Paula Vigneron — Últimos

 

Atafona, fim de tarde de 23/01/18 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

I

 

— A vida sempre perde a graça com o passar do tempo.

Entre as grades, Nina dá o último trago no último cigarro trazido pela mãe, na última visita. As últimas horas da madrugada trouxeram o tédio característico dos segundos infinitos que passava ali. Não se lembrava mais o dia da semana. Perguntava, diariamente, ao rapaz que caminhava ali para verificar o andamento de seus plantões. O nome era Ralph. Parecia uma pessoa agradável, embora gritasse excessivamente quando as coisas saíam de seu controle.

— Foi como eu disse há pouco: a vida sempre perde a graça com o passar do tempo.

Eram seis horas da manhã. Só sabia porque os últimos segundos haviam chegado ao som do sino da igrejinha do padre Francisco.

— Hoje, eu o entendo melhor — disse, lançando para fora das grades o que restou do companheiro das últimas horas. Sempre pedia à mãe: “me traga um pacote de cigarros. Essa merda é um tédio ainda maior sem eles”. E a mãe, com os olhos entristecidos, concordava. Nunca sabia se poderia ser o último pedido.

Nina. Vinte e sete anos. Nascida em uma cidade movida a carros, sons de algazarra e lixos de fábricas próximas. A última de cinco filhos: dois meninos e três meninas. Todos casados, formados e “fodidos”, segundo as palavras da irmã caçula. Hora para trabalhar, hora para ir para casa, hora para almoçar e a última hora para ficar com as crianças.

— Todas chatas — dizia em tom alto. Gostava de ser ouvida. Ser a última das vozes, por vezes, a indignava.

Ralph caminhava vagarosamente em direção à cela da mulher. “Quarto temporário, querido. Temporário”, refutava Nina. Certas palavras deveriam ser abolidas da língua portuguesa. “Cela” era uma delas. Achava grotesca. O carcereiro ria em meio a essas lembranças. Gostava dela. A “doidinha” do segundo corredor.

— Nina, bom dia.

— Dia bom, querido. Mais um — respondeu com simpática sinceridade. Ele se tornara seu colega nas últimas semanas. Quantas no total?

— Sete, menina Nina. Sete.

— Como você sabia que eu estava tentando contar?

— Seus olhos. São transparentes.

— Devem estar mesmo. Acho que todas as cores do meu corpo estão sumindo neste isolamento.

— Não. Continua colorida. Cabelo avermelhado — “um pouco cor de mel e desbotado nas raízes, mas não posso falar; é necessário ter cuidado com as mulheres”, pensou — e olhos pretos e amendoados. Tudo em dia, menina Nina.

— O que te traz aqui, menino Ralph?

— Presente de sua mãe — e esticou um desejado maço de cigarros.

— Só isso?

— E agradeça a Deus, se é que você acredita.

— Acredito em mim. E só.

Ralph entregou os cigarros e sorriu para a mulher. Achava-a engraçada, apesar da bravura inicial com a qual se apresentou no primeiro dia. Mas vira, nela, algo indecifrável e frágil.

— Obrigada, Ralph. Quer um?

— Aceito.

E deram, juntos, as primeiras tragadas.

 

 

II

 

Naquela manhã, Nina optara por acordar cedo. Era atípica a sua decisão. A então adolescente, de 16 anos, era conhecida por dormir tarde e despertar depois do almoço, quando todos já haviam saído da mesa da sala. Ela não gostava de dividir muitos momentos com os pais e irmãos. Eram todos cheios de histórias criadas em suas cabeças sonhadoras. Sabia que a verdade andava distante. Cotidianamente, notava as horas em que saíam da realidade em direção à fantasia, sem sinalizar as mudanças que ilustravam as trajetórias. Eram nobres inventores.

— Meu pai sempre dizia: quem não se contenta com a vida real se abastece de fantasias — contava Lurdes, a governanta. Ela, sim, compreendia Nina, que a considerava uma amiga na casa. Também tinha apego à mãe e ao irmão mais velho, que costumavam rir nessas ocasiões.

Otávio havia partido, há tempos, para uma cidade longe, “o mais longe possível”, gritou em direção à família durante a partida. Não deixou endereço, telefone ou caminhos plausíveis. Era avesso às redes sociais. E ela sentia saudade.

