Existe um impeachment do bem e do mal no Fla x Flu da política brasileira? O sociólogo Fabrício Maciel respondeu com a inversão na mão ideológica: “como no caso do cidadão de bem que deve ser armado contra o bandido”. Ele é coordenador do Núcleo de Estudos sobre Desigualdade (Nuesde) da UFF-Campos, onde leciona. E lá tem feito um trabalho de pesquisa em entrevistas com executivos do Estado do Rio. A partir do material obtido, teceu uma série de considerações sobre os rumos da política nacional. E também falou sobre reforma da Previdência, Lava Jato e meritocracia. Defensor da esquerda e crítico do fenômeno Bolsonaro, ele buscou entender seu “discurso de rápida mobilização afetiva”.
Folha da Manhã – Qual o objetivo da pesquisa “O habitus corporativo: um estudo teórico e empírico sobre a origem de classe de executivos no Estado do Rio”. E quais foram suas conclusões?
Fabrício Maciel – O objetivo da pesquisa é mapear esta fração de nossa sociedade, procurando identificar e compreender principalmente a sua origem social, que na verdade é uma origem de classe. O termo executivo é genérico e se refere a diretores e gerentes de empresas de diversos níveis. Nós temos, até o momento, 30 respostas, que fazem parte da primeira fase da pesquisa, que é um survey respondido online pelos entrevistados. Com isso, pudemos identificar três níveis de executivos: (1) gerentes; (2) diretores; (3) CEOs, presidentes e vice-presidentes. O objetivo deste mapeamento é situá-los na estrutura de classes do capitalismo brasileiro contemporâneo. Um dos principais dados nesta direção é que a grande maioria nasceu, cresceu e vive atualmente em bairros nobres. A maioria é composta por homens, na faixa etária entre 31 e 66 anos, que se declaram brancos e heterossexuais. Aqui raça, classe e gênero precisam ser compreendidos articuladamente. A maioria dos entrevistados se identifica como pertencendo à classe média ou média alta. Isso é verdade, se considerarmos que existe uma elite no Brasil e no mundo hoje que é muito mais rica e poderosa do que estes executivos, de quem eles na verdade são empregados. Por outro lado, levando em conta que uma pessoa com o salário de 27.000,00 reais no Brasil hoje faz parte dos 10% mais ricos, podemos concluir que os executivos são uma espécie de “sub-elite”, em relação ao restante da população pauperizada. Esta definição precisa considerar, inclusive, que eles são os “empregados representantes do capital”, que organizam a dominação social do capitalismo atual através da reestruturação constante do mundo empresarial, o que é a principal função dos grandes executivos, que situo aqui no nível 3. Em resumo, o trabalho destes grandes executivos, que conta com o auxílio dos médios e pequenos (níveis 1 e 2) é defender e tentar ampliar o patrimônio da elite proprietária dos grandes grupos corporativos e investidora dos grandes negócios. Não por acaso, o perfil destes executivos é conservador. A grande maioria se identifica como de “centro” ou de “direita”, é a favor da Lava-jato, admira Sérgio Moro e defende um discurso decorado sobre o valor da meritocracia e o papel das empresas enquanto vanguarda da sociedade, ao mesmo tempo em que constrói o discurso de que só existe corrupção no Estado. No geral, estamos presenciando um fato novo: os representantes do mercado têm militado ativamente pela desmoralização, deslegitimação e desconstrução da esfera política enquanto capaz de conduzir os assuntos da sociedade. Basta ver os artigos de Flávio Rocha, dono da Riachuelo, ex-presidenciável, agora fechado com o “centrão” de Alckmin e militante do MBL, na revista Forbes Brasil, cujo público é a classe média alta e a elite brasileira. As principais matérias da revista Exame, não por acaso a mais lida dos meus entrevistados, também trabalham, com a chancela de seus editoriais, na mesma direção. A principal revista conservadora deste país não é a decadente Veja, mas sim a sofisticada Exame. É impressionante que a Exame e a Forbes Brasil idolatrem figuras decadentes como Eike Batista, Marcelo Odebrecht, Pedro Parente e Joesley Batista, dentre outros, tentando construir biografias de sucesso imitando o padrão Forbes norte-americano. Esta militância de mercado possui obviamente interesses e consequências políticas, formando a opinião de nossos entrevistados. A principal delas é o fortalecimento do mercado enquanto única instituição legítima, uma super instituição, acima de todos os movimentos sociais populares criminalizados pela grande mídia, da desmoralizada esfera institucional da política e do judiciário explicitamente partidarizado, para decidir as eleições deste ano. Ou seja, a construção ideológica em curso (que reflete o cenário global, capitaneado por Trump, Macron e outros) é que Estado e sociedade não possuem força política legítima para a condução de seus próprios assuntos, dependendo assim de uma esfera moral superior, que seria o mercado. Não poderíamos ter cenário mais antidemocrático e assustador do que este.
