Durante quatro ou cinco internações hospitalares a que fui submetido por causa de caprichos de um coração rebelde, recorri a expedientes da memória para passar o tempo em dias e noites geladas das UTIs. Na primeira vez fui recuando no tempo em busca dos nomes dos prefeitos de Campos e só consegui chegar até a eleição de José Alves de Azevedo em 1958. Na verdade, foi a segunda eleição de José Alves, eleito pela primeira vez em 1950, mas só descobriria depois da alta hospitalar e mais interessado em conhecer os antecedentes até Rodrigues Peixoto, que inaugurou a galeria de alcaides em 1904. Por mais incrível que possa parecer, tarefa menos difícil foi puxar a fila de ex-presidentes dos Estados Unidos, onde religiosamente se realizam eleições de quatro em quatro anos, sem casuísmos e com mandatos de tempo invariável. Sem papel ou caneta, cheguei ao primeiro mandato de Franklin Delano Roosevelt, em 1932, sendo ele reeleito em 1936, 1940 e 1944. Depois dele os americanos limitaram a reeleição a apenas um mandato.
Enquanto isso, na volátil legislação eleitoral brasileira, o tamanho dos mandatos variou de quatro, dois e seis anos para nossos prefeitos eleitos neste período entre 1958 e 2018. Em 1970, por exemplo, a pretexto de coincidir as eleições seguintes com a escolha de integrantes do Congresso Nacional, os prefeitos foram eleitos para um mandato-tampão de dois anos. Em Campos, foi eleito Rockfeller de Lima, então filiado à Arena. Finda a experiência, os alquimistas políticos da ditadura que comandava o país resolveram acabar com a coincidência e espichou os mandatos dos prefeitos eleitos em 1976 e 1982 para seis anos, sendo vencedores, respectivamente, Raul Linhares — que acabou renunciando após cinco anos e deixando o último para o vice, Wilson Paes — e Zezé Barbosa, que viveu terceiro e último mandato até a última gota, sem deixar o vice, Waldebrando Silva, um dia sequer à frente da Prefeitura.
Como o tempo no leito de um hospital passa mais lento do que aqui fora, principalmente com uma trava na virilha imobilizando todo o corpo pelas primeiras 48 horas depois da cineangiocoronariografia, é insuficiente buscar na memória nomes de prefeitos, presidentes dos EUA ou do Brasil, se bem que no caso deste últimos a tarefa é mais fácil: república velha (Deodoro, Floriano, Prudente de Moraes, Campos Sales, Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha, Hermes da Fonseca, Wenceslau Brás, Rodrigues Alves (eleito de novo, mas morreu antes da posse), Epitácio Pessoa, Artur Bernardes, Washington Luis, Júlio Prestes, este não tomou posse por causa do golpe de 1930 que inaugurou a era Getulista que durou até 1945, quando outro golpe derrubou Vargas. Redemocratizado, o Brasil elegeu o general Eurico Gaspar Dutra, como apoio de Vargas, que voltaria em 1950 pelo voto direito até sair da vida para entrar na história com um tiro no peito em 1954. Um ano depois começou uma curta e nova era, com Juscelino Kubitscheck, sucedido por Jânio, que renunciou oito meses após a posse e deu munição para o golpe três anos depois contra o sucessor João Goulart. Veio o ciclo militar com Castelo Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel e Figueiredo. Com a redemocratização, mais um presidente morto antes da posse — Tancredo — e os eleitos, Collor, FHC, Lula e Dilma, o primeiro e a última, impedidos e substituídos pelos vices, Itamar e Michel Temer.
O passatempo mais prazeroso encontrado na UTI, no entanto, foi “viajar” pela Macondo, onde choveu, sem parar, “por quatro anos, onze meses e dois dias”, com a quase impossível tarefa de traçar a árvore genealógica dos Buendía, cujos 17 filhos, netos, bisnetos da fantástica saga parida da genialidade de Gabriel Garcia Márquez se repetem por cem anos em Aurelianos. Além do coronel Aureliano, que depois lutar e perder 32 guerras passava o tempo confeccionado peixinhos de ouro, o mundo mágico de Garcia Márquez tem outros personagens inesquecíveis com suas verdades cortantes. O próprio coronel, “já taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade compreendeu que uma boa velhice não é outra coisa senão um pacto honrado com a solidão”. E Rebeca, a que “tinha necessitado de muitos anos de sofrimento e miséria para conquistar os privilégios da solidão e não estava disposta a renunciar a eles em troca de uma velhice perturbada pelos falsos encantos da misericórdia”.
Cem anos de Solidão, publicado pela primeira vez em 1967 e que em 1982 deu o Prêmio Nobel de Literatura ao escritor colombiano, foi o primeiro de quase uma dúzia que li e reli do autor que morreu em 2014. É neles que me refugio de quando em quando, como que adiando o inevitável momento de me pôr “a salvo dos tormentos da memória”.
Em tempo 1 – Felizmente não frequento uma UTI desde 2012.
Em tempo 2 – Lamento o falecimento, nesta terça-feira, dia 22, do jornalista Alberto Dines, autor de um dos melhores livros sobre jornalismo, “O papel do jornal”.
Em tempo 3 – Agradeço ao amigo Aluysio o honroso convite para escrever aqui em seu Blog, compromisso quinzenal cumprido com prazer desde janeiro do ano passado, mas que peço licença para interromper a partir de agora. Obrigado também aos me honraram com a leitura de minhas reflexões.