Paula Vigneron — Luzia

 

Campos, pôr do sol de 20/05/18 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)

 

 

Às oito da manhã, o desjejum estava sobre a mesa. Diariamente, os alimentos eram consumidos a essa hora. Pães, bolo, suco e café, arrumados pelas mãos habilidosas de Luzia, eram devorados por seu filho e marido com uma pressa característica da família. Eles conversavam animadamente enquanto a mulher lavava as louças, com um leve sorriso no rosto, captando frases soltas e risadas escandalosas. Não sabia sobre o que os dois falavam, mas gostava de ver a união deles. Mesmo que sempre se mantivesse distante para não incomodá-los, admirava-os em silêncio.

Luzia, em sua aparência cansada, não negava pedidos dos seus. Sufocava suas vontades para satisfazer os outros, mas não lamentava. Nunca levantara a voz para contestar o que era dito pelos homens da casa: Paulo, o marido, e Leonardo, o filho. Autoritários, raramente eles abriam mão de seus desejos para satisfazê-la. Mas, resignada, Luzia entendia que a vida era exatamente assim. Fora criada para servir, não para contestar. Embora, em certos momentos, tentasse modificar a sua situação, era contrariada pela família.

Ainda menina, gostava de correr pela casa. Enquanto o pai trabalhava, ficava observando-o de longe, concentrado em seu escritório. “Não faça barulho. Já mandei você ficar quieta e não vou repetir”, gritava diariamente. Ele não sabia, mas a filha era a sua maior admiradora. No entanto, ela evitava dirigir a palavra àquele homem sempre ocupado para dizer a ele as suas verdades. A mãe de Luzia vivia para cozinhar e agradar ao marido. A garota tinha herdado suas características, e a forma de viver de ambas era semelhante. Desde pequena, Luzia respeitava quaisquer sinais enviados pelo pai para que ele não perdesse a paciência e a repelisse mais do que o normal.

Na adolescência, tornou-se companheira de atividades de sua mãe. Sempre com um sorriso leve no rosto e um traço confuso no olhar, ora feliz, ora pesaroso, ela vivia para auxiliar no que fosse possível. Acreditava que, dessa maneira, poderia afastar de si a alcunha de estorvo, dada pelo seu pai, ainda mais impaciente. Por mais que a jovem tentasse agradá-lo, era afastada com repulsa.

Casou-se com Paulo. Encontrou no rapaz a oportunidade de sair de uma vida em que fora jogada sem escolha. Via no noivo, que a tratava com um carinho atípico, a chance de ter uma vida mais próxima da que era descrita pelos romances narrados por suas amigas. Ao encarar a realidade do convívio diário, percebeu o engano e viu as ilusões se esvaírem diante de seus olhos. Luzia se tornou a sombra do que costumava ser a mãe. O silêncio em que era obrigada a viver a sufocou. Em algum pequeno espaço dentro de si, ela estava escondida e trancafiada. As chaves tinham se perdido entre uma lágrima e outra.

Sem se despedirem, Leonardo e Paulo saíram de casa, conversando animadamente. Mecanicamente, Luzia foi até a mesa e retirou as sobras do café da manhã. Agia sem sentir. Vivia sem perceber e entender para onde se dirigia. Evitava pensar e arrumava trabalhos que exigiam esforço físico para não se concentrar em suas idéias angustiadas. Por trás do perfeito desempenho do papel de dona de casa, sua verdadeira identidade teimava em vir à tona. Quando se via sozinha, sentava-se em uma cadeira na varanda e encarava seu passado. Lembrava-se da infância, dos maus tratos e desprezo e da falta de iniciativa da mãe para ajudá-la a mudar a realidade. Guardava rancor, medo, mágoas e tristeza. Vivia com um esboço de sorriso. Lutava para ocultar o que se passava em sua alma. Trouxera da infância o medo de atrapalhar a família. Sentia que deveria ser grata ao marido e ao filho e não lamuriar a vida. Mas estava enfraquecida e com maior dificuldade para manter a máscara de mulher perfeita e mãe dedicada. Gostaria de vê-los preocupados verdadeiramente com ela ao invés de enxergarem-na como uma máquina.

Mas sabia que a culpa era sua. Acostumou-os assim. Como sempre, havia feito tudo errado. Seus conflitos eram cada vez maiores e mais intensos. Percebia que presenciava um desmoronamento dentro de si e não conseguia mais reconstruir o que fora perdido. Estava velha. Suas mãos fracas, embora mantivessem a agilidade, doíam muitas vezes e eram trêmulas. A sensação de solidão a seguia por onde fosse. O ventre, outrora ocupado, abrigava um enorme vazio, que crescia cada vez mais. Se o parisse, tudo mudaria. E sabia que o parto se aproximava.

Acenava esporadicamente para vizinhos que passavam animados. O que os fazia sorrir? Não compreendia os motivos. Não entendia o porquê de as pessoas estarem sempre felizes. Escondia seus sentimentos mais uma vez para que todos a vissem em sua falsa perfeição. Sabia que os maridos da redondeza invejavam Paulo pela mulher dedicada. A mãe de Leonardo era usada como exemplo na roda de amigos. Mas ninguém conhecia Luzia.

Levantou-se da cadeira e caminhou até a cozinha. Pegou uma xícara de porcelana e encheu-a de café. À bebida, acrescentou algumas gotas de morte e tomou-a lenta e silenciosamente. Optara, mais uma vez, por não atrapalhar quem estava por perto.

 

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Este post tem 3 comentários

  1. Savio

    Foto e texto fantásticos! Meus sinceros parabéns a ambos!

    1. Aluysio Abreu Barbosa

      Caro Savio,

      Em primeiro lugar, desculpe pelo atraso no retorno. Em segundo, modestamente enodsso seu juízo sobre o conto da Paulinha, que faz parte do seu primeiro livro, “Sete Balas ao Luar”, lançado em 2015. Por fim, agradeço pela generosidade com a fotografia do nosso horizonte rubro de poente.

      Abç e grato pela participação!

      Aluysio

  2. Paula Vigneron

    Savio, agradeço imensamente e peço desculpas pela demora no retorno. A foto é fantástica. Quanto ao conto, obrigada pela generosidade de sempre. Fico sempre feliz por receber seus comentários e por saber que gosta dos meus textos. Grande abraço!

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