Folha – A pesquisa foi realizada pelo Núcleo de Estudos sobre Desigualdade Social (Nuesde) da UFF-Campos, do qual você é coordenador. Docentes e discentes universitários das ciências humanas, sobretudo em universidades públicas, costumam ter a igualdade como principal valor. Que costuma ser a liberdade para os executivos, sobretudo de corte liberal. Como haver equilíbrio e olhar sem dogmas ou preconceitos de lado a lado?
Fabrício – Eu considero esta pergunta de extrema importância, pois muito me preocupa o clima de ódio incitado pelo calor dos acontecimentos do contexto político atual e infelizmente reproduzido muitas vezes pela grande mídia. Precisamos ter muito cuidado. A política é um castelo construído sobre o frágil alicerce de areia das emoções e dos impulsos humanos. Todos nós nos identificamos afetivamente com correntes partidárias e candidatos, ou com nenhum deles. A falta de identificação afetiva com “o sistema” como um todo, como se diz no senso comum, tem levado muita gente e se identificar com o Bolsonaro como candidato “anti-sistema”. Tenho amigos simpáticos ao Ciro, outros ao PSOL, ao PT e também amigos simpáticos ao atual “centrão” (que para mim na verdade é a direita se distinguindo do Bolsonaro). Tenho conversado respeitosamente com amigos e pessoas na rua e tentado desenvolver a sabedoria de escutar. Se assumirmos que todos estamos de coração envolvidos, fica tudo mais fácil. Sei que esta é uma tarefa difícil, mas precisamos tentar. Já conversei com pessoas na rua, espontaneamente, simpatizantes do Bolsonaro, e vi que são pessoas boas. Estão apenas revoltadas com a política, o que se explica em grande parte pela deslegitimação da política. Estas pessoas acabam sendo vítimas fáceis do discurso radical de extrema direita de Bolsonaro, exatamente por ser um discurso de fácil mobilização afetiva. Você lembrou muito bem os valores da igualdade e da liberdade. Talvez o que esteja faltando em nossa vida pública é exatamente o da fraternidade. Acho que é este tom de tolerância e respeito que precisamos construir, contra os dogmas e preconceitos.
Folha – Após ter chegado ao poder com o “Lulinha Paz e Amor” criado por Duda Mendonça em 2002, o PT e a esquerda brasileira retornaram ao “nós contra eles”, a partir da acirrada campanha de reeleição de Dilma em 2014 e do seu processo do impeachment. Não foi justamente a corda esticada desse “nós contra eles” que acabou gerando o fenômeno Jair Bolsonaro (PSL)?