— Boa tarde, Nina — cumprimentou o pai. O sábado marcava a terceira semana de ausência do irmão. Era a última vez que sentia aquilo, jurou para si. A última.

— Oi – e seguiu, com um prato de comida, para o quarto.

A resposta desagradou o homem, que a encarou. “Esta menina é um caso perdido. Estranha, fechada, isolada em uma realidade particular. Não me agrada. Não me agrada”, reafirmava sempre que possível. Nina estava atrás da porta enquanto seus pais seguiam pelo corredor. Dormiam perto dela.

— Não deve falar assim. É sua filha. Se há um erro entre vocês, cabe a ti reparar — alertou a mãe. Em resposta, a menina ouviu a batida da porta e um suspiro no corredor, seguido de passos desanimados. “Você é o caso perdido, homem. Você…”

Nina abriu a porta e assustou a mãe, cujo coração disparava com a inesperada aparição da filha.

— Obrigada por me entender em nossos silêncios, mãe — a menina deu um abraço e um beijo e fechou a porta. A mulher não teve reação.

 

III

 

— O que acha deste lugar, Ralph? — questionou, espantando seu interlocutor.

— É meu local de trabalho, menina. Assim o vejo.

— E é o que meu?

— Acho que seu quarto temporário, correto?

— Correto, menino Ralph. Correto.

Tragaram, mais uma vez, os cigarros. Nina segurava-o com a mão direita. Nunca tivera habilidade para equilibrá-lo entre os dedos esquerdos. Pareciam frouxos nestas horas.

— Quanto tempo ficará por aqui?

— E quem sabe? Dependo de outros. Outros setores, outras hierarquias, outras pessoas. E eu odeio depender dos outros — os olhos de Nina ficaram sombrios. Ela continuava a carregar algo indecifrável para Ralph. Tão atraente quanto misteriosa.

A mulher encarou o colega e compreendeu seus pensamentos. Era uma das mais marcantes características de sua personalidade. E ele captou a compreensão no olhar da mulher.

Nas últimas sete semanas de intenso convívio, ele não encontrara o momento exato para descobrir o que levara Nina até ali. Reservado, não queria saber por terceiros. Se fosse para descobrir, seria diretamente com ela.

Durante alguns momentos do dia, Ralph a observava dormir. Gostava do seu jeito plácido que só aparecia na hora do sono. Nestas horas, a aparência casava com a “menina Nina”, como ele se acostumou a tratá-la. Sabia que ela não se incomodaria com o carinhoso tratamento. Anos trabalhando como carcereiro deram ao homem a capacidade de entender um pouco sobre a natureza humana. E Nina, por trás das palavras ríspidas, inspirava cuidados. Havia uma carência parcialmente camuflada em grosserias. Ela não era a primeira nem a última pessoa com esse traço. Mas Ralph sempre fingia não observar. Se falasse, ela iria se fechar e se esconder dele. Não era o que desejava.

— Tem filhos, Nina?

— Não. Graças a Deus ou algo assim. Tenho sobrinhos. Chatos. Nunca consegui passar uma tarde com eles.

— Porque, no fundo, eles te lembram você mesma e… — Ralph percebeu que foi longe demais. A expressão da mulher havia se modificado: a simpatia dera lugar à desconfiança.

Fingiu não reparar e deu mais um trago no cigarro:

—…e eu sei disso porque também tenho sobrinhos. E me vejo neles. Aquele moleque de infância corre junto aos meninos quando os encontro. Mas também não tenho muito tempo para crianças.

Ela também tragou. Ralph notou que conseguiu contornar a irritação de Nina, que sorriu:

— É verdade. Lembram, sim. Torço para que eles tenham uma vida diferente da minha — e lançou, perto do pé de Ralph, o resto do cigarro. Tentava parar há tempos. Mas havia desistido de desistir. Seria a última vez. Sempre a última.

