século XIX, o rio era caudaloso na foz. Nela, um cavaleiro e seu cavalo teriam morrido afogados. O volume de água do rio se justificava pela contribuição de vários defluentes que partiam do rio Paraíba do Sul e desembocavam no Iguaçu, sendo o principal deles o rio Água Preta ou Doce, que formava várias lagoas no seu curso e se alastrava, em seu fim, no banhado da Boa Vista. Ele separava a planície aluvial da restinga pela margem direita do Paraíba do Sul
Depois do conjunto de pesadas intervenções empreendidas pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento (DNOS) na região norte fluminense, sobretudo entre os rios Água Preta e Iguaçu perto de sua nascente, o Água Preta se transformou no canal do Quitingute e passou a correr em direção oeste. O canal da Flecha cortou todo o sistema hídrico natural que tinha sua origem na lagoa Feia. O rio Iguaçu foi todo esquartejado entre o canal da Flecha e o rio Água Preta. Do pujante Iguaçu, restaram fragmentos, sendo o maior deles a conhecida lagoa do Açu de hoje. Esta história de intervenções humanas no sistema hídrico natural da baixada dos Goytacazes foi esquecida de tal forma que, mesmo as antigas pessoas nascidas e criadas nela entendem que a planície sempre apresentou essa configuração. Como me disse um velho pescador, “Deus fez a natureza assim. Ela sempre foi assim”.
Quando um decreto federal de 1938 determinou a definição e a fixação dos limites entre os municípios, Campos e São João da Barra foram separados por uma linha reta partindo da barra do Açu para o interior até o canal de São Bento. Que eu saiba, essa linha limítrofe não foi alterada até hoje, salvo por enganos interesseiros dos prefeitos de São João da Barra e da prefeita Rosinha. Entre os dois municípios existe um triângulo pertencente a Campos, mas reivindicado por São João da Barra. Mais ainda, ele é governado por São João da Barra. Quem vai a Córrego Fundo, Quixaba, Azeitona, Maria Rosa e pergunta aos moradores em que município eles estão encontrará como resposta mais comum que estão em São João da Barra. No entanto, essas localidades estão em Campos, no distrito de Mussurepe, na ponta meridional da grande restinga de Paraíba do Sul.
Creio que o mapa traçado pelo atento cartógrafo Cremilce Maciel em 1995 deixa claros os limites entre os dois municípios e o triângulo territorial de Campos pleiteado por São João da Barra. Certa vez, no intento de cuidar melhor da linha de costa de Campos, promoveu-se o programa Campos-Orla. Eu representei a Universidade Federal Fluminense nele, mas logo me afastei por entender que ele não resultaria em nada além de intenções registradas em documentos. Numa das visitas que fizemos ao litoral, as autoridades municipais de Campos se recusaram a cruzar a ponte de Maria Rosa, alegando que, no meio dela, começava o município de São João da Barra. Insisti que continuaríamos em Campos, mas não me deram crédito.
Em outra ocasião, quando o Complexo Logístico Industrial Portuário do Açu (CLIPA) prometia mundos e fundos com Eike Batista, a prefeita Rosinha, talvez ouvindo o galo cantar sem saber onde, prometeu demonstrar com documentos que o CLIPA estava totalmente situado em território campista. Escrevi um artigo desafiando a prefeita a ir adiante, mas o assunto morreu. Creio que ela consultou o mapa de Cremilce.
Em toda extensão do norte e noroeste fluminense e sul do Espírito Santo, não mais existem remanescentes de comunidades indígenas pré-europeias. Todo núcleo populacional, do mais pobre ao mais rico, tem raiz na colonização portuguesa. De uma forma ou de outra, todas se explicam pelo processo europeu de globalização. Todas se inserem nesse processo, mesmo que pareçam tradicionais para estudiosos. Acontece de localidades ficarem à margem das transformações e parecerem tradicionais. Com outras, estímulos internos ou externos promovem mudanças em diversos graus. Comparemos Macaé a Quixaba, por exemplo. A cidade de Macaé sofreu um processo radical de transformação econômico-social com a instalação de uma unidade da Petrobras. Quixaba ficou à margem desse processo e pareceu tradicionalizar-se, ainda mais por estar situada no triângulo da restinga integrada legalmente ao território campista, mas, na prática, administrado por São João da Barra. Parece haver um acordo tácito entre os dois municípios. Campos finge que não vê e São João da Barra finge que não sabe.
