Por Aluysio Abreu Barbosa
No Carnaval, o politicamente correto tentou ser mais real que Momo. A despeito da liberdade no nome, o site Catraca Livre listou fantasias proibidas a quem não quisesse “ser machista e preconceituoso, além de apropriar da cultura de povos marginalizados”: 1) índio ou índia, 2) cigano ou cigana, 3) empregada doméstica ou enfermeira, 4) “nega maluca”, 5) Iemanjá e 6) muçulmano. Estas, além do sétimo pecado capital: homem se vestir de mulher.
Virtualmente, a “lista negra” — e, aqui, a infeliz lembrança do Macartismo talvez não seja fantasia — causou mais impacto pela majoritária reação contrária do que pela minguada aprovação dos já convertidos. E, na realidade dos blocos de rua do Rio e do Brasil, tiveram o eco de qualquer outro balido censor em meio à anarquia dos rebanhos foliões: nenhum!
Ainda assim, na seara virtual, os ditames politicamente corretos ganharam reforço com o vídeo gravado e divulgado pela artista e ativista índia Katú Mirim. Nas redes sociais, ela lançou a campanha “índio não é fantasia”:
— Usar fantasia de índio é racismo porque discrimina nossa raça, reforça estereótipos, a hipersexualização da mulher indígena. O movimento indígena sempre sofreu com a invisibilização. Nós não somos uma fantasia. Pessoas não são fantasia, nossa cultura não é fantasia. Ela existe, nós existimos.
Do que existiu na recepção à campanha, bisando no surdo a (ausência de) adesão à lista do Catraca Livre, Katú classificou:
— Algumas pessoas estão refletindo, mas 98% dos comentários são racistas.
Sobre a campanha “índio não é fantasia” e os conceitos de raça e racismo da sua cunhatã-propaganda, outro vídeo foi divulgado por outra ativista indígena: Ysani Kalapalo. Ela ressalvou não haver uma “raça índia” no Brasil, mas 305 etnias ainda sobreviventes, e observou:
— Pelo que eu vivi e vi, não tem nada demais usar cocar e adereços indígenas no carnaval (…) Quando um branco vai para a nossa tribo, ele usar cocar e adereços e a gente não acha nada de ruim. E quando a gente vai para a cidade, a gente usa roupa, óculos, tênis de marca (…) Racismo é quando o branco chama o índio de ‘bicho’ e ‘incapaz’ e tira o índio de sua terra.
Além da retórica, Ysani fez a analogia cultural do Carnaval com os rituais chamados Hagaki e Uluki:
— O Uluki é uma cerimônia em que fazemos trocas com outras tribos, de bens e de conhecimentos. Isso faz parte. A Hagaka é um momento em que a gente se fantasia de várias culturas, de bichos e de não indígenas também. É parecido com o Carnaval. Se você for analisar a história da humanidade, o que a gente mais faz é troca. Troca de objeto, de conhecimento, de cultura, entre pessoas e nações.
Alheio às discussões do Carnaval brasileiro — mas não à ideia de apropriação cultural fundada sobre conceitos do filósofo Michel Foucault (1926/84) e do historiador Roger Chartier, ambos franceses —, o historiador israelense Yuval Noah Harari também seguiu o conselho da Ysani. Ao “analisar a história da humanidade”, ele escreveu e intitulou um best-seller internacional: “Sapiens — Uma breve história da humanidade”.
Professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, Harari se tornou referência aos públicos acadêmico e leigo mundo afora. Assim como de lideranças globais, como o ex-presidente dos EUA Barak Obama, o presidente da França, Emmanuel Macron, e o criador do Facebook, Mark Zuckerberg. O livro sobre a “breve história” da nossa espécie (Homo sapiens) deu e dará artigos melhores do que este. Sobre o todo da obra, fica só o endosso: é leitura necessária!
