Quinta-feira, dia 01 de fevereiro de 2018. Numa manhã de sol abrasador, na Pelinca comercial de hoje, de repente (nada mais que de repente), surge à nossa frente uma figura que há muito não via, demonstrando, no aspecto físico, assim como nós, as marcas imponderáveis do tempo. Embora a memória histórica (Jacques Le Goff) tivesse, num relance, o poder de plasmar o cenário antagônico de relações estremecidas, automatizamos a mão estendida, recusada com rancor e dedo acusador em riste.
— Esse aí disse a Churchill (Winston Churchill Rangel, teatrólogo e mulherófago amigo dos litigantes), que fui seu opressor e carcereiro durante a Revolução (referia-se ao Golpe de 1964). “Isso é uma grande mentira, pois nem delegado era (…)”, esbravejou. Após, olhando parentes circunstantes, alteou o canto para deixar sair alguma coisa em torno da ofensa: “Ficou velho e canalha (…). Diante do inusitado, olhando nos seus olhos, tranquilamente, rebatemos: “Que bom que você tenha esquecido, delegado”.
Saímos, de soslaio, para evitar maiores encrencas, do ringue das discussões. Mas, por dever do oficio de jornalista, precisamos reafirmar essas acontecências para não pairar dúvidas sobre os documentários a respeito dos “anos de chumbo”, durante os quais, como editor do jornal “A Cidade”, pudemos contribuir para embasar pesquisas científicas por parte de estudantes universitários ávidos de conhecer, pelo menos, parte do clima de perversidade instituída nas redações, após a edição do famigerado AI-5, em 1968.
Os anos posteriores ao ato do general Costa e Silva, com fulgor maior nos primeiros anos 70, durante os governos de Garrastazu Médici (1969-1974) e Ernesto Geisel (1974-1979), a censura fora impiedosa e, nas redações, recebíamos “telegramas” do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e da Polícia Federal dizendo o que podíamos (ou não) publicar na edição do dia seguinte. Um acinte contra a liberdade de expressão. E foi o descumprimento de uma dessas normas que nos levou à cadeia antiga da Rua Barão de Miracema.
Numa manhã, quando preparávamos a pauta, fomos surpreendidos por dois policiais: José Madruga e João Batista Sá. Levado à delegacia nos deparamos com o policial José Roberto Vieira (irmão de pessoas preclaras, como Beth e Marilda Vieira, ambas ligadas à educação e à cultura). Com o poder instituído pelo AI-5, que lhe dava o direito (?) de prender sem culpa formada, o trêfego dito cujo recolheu nossos pertences, mandou retirar o cinto da calça e nos recolheu às masmorras do antigo prédio histórico.
Isso sem falar nas pressões psicológicas e morais, discursos autoritários e outras iniquidades contra os direitos humanos. Só à tarde do mesmo dia fomos libertados, após assinar um documento dizendo “que deveríamos cumprir as ordens da censura”, isso graças à expertise do saudoso doutor Jonas Lopes de Carvalho, advogado do jornal. O fato aconteceu, está registrado e se transformou em história. Como vítima nunca tivemos interesse em/de esquecer, mas, ao contrário, é natural que o delegado tenha se esquecido.
O ritual da censura daquela época poderia, por sua agudeza, ter inspirado a obra de Michel Foucault, “Vigiar e Punir” (1975). Depois, ninguém consegue, de sã consciência, trabalhar pelos princípios da democracia sem direito à opinião. Revendo o cenário simples desse acontecimento banal de nossa vida de repórter, olhando para múltiplas atrocidades praticadas pelos generais de plantão, não há dúvidas: somos sobreviventes, nós e o delegado, porquanto cada um cumpriu, em seu tempo, o que lhe era destinado pela profissão.
E tem razão o jornalista escritor Zuenir Ventura, em seu livro “1968 — O ano que não terminou”, ao afirmar que a ideologia da direita continua, com outras rotulações, a atuar na sociedade brasileira, a partir de outros ordenamentos sociais, políticos e econômicos. A anistia — geral e irrestrita — absolveu vítimas e algozes, mas não teve (e não tem) moral para apagar da memória os fatos (graves ou não) da forma como realmente aconteceram.
Ficaram feridas e cicatrizes. Memórias e esquecimentos: faces de uma mesma moeda. Mas, uma coisa é certa: o espirito do tempo (Edgard Morin) se encarrega de fazer sua justiça. Tanto é que reserva, com muita sapiência, para os arrogantes, prepotentes e desalmados o escaninho inferior da história. No qual inclui, também, os esquecidos…
Meio século depois, se não fosse Zuenir, não haveria lógica estarmos comentando essas animosidades construídas ao longo da vida. Os cabelos brancos, hoje, deveriam significar, pelo menos, respeito entre as pessoas. Todavia, as nossas (minhas) mãos continuam estendidas…