Todavia, no início da segunda década do século XXI, o chamado porto do Açu passou a exercer estímulo sobre os dois munícipios, notadamente sobre vilas e localidades próximas. Quixaba não ficou de fora. Em excelente tese de doutorado defendida na Universidade Estadual do Norte Fluminense em 2017, John Marr Ditty mergulhou na comunidade de Quixaba. Ele fez um trabalho de imersão antropológica, convivendo com seus moradores por bastante tempo. De fato, o porto do Açu vem descaracterizando Quixaba e outras localidades de seu entorno, como era de se esperar. Todo trabalho acadêmico costuma dedicar uma parte para contemplar a história do objeto estudado. Não se encontra um documento com facilidade sobre as pequenas comunidades, e os informantes mais antigos morreram. Por enquanto, só se pode contar com a tradição oral.
Consultando o prestigioso relatório de Manoel Martins do Couto Reis, de 1785, encontrei uma pequena passagem sobre a vila de São João da Barra. O autor informa que existiam 111 fogos (casas), sendo 31 cobertas de palha e 80 de telhas. Cinco abrigavam pequenas lojas de mercadores, com duas tabernas. Ele fala ainda de lugares exteriores à vila, mas não os nomeia.
Na década de 1990, conversando com Amaro Bau, um velho morador do Açu, disse-me ele ter nascido na margem da lagoa Salgada e ter se transferido para o Açu quando ainda era pequeno. Em suas palavras, havia ali apenas 13 casas: cinco de telha e oito de palha. Daí o nome de cidade de palha que o Açu recebia no passado, como nos informa, Maria Rita Lubatti.
Mais tarde, encontrei fotos tiradas pelo antropólogo Luís de Castro Faria correspondentes a anotações feitas nos anos de 1940 para um estudo sobre a pesca artesanal em Ponta Grossa dos Fidalgos e São João da Barra. As casas com paredes de taipa e telhados de palha dominavam.
Pouco depois, encontrei com emoção um desenho do príncipe naturalista alemão Maximiliano de Wied-Neuwied registrando uma casa de taipa e palha no rio Bragança, sul da lagoa Feia, em sua expedição científica de 1815.
Parecia que nada havia mudado durante mais de cem anos. E parecia que as mudanças foram profundas em 50 anos. Recentemente, informaram-me que Barra do Furado era também conhecida como cidade de palha. As técnicas de construção estavam presentes na restinga, na planície aluvial, na zona de tabuleiros e na região serrana. Rapidamente, as cidades de palha foram substituídas pelas cidades de alvenaria. Na ilha da Convivência, foz do rio Paraíba do Sul, as casas foram todas removidas.
Retomando o tema inicial para concluí-lo, pergunto se Campos e São João da Barra chegaram a um acordo tácito para que o primeiro município faça vista grossa sobre o triângulo misterioso na restinga, enquanto o segundo provê minimamente a área de saúde, educação, segurança e principalmente de votos. Proponho também mais estudos não apenas sobre as localidades do triângulo, assim como sobre outras localidades pequenas, primeiro, como propunha o historiador Eduardo d’ Oliveira França, numa abordagem intersticial que conduzirá ao estudo de áreas maiores. Não creio que a maioria dessas localidades tenha sido fundada antes do século XX, pelas muitas informações que venho colhendo ao longo de 40 anos. Qualquer abordagem que nos chegue será bem-vinda. A partir de então, poderemos melhor avaliar os impactos produzidos pelo DNOS, pela Petrobras e pelo porto do Açu, os maiores empreendimentos da região.
Sugestões de leitura
COUTO REIS, Manoel Martins do. Manuscritos de Manoel Martins do Couto Reis, 1785: descrição geográfica, política e cronográfica do Distrito dos Campos dos Goytacazes, 2a ed. rev. e atual. Campos dos Goytacazes: Fundação Cultural Jornalista Oswaldo Lima, Rio de Janeiro: Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, 2011.
DITTY, John Marr. “Águas roubadas por grandes empreendimentos: a seca da pesca, do artesanato e da agricultura familiar. Campos dos Goytacazes: Universidade Estadual do Norte Fluminense, 2017.
LUBATTI, Maria Rita da Silva. O folclore na vivência atual de Açu, Marreca e Quixaba (Campos, RJ). São Paulo: Editorial Livramento, 1979.
MARTINS Fernando José. História do Descobrimento e Povoação da Cidade de S. João da Barra e dos Campos dos Goitacases, Antiga Capitania da Paraíba do Sul. Rio de Janeiro: Tipografia de Quirino & irmão, 1868.
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia/São Paulo: EDUSP, 1989.
São poucos os que conhecem o dilema do “triângulo misterioso”. É sempre gratificante esquadrinhar nossa história.
Caro Aluizio, sempre admirando sua cultura e extensão de conhecimentos.
Deixei uma mensagem urgente para você, por se tratar de um assunto que teria de ser solucionado até a próxima sexta feira, no SMS.
Abraço,
Caro Flávio Mussa,
Ressaltando a admiração recíproca, respondido no SMS.
Abç e grato pela participação!
Aluysio