Nunca tive proximidade com a atriz Maria Helena Gomes, falecida ontem, ao 61 anos. Mas, com participações modestas e sazonais na produção cultural de Campos desde os anos 1990, não tinha como não (re)conhecer a importância do trabalho de Leninha na cena teatral goitacá. Para conhecê-lo um pouco melhor, recomendo a enriquecedora matéria dos jornalistas Celso Cordeiro Filho e Antônio Filho, editada com denodo pelo Rodrigo Gonçalves e publicada (aqui) na edição de hoje da Folha da Manhã.
Entre hoje e ontem, recebi dois testemunhos sobre a atriz campista. E, pelas retinas de duas mulheres que admiro bastante, a professora Beth Araújo, vencedora do prêmio Alberto Ribeiro Lamego, e a jornalista e escritora Paula Vigneron, conheci melhor a vida e a obra de uma mulher admirável. Nos dois textos sensibilíssimos sobre Leninha, fiz da emoção de Beth e Paula a minha. E nesta tarde de domingo, convido você, leitor, à mesma comunhão:
Uma estrela
Por Beth Araújo
Com o falecimento de Maria Helena Gomes, abre-se uma lacuna na cultura de Campos. Guardo uma admiração imensa por sua história de vida: nascida numa família pobre, a duras penas se fez professora de Educação Artística, dando ênfase em seu trabalho pedagógico à formação teatral. Percebeu o valor da cultura como forma de dimensionar o processo educacional. Ingressou no Estado duas vezes por concurso. E, como professora, criou e educou as duas filhas. Formou-se pela Faculdade de Filosofia de Campos. Desde cedo, apaixonou-se pelo Teatro e lutou pela cultura de Campos enquanto teve saúde.
Vi Leninha, pela primeira vez, no palco do Sesc , ao lado de Artur Gomes, numa interpretação soberba da peça “Fando e Liz”, de Arrabal , dirigida por Orávio de Campos Soares. Tenho uma gratidão enorme por seu trabalho no setor Cultural do Crec-Campos, no Governo Brizola, quando fui diretora do referido órgão. Ela elaborou o projeto Teatro na Escola, que coordenou ao lado de João Vicente Alvarenga e Marcos Wagner Coutinho. Dele saíram artistas como Neuzinha da Hora e outros que formaram o elenco da peça “O Auto do Lavrador Na Volta do Êxodo”, dirigido por Orávio e apresentado no Teatro João Caetano , no Rio de Janeiro , onde foi assistida por pessoas renomadas do mundo artístico, como Tônia Carteiro, Paulo Autran e outros. Do mundo político, destacou-se na platéia o legendário Luiz Carlos Prestes.
Simples demais, Leninha era dotada de valores humanos incomuns: generosa, prestativa, despojada, incansável. Espero que ela tenha nos anais da cultura de Campos o lugar de destaque de que se faz merecedora. Que os governos, indepedente de credos políticos, cumpram o dever de homenageá-la de forma justa e à altura da grande estrela que foi e que hoje passa a ocupar seu lugar numa constelação maior.
Uma noite em Nova York
Por Paula Vigneron
Conheci Maria Helena Gomes aos 16 anos. Lena. Leninha. Uma mulher doce que, junto à ternura, transparecia força. Era 2009. Eu estava entrando, pela primeira vez, em um curso de teatro. Sentia medo misturado aos problemas interiores e exteriores da época. Adolescência. Ansiedade. Preocupação. Desânimo. Precisava de algo que me motivasse.
Tudo era novo naquele lugar. As pessoas. Os espaços. Os discursos. As cenas reais e da ficção. Fui recebida com carinho por Lena. Senti admiração desde o primeiro momento. Durante todo o curso, meu carinho por aquela figura delicada e forte crescia a cada dia. O tempo passava, e eu amadurecia com os aprendizados dali. No início, a vergonha avassaladora, que foi sendo quebrada e transformada em prazer durante as aulas.
Em uma daquelas noites, passei um tempo na sala de Lena. Estava acompanhada por colegas do curso. Sentada em uma cadeira giratória, ela usava o computador e conversava conosco. Entre leituras e comentários, acessou o YouTube para nos mostrar uma canção. Eu estava na cadeira à frente dela, observando-a. Logo depois, as pequenas caixas de som ecoaram a voz de Frank Sinatra em “New York, New York”. Ouvi com atenção enquanto ela nos contava fatos sobre o cantor. Era a primeira vez que o escutava. Lembro-me de permanecer em silêncio, quase sagrado, atenta à fala de Leninha somada aos tons de Sinatra.
Meses depois, nós nos preparávamos para o espetáculo de encerramento. A obra escolhida para a encenação foi de Charles Dickens. “Um conto de Natal”. Os papeis foram distribuídos. Os ensaios uniam horas de tensão e leveza. Em dezembro, subimos ao palco do Teatro de Bolso Procópio Ferreira para levar o trabalho ao público. Foram duas noites de casa cheia. Entre aplausos e apresentações, Lena foi ao microfone e agradeceu a todos. A presença da plateia. O empenho do elenco. Todas as etapas vencidas até ali.
Enquanto encerrava sua fala, a ela, foi dado, pela administração do teatro, um buquê de flores. Era uma forma de agradecimento por todos os anos de história e por ter orientado o elenco, formado por crianças, adolescentes e adultos, ao objetivo daquela noite. O Teatro de Bolso foi tomado por aplausos e gritos vindos da plateia e do palco. Eu me lembro da emoção de estar ali e de homenageá-la, entre palmas e lágrimas, pelo que ela representou para mim enquanto estive sob a proteção do Palácio da Cultura, em noites de aprendizado.
Por rumos diferentes, precisei me afastar das aulas e daquelas pessoas que me deram a chance de conhecer uma nova realidade. Mas, mesmo de longe, continuava a seguir os passos deles. Uns cresceram e foram para outros pousos. Outros se despediram antes da hora. E Lena continuava ali, recebendo e mostrando a muitos, com sonhos e devoção, os caminhos possíveis.
Tive a oportunidade de encontrá-la em outros momentos, sempre com o respeito e carinho que conservei em meus caminhos. Com o passar dos anos, já com o cotidiano atrelado à redação, entrevistei-a por telefone. Ela respondia às perguntas, de forma solícita. Do outro lado, a quase jornalista a ouvia e dava, sem que ela percebesse, lugar à adolescente que a conhecera anos antes. E, entre perguntas, revivia, com gratidão, a breve e marcante trajetória que levou sua vida a cruzar, em noites de arte, realidade e trocas embaladas por Sinatra, com a de Lena, antes que esta saísse, precocemente, de cena, deixando a seus companheiros e admiradores o papel de dirigir, deste lado, o destino e suas peças.
Foi um ser humano exemplar. Conheci-a através de minha filha, que, encantada com ela, me fez admirá-la.
No grande teatro astral, ela está, neste momento, ao lado dos que a antecederam. Fará falta aqui, mas será muito aplaudida pó lá.
Como eu sinto sua falta