Fabrício – Não acredito que foi o PT, nem a esquerda brasileira, que não se restringe a um partido, mas se estende a inúmeros movimentos sociais legítimos ao longo do país, quem criou a atual atmosfera de intolerância. Pelo contrário, uma das grandes marcas do Lula, simbolizado no “Lulinha Paz e Amor” é a capacidade de conciliação e de realização de acordos, extremamente importante na política, que é uma esfera de poder e interesses como qualquer outra esfera de ação da sociedade. A ausência desta habilidade, que na psicologia contemporânea tem o nome de inteligência emocional, tem sido demonstrada, por exemplo, por Ciro Gomes, numa sequencia de trapalhadas recentes que estão dificultando o seu caminho ao planalto. Mas vamos aos fatos. Foi exatamente na reeleição de Dilma, em 2014, que se iniciou a criação do atual contexto do “nós contra eles”. Dilma, que é uma grande mulher, não teve segundo mandato, boicotada sistematicamente por um movimento obscuro liderado por Aécio, dentre outros, revoltados com sua derrota. Lembro-me que estava em Juiz de Fora na ocasião e muitos eleitores de Aécio comemoravam sua vitória pouco antes do final da apuração. Muita gente achava que ele ia ganhar. Ali se iniciou um novo capítulo da história recente brasileira. Continuarei este ponto na pergunta seguinte sobre o impeachment de Dilma. Voltando a Bolsonaro, acho que seria impreciso atribuir ao PT a criação de um contexto que o gerou. O problema é bem mais complexo. Primeiramente, Bolsonaro como figura radical e messiânica não é uma grande novidade no Brasil. Tivemos o Enéas no passado e outras figuras radicais de direita que de alguma forma sempre apareceram. A novidade é o contexto brasileiro e global atual que proporciona grande adesão a sua figura. O pai de Bolsonaro é o discurso do novo capitalismo global financeirizado, que precariza e fragmenta as relações de trabalho, criando retaliação e desconfiança entre as classes sociais. Este é o mesmo pai que gerou Donald Trump, nos Estados Unidos, e Macron, na França. O ovo da serpente hoje é o mesmo de sempre: a fragmentação das relações sociais e a falta de confiança e fraternidade. A serpente também é a mesma: o mercado capitalista e sua cultura excludente, que promete falsamente prestígio, poder e status a todos os que traçarem para si o caminho “da corrida ao prestígio”, como genialmente definiu o grande sociólogo Wright Mills em seu grandioso livro “A elite do poder”, escrito nos anos de 1950 nos Estados Unidos. Como vemos isso no Brasil hoje? Bolsonaro se beneficia do cenário de enfraquecimento da esfera política, o que é hoje um fenômeno global. Em resumo, é o mercado com suas promessas sempre renovadas de realização e satisfação pessoal quem cria o contexto de descrença na política e de aposta messiânica no discurso radical de extrema direita. Não por acaso, Bolsonaro aproximou muito seu discurso do de Trump recentemente.
Folha – Considera o impeachment de Dilma como golpe? Por quê?
Fabrício – Há boas razões para dizer que sim. Retomando o argumento da questão anterior, inicia-se uma revolta muito grande em alguns setores da elite brasileira, com a derrota de Aécio em 2014. Ali se rompe o grande pacto, o “acordão” que o PT conseguiu sustentar desde a primeira eleição de Lula. Seria muito ingênuo atribuir ao nível de manejo de Dilma toda a desconstrução de um grande acordo que durante algum tempo deu certo. A política não é feita apenas de interesses materiais, mas também de honra e de valores. A esta altura, depois que Dilma sobrevive a seu primeiro mandato, uma parte da elite brasileira começa a ficar realmente incomodada com o acordão e principalmente com seus efeitos na sociedade. Gostando-se do PT ou não, e aqui estou apenas me remetendo aos fatos, não podemos esquecer que o legado lulo-petista melhorou muito a vida das classes populares no Brasil. Isso incomodou diretamente a classe média alta, que passou a compartilhar espaços físicos e sociais com os emergentes, como é o caso emblemático dos aeroportos. Indiretamente incomodou a elite que, ao perceber a insatisfação da classe média, que a elite precisa ter como sua aliada, resolveu tomar novamente nas próprias mãos as “rédeas” da história. De alguma forma, o PT administrou, com a permissão de grandes frações da elite, o pacto social brasileiro enquanto pôde, até que seu lado mais social “azedou o caldo”. O resto da história nós sabemos. Eduardo Cunha entra com o pedido de Impeachment na câmara, em 2016, e boa parte da novela que vimos na mídia é distração e não explicita os reais motivos da insatisfação de uma elite que anteriormente deixou Lula governar.
Folha – O que achou da tentativa de impeachment de do prefeito carioca Marcelo Crivella (PRB)? Vê incoerência em quem, como o deputado estadual Marcelo Freixo (Psol), chamou o impeachment de Dilma de golpe, mas considerou a tentativa sobre Crivella como justa? Desde a queda de Fernando Collor de Mello da presidência, que o PT apoiou em 1992, há o impeachment do bem e do mal para a esquerda brasileira?