O historiador credita a globalização ao afunilamento gradativo de três criações humanas: o dinheiro, as religiões e os impérios. Sem contar que ele considera o humanismo também como religião — pela crença em uma ordem sobre-humana nas suas versões capitalista e socialista —, o capítulo 11 (“Visões imperiais”) traz o subcapítulo “Mocinhos e bandidos da história”. Nele, no que interessa às polêmicas do último império de Momo nas terras de Vera Cruz, o autor israelense adverte ao final do segundo parágrafo:
— Todas as culturas humanas são, em parte, legados de impérios e civilizações imperiais, e nenhuma cirurgia acadêmica ou política pode remover o legado sem matar o paciente.
Como a própria classificação “índio” deriva de um erro do “descobridor” da América, o navegador genovês Cristóvão Colombo (1451/1506), que morreu acreditando ter chegado às Índias, o exemplo usado por Harari é oportuno com a polêmica carnavalesca:
— A conquista e ocupação da Índia pelos britânicos custou a vida de milhões de indianos e foi responsável pela humilhação, exploração contínua de outras centenas de milhões. Ainda assim, muitos indianos adotaram, com o entusiasmo dos convertidos, ideias ocidentais, como autodeterminação e direitos humanos (…) Os britânicos mataram, feriram e perseguiram os habitantes do subcontinente, mas também uniram um mosaico desconcertante de reinos, principados e tribos em guerra (…) Eles assentaram as bases do sistema jurídico indiano, criaram sua estrutura administrativa e construíram a rede de ferrovias que foi fundamental para a integração econômica. A Índia independente adotou a democracia ocidental, em sua versão britânica, como forma de governo. O inglês ainda é a língua franca do subcontinente (…) Quantos indianos, hoje em dia, gostariam que houvesse uma votação para destituí-los da democracia, da língua inglesa, da rede de ferrovias, do sistema jurídico (…) utilizando o argumento de serem legados imperiais? (…) Se o nacionalista extremo hindu fosse destruir todas as construções deixadas pelos conquistadores britânicos (…) o que faria com as estruturas deixadas pelos conquistadores muçulmanos, como o Taj Mahal?
Harari encerra com uma instigante (in)definição histórica entre mocinhos e bandidos, que lembra os westerns do mestre Sergio Leone (1929/89), reinventor italiano do gênero cinematográfico fundado nos EUA, em outra apropriação cultural:
— Ninguém sabe ao certo como resolver a questão espinhosa da herança cultural. Qualquer que seja o caminho escolhido, o primeiro passo é reconhecer a complexidade do dilema e aceitar que a divisão simplista entre mocinhos e bandidos não leva a lugar nenhum. A menos, é claro, que estejamos dispostos a admitir que costumamos seguir o exemplo dos bandidos.
Na dúvida, curioso constatar que a ativista contrária às fantasias de índio no Carnaval foi adotada ainda criança por um casal de São Paulo e batizada como Kátia Rodrigues. Ela resgatou as origens indígenas já adulta, ao adotar o nome Katú Mirim, em cerimônia na aldeia Guarani Mbya, no Jaraguá, em São Paulo.
Em contrapartida, Ysani Kalapalo nasceu na aldeia que leva como sobrenome, no Parque Indígena do Xingu, em Mato Grosso, da qual saiu para ter contato pela primeira vez com não índios e a língua portuguesa aos 12 anos. Hoje vivendo entre a cidade e sua tribo, ela defende que “uso de cocar no Carnaval é troca, não discriminação”.
Revogada a troca entre culturas, com cada uma mantendo apenas para si o que criou, difícil saber onde estaríamos. Na analogia entre a Índia e seus conquistadores ao longo dos tempos, os resultados seriam ainda mais radicais do que a destruição de ferrovias e do Taj Mahal.
Como exemplo, por volta de 400 d.C. os algarismos de 0 a 9 foram estabelecidos na Índia. Adotados por seus conquistadores árabes, que também conquistaram Espanha e Portugal, chegaram à Europa no séc. X. Daí o nome indo-arábicos. Sem eles, toda a ciência da computação — depois desenvolvida por britânicos, alemães e estadunidenses, com a base binária indiana do 0 e do 1 — simplesmente não existiria.
Aos críticos da apropriação cultural, talvez fosse a apoteose. Com cocar e sem computador.
Publicado hoje (18) na Folha da Manhã
O humanismo é religião? Capitalismo e socialismo também? Como assim?