Catacumbas da Catedral de Lima, Peru, 02/11/14 (Foto: Aluysio Abreu Barbosa)
Fechou o caderno.
A capa estava surrada. Escurecida. As beiradas, encardidas. Quanto tempo havia demorado para perceber? O que restou das letras prateadas não formava mais o seu nome. Eram traços quase imperceptíveis, desgastados pelos dias e pelo excesso de manuseio. Abrira-o e fechara-o tantas vezes nos últimos anos que as impressões digitais pareciam se fundir em desenhos irreconhecíveis. Ou seria apenas ele?
Olhava-o com admiração e pesar. Cada página daquele caderno havia sido escrita com cuidado e delicadeza mesclados à solidão, por vezes. Em outras, havia uma ponta de raiva inconformada com os caminhos que aquelas palavras insistiam em seguir. Mas ele sabia. Não era possível mudar o destino. Nem mesmo os planos prévios que se alteravam para levá-lo a vias desconhecidas. Rabiscava. Apagava. Tentava reescrever. Mas nada o obedecia. Sentia o tempo escoar enquanto analisava cada detalhe daquele objeto. Para quê?
Abriu.
O menino percorria as páginas e, na 15, se encontrava com o adolescente. Rebelde. Engraçado. Certeiro. Na 18, o jovem acenava, ainda perdido por ter crescido tão de repente. Um homem encenava dar as caras na 21, mas era mais visível na 25. Ou 26. Na 30, talvez. A 40 trazia os fios grisalhos que substituíram o garoto em sua face. Para onde caminhava entre as folhas amareladas?
As primeiras letras mal desenhadas com auxílio de dedos amigos. Um acerto ali. Outro acento aqui. Reticências, pontos, travessões. Travessuras. Linhas mais elaboradas divididas com tantas que traçaram também o seu caminho. E o desviaram em certos capítulos. Retomada a tinta, buscava aperfeiçoar, cada vez mais, os seus percursos. Confusos. Havia páginas com começo, mas sem meio ou fim. Em outras, o fim explicava o começo. O meio esquecido. Um final solto. Um sentido perdido.
Fechou.
Nestas horas, sentia-se covarde. Reler certos momentos era