Fabrício – O impeachment já virou uma carta na manga de forças de oposição aos governos. Vejo aqui a possibilidade de banalização de uma coisa muito séria. Daqui há pouco qualquer coisa será motivo de Impeachment. Mas na prática o processo não é simples. Um governo só cai quando perde três coisas: credibilidade, popularidade e apoio político. É o que parece acontecer com Crivella, que anda cometendo graves erros. Nunca me pareceu um grande político, em nenhum sentido, e seu envolvimento explícito com uma igreja deixa sua legitimidade muito fragilizada para parcelas da população de outra orientação espiritual. Ele é explicitamente particularista em um assunto crucial. Quanto ao Freixo, é preciso considerar seu contexto local e o contexto nacional que leva Dilma à queda. Por isso, em princípio não é incoerente. O problema do Freixo é outro: ele é tão particularista quanto o Crivella, mas em outra direção. Não consegue falar para o pobre carioca, apenas para a classe média ilustrada. Por isso perdeu a eleição. O assunto envolvendo Collor é mais complexo. Se elencarmos aqui as causas do impeachment dele veremos que, seguindo o caminho da coerência, quem deveria sofrer impeachment atualmente seria o Temer: escândalos de corrupção, medidas administrativas impopulares, vendas de estatais etc. Qualquer semelhança não é mera coincidência. No caso de Dilma é diferente. A questão acerca das pedaladas fiscais é frágil e permanece como uma discussão jurídica em aberto. É tão frágil que ela não foi punida com a perda dos direitos políticos e agora lidera a corrida eleitoral para o senado em Minas Gerais. Não acho que a esquerda tenha criado o impeachment do bem e do mal, mesmo porque a direita também se percebe como sendo “do bem”. Inclusive, o discurso do bem tem sido muito mais mobilizado recentemente pela direita do que pela esquerda. Quem foi para as ruas batendo panelas supostamente por um país melhor, vestindo verde e amarelo? A mesma classe média de direita, casada com o centrão, mas que flerta com Bolsonaro. Não por acaso, este último muitas vezes apenas radicaliza o discurso do centrão, como no caso emblemático do cidadão de bem que deve ser armado contra o bandido.
Folha – Acha que a prisão de Lula pode ser revertida pelo Supremo Tribunal Federal (STF)? E ainda dá para acreditar que ele poderá ser candidato, depois que Luiz Fux assumiu o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 6 de fevereiro, poucos dias após Lula ser condenado por unanimidade na 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), dizendo: “ficha suja está fora do jogo democrático”?
Fabrício – Acho muito difícil que Lula seja candidato. Mas ele está usando o seu principal capital político, que é a sua popularidade, para dar uma cartada final. Ele vai lançar alguém em cima da hora. A cartada é menos arriscada do que parece. Contar com a sua capacidade de transferência de votos é mais importante e sólido estrategicamente para o PT do que abrir mão de sua imagem de líder inconstestável e pai da esquerda brasileira contemporânea. Não por acaso, os espertos Boulos e Manuela beijaram sua mão e aceitaram sua bênção. Nem o falso rebelde Ciro Gomes, que não é de esquerda, mas sim o clássico político ambíguo de centro, pode negar isso. Quanto a questão da “Ficha limpa”, sabemos o que está em jogo. Dizer que Lula está preso por isso é uma das grandes anedotas da política brasileira contemporânea. É inegável que ele é um preso político, e faço questão de dizer que não sou filiado ao PT e nem a nenhum outro partido. Meu partido é a verdade sociológica e a pesquisa empírica de qualidade. Todo mundo sabe que vários outros grandes políticos deveriam estar presos se a lei não fosse seletiva como regra. A situação inclusive explicita a incapacidade política do centrão e da extrema direita, que perderiam de lavada para um Lula solto.
Folha – Em conversas pessoais, você disse estar curioso com a opção do “centrão”, ou “blocão”, como boa parte dos políticos fisiológicos da direita brasileira passaram a se chamar. Independente do nome, a opção deles foi o presidenciável Geraldo Alckmin (PSDB). Bolsonaro, que cortejava o “centrão”, quis desdenhá-lo após ter perdido seu apoio. Como viu esse movimento? Acredita que ele fará alguma diferença?