 

IV

 

O pai entrou no quarto, abrindo a porta com toda a força que tinha, seguido pelos irmãos. Uma mulher e dois homens. Otávio já não morava perto há sete anos. Neste tempo, conseguira encontrá-lo, sem que ninguém soubesse, somente uma vez:

“Primeira e última, Nina. Fiz uma conta em seu nome. Todo mês, irei depositar uma quantia. Aproveite o dinheiro. Estude e se mande daqui o mais rápido possível. Sei que é isso que deseja, como eu sempre desejei, mas não tive quem me ajudasse”.

Ele abraçou a irmã e saiu. Sem palavras de despedida. Com afeto comedido.

“Quando nos veremos novamente, Otávio?”

“Última vez, Nina. Última vez.”

Entrou no carro, acelerou e buzinou. Uma buzina como despedida. A última despedida.

Ela caminhou para casa. Na carteira, o cartão que o irmão havia dado e uma foto sua ao lado dele e da mãe. Quando os três estavam juntos, a vida tinha graça.

— O que vocês querem?

— Saber o que você pretende fazer da sua vida — respondeu uma das irmãs.

— Bom, no momento, só pretendo ficar sozinha. Em silêncio. Pode ser?

Os dedos da mão direita ficaram marcados na face de Nina. Não tivera tempo de reagir ao tapa dado pela mulher.

— Era isso que você deveria ter feito, pai. Exatamente assim. Agora, aprende — e saiu do quarto, com passos firmes. Ela descobriu que odiava a irmã. Sempre tentava uma relação de amizade, mas falhou em todas as tentativas.

 

V

— Acho que falhei, Ralph. Falhamos, na verdade.

— Falhamos?

– Isso. Falhamos.

— Como família, como lar e como amigos, certo?

— Certo.

— Seu pai e sua irmã. Ela morreu. Parece que foi em um acidente…

— Parece, sim. Parece.

— Sua mãe, que permanece por aqui. Seu irmão, que foi embora há tempos. E os outros irmãos, que não fizeram diferença na “droga dos seus dias”.

— Na droga dos meus dias. Já conhece todas as histórias. Eu sei, sou repetitiva.

— Não é. Mas noto que precisa falar sobre isso. E eu estou aqui para ouvi-la.

— Mas não estou aqui para encher seus ouvidos com a mesma ladainha todos os dias.

— Não enche. Aqui, a gente aprende um pouco de tudo. E eu aprendo muito com você, menina Nina.

Ela sorriu. Um sorriso bonito de sinceridade e cumplicidade. Ele retribuiu.

Sem que eles sentissem, horas haviam passado desde os primeiros cigarros divididos entre conversas variadas. O homem a seu lado transparecia segurança. A mulher a seu lado transparecia solidão. Uniam-se, como em um ritual, para desafogar o que não transparecia.

— Menina Nina, mais um dia.

— Mais um dia.

— Sinto, mas tenho que deixar sua companhia. A hora já está adiantada. Há coisas por fazer.

— Eu sinto ainda mais, menino Ralph. Mas, se pudesse, também iria fazer outras coisas que devem estar por fazer.

— Ainda há tempo para fazê-las. E você terá todo o tempo do mundo quando estiver longe daqui.

As despedidas sempre deviam vir com palavras de consolo. E dúvidas. O que levara Nina, plácida e desconfiada, àquele destino? Não gostava de ser intrometido. Não queria ser invasivo. E gostava da menina.

— Obrigada pela dose diária de ânimo, meu querido amigo. Mas esta é a última vez, eu te prometo. Última vez — e sorriu de maneira diferente. Ralph, mesmo sem compreender, concordou.

Enquanto se distanciava das grades, Nina o observava. Passos lentos e cuidadosos. De melhor, das últimas semanas, ela levaria Ralph. Pena não tê-lo conhecido antes, quando havia tempo.

Acendeu mais um cigarro. Havia desistido de desistir, lembrou-se. Tragou profundamente e suspirou. Permaneceu em ritmo quase cronometrado até que a brasa se aproximasse dos seus dedos. Sentia prazer enquanto eles queimavam lentamente. Era como expurgar um pouco de suas dores por meio de outras. Era como assistir à sua própria punição em silêncio. Estava certa de algo: não daria este gosto a ninguém. “A ninguém”, verbalizou entre dentes. E lançou, por entre as grades, a ponta do último cigarro.

 

fb-share-icon0
Tweet 20
Pin Share20

Deixe um comentário