Fabrício – Bolsonaro tem dificuldades de articulação, inteligência emocional zero, muito parecido nisso com o Ciro, que também não conseguiu oficializar o noivado com o centrão. A dificuldade é tanta que até a Janaína Paschoal “fez doce” com Bolsonaro. Seu único capital político é um carisma de direita que fala para desesperados e reacionários. Da parte de Bolsonaro, bater em Alckmin faz todo o sentido por que eles disputam boa parte do mesmo eleitorado, ou seja, as frações mais conservadoras da elite e da classe média. Bolsonaro deve estar bem apreensivo, inclusive, por que agora sabe que Alckmin vai crescer. A união do centrão em torno do PSDB não deveria causar espanto a ninguém. É o lugar natural deles, basta olhar o histórico de cada um dos partidos envolvidos. Não podemos nos esquecer da história recente brasileira. Até a última eleição PSDB e DEM, principalmente, eram a direita clássica, tradicional, neoliberal, polarizando com o PT. De repente viram um “centrão”, com ares de direita light esclarecida e até de “esquerda democrática”, como alguns se denominam. A união do centrão é o marco decisivo destas eleições. A brincadeira começa para valer agora. Eles têm chances reais de estar no segundo turno. O outro movimento decisivo será a cartada final de Lula. E se eu fosse o centrão, não subestimaria isso. Não vou arriscar previsões, mas talvez o centrão tenha se livrado de Ciro e Bolsonaro em uma tacada só. Por fim, cabe dar o título de centro a quem realmente merece, e estes são o Ciro e a Marina. Ambos têm em comum a capacidade única de pregar princípios de esquerda e de direita ao mesmo tempo. É impressionante. O caso de Ciro é particularmente emblemático: como pode alguém ao mesmo tempo elogiar a Lava Jato, bater no Lula e dizer que vai revogar a reforma trabalhista e mexer na taxação das fortunas dos ricos? Ficou difícil saber para quem ele estava pregando. Por outro lado, o centrão é coerente em sua posição de direita. Sempre foi isso ai e não vai mudar. Pode ser que tenhamos um “mais do mesmo” entre PT e PSDB outra vez. Vamos ver.
Folha – Nas conclusões da sua pesquisa, você destacou que “a maioria (dos executivos entrevistados) é a favor das reformas trabalhista e da Previdência”. Em relação a esta última, há solução aritmética para o próximo governo do Brasil, sem fazê-la? Como driblar sua impopularidade?
Fabrício – É verdade. São respostas previsíveis, pois é óbvio que a cúpula do mundo corporativo deseje formas de contrato mais flexíveis, que a isenta quase que totalmente de encargos e agora especialmente a defende de processos na justiça. É o que está acontecendo neste exato momento. O número de processos contra os grandes empregadores está caindo e o número de derrotas por parte dos trabalhadores está aumentando. Efeito imediato da era Temer. Como eu disse antes, os executivos, em sua maioria, estão no front de batalha ao lado dos grandes empregadores e são muito bem pagos para isso. A questão se articula diretamente com a da reforma da Previdência. Ela não foi levada a cabo por problemas internos do governo, mas com isso não deixa de ser contra o trabalhador. Quer fazer com que este trabalhe até a morte e o povo sabe disso. Nesta hora o cidadão comum para e faz seus cálculos. Por isso é impopular. Uma verdadeira reforma da previdência, articulada à trabalhista, deveria levar em conta a saúde e a vida do trabalhador, e não trata-lo como escravo, como é o caso. Inclusive, isso contraria um princípio central do mundo corporativo, ou seja, cuidar do seu capital humano. É claro que se trata de uma ideologia. De modo simples: as empresas obrigam o trabalhador a trabalhar mais por menos, sem nenhuma garantia no presente (trabalhista) e no futuro (previdência). Isso é efeito da loucura do capital financeiro global hoje, enquanto as celebridades da Forbes acumulam bilhões que nem conseguem gastar. É por isso que um governo sério e equilibrado precisa por em prática os princípios do Estado democrático de direito, que são agora na era Temer sistematicamente revogados. O que é isso? Na prática, a única realização possível, sem a abolição do capitalismo, é a construção gradativa de um Estado de bem estar social. Se revisitarmos grandes autores sobre o tema como Thomas Marshall e Robert Castel, que analisaram várias experiências reais deste tipo na Europa, aprenderemos que não existe bem estar social sem a garantia econômica e moral de um patamar mínimo de dignidade para todas as classes sociais. Quando a nossa elite vai entender isso? Quando vai entender que a rapina de cima para baixo cria uma sociedade violenta e instável? Quando vai assumir esta culpa? Se voltarmos ao grande Joaquim Nabuco, um verdadeiro liberal do século XIX, no melhor sentido desta palavra, aprenderemos que uma sociedade que possui escravos é uma sociedade moralmente rebaixada e todos os seus membros, sem exceção, pagam por isso. Nossas classes abastadas pagam com o medo da violência. Precisam entender as razões dela. Não por acaso, muitos de meus entrevistados acham que uma das soluções para os problemas do Brasil é construir mais presídios. É trágico.
Folha – Outra conclusão junto a seus entrevistados, é que “a figura pública atual mais admirada é Sérgio Moro”. Como vê a atuação do juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba?
Fabrício – É verdade. É uma atuação que poderia ser entendida como seletiva, de um certo ponto de vista. A foto dele ao lado de Dória é muito emblemática. Lembra o conceito de “prestígio emprestado”, de autoria do grande Wright Mills. O sabor do prestígio, ou seja, esta espécie de reconhecimento fake das elites, é irresistível. Muitas vezes é melhor do que dinheiro. Se a análise de Wright Mills nos anos 50 estiver correta, trata-se de um aspecto essencial do caminho para a inserção e permanência nas “altas rodas” do poder e da fama.
Folha – Você também destacou que a “maioria (dos entrevistados) aprova enfaticamente a Lava Jato”. Mas pesquisas revelam que a operação, considerada no mundo como a maior da história contra a corrupção, tem apoio de mais de nove entre cada 10 brasileiros. Não é, portanto, um lastro que pesa independente das classes socioeconômicas?
Fabrício – É natural que a população como um todo aprove a Lava-jato, pois este mantra está sendo cantado diariamente pela grande mídia no ouvido das pessoas. O dado de que meus entrevistados, em sua maioria, a aprovam não deve ser percebido isoladamente. Ele se articula à admiração ao Moro e a um discurso decorado em favor da meritocracia e contra a corrupção do Estado. Também se articula a opinião do aumento da punição como solução dos problemas sociais no Brasil, o que legitima, por exemplo, a intervenção de Temer na gestão da segurança no estado do Rio de Janeiro. Estes dados, articulados, ajudam a esclarecer um perfil social, ou seja, uma parte significativa do que podemos chamar de nossa classe média alta, uma espécie de sub-elite. O perfil que se esboça é conservador, coerente com a visão de mundo que preserva os privilégios inerentes à condição de quem tem uma origem social abastada e confortável. O fato explícito de adesão à Lava-jato tem a ver com a sensação de punição ao PT. O fato implícito tem a ver com deslegitimação da política e a preservação moral do mercado.
Folha – Outro dado coletado dos entrevistados é que “a maioria acredita enfaticamente no discurso do mérito”. Na educação, por exemplo, não foi a partir da meritocracia que países como a Coreia do Sul, o Japão, a Finlândia e até a China deram um salto tremendo de qualidade e competitividade em suas sociedades? Como educador, o que pensa a respeito?
Fabrício – A gente precisa entender o que é a meritocracia enquanto discurso e valor moral. Uma coisa é a boa gestão de políticas educacionais, construção de escolas, geração de boas condições de aprendizado etc, que pode ser aprendida pela experiência de vários países. Ou seja, a igualdade de oportunidades. Outra coisa é o mito do mérito, valor maior sacralizado no mundo corporativo e pilar da sociedade moderna. As pessoas não são iguais em suas possibilidades de aprendizado e de desempenho por razões que serão encontradas em suas histórias de vida, leia-se histórias de classe, em grande medida. Quando fiz, durante meu mestrado, há doze anos, uma pesquisa com lavadores de carros em Campos, pude me deparar com esta triste realidade. Alguns deles relataram que não aprendiam nada na escola por que sofriam maus tratos em casa, passavam fome e precisavam ainda enquanto crianças trabalhar duro para ajudar nas despesas da casa. É muito triste que boa parte de nossa sociedade ainda ignore isso. Boa parte de meus entrevistados na pesquisa atual, por outro lado, teve a chance de aprender alguma língua estrangeira ainda jovem e de ter alguma experiência no exterior, o que é decisivo afetivamente para este tipo de aprendizado, por exemplo. É apenas um aspecto central do que estou definindo como “habitus corporativo”, ou seja, um conjunto de capacidades essenciais para a condição de executivo. Em resumo, para autores como Pierre Bourdieu, que cunhou o conceito sociológico de habitus, e de Wright Mills que definiu as habilidades das classes dominantes como uma “personalidade de elite”, tudo isso não tem absolutamente nada a ver com mérito, mas sim com uma condição de origem social privilegiada.
Publicado hoje (29) na Folha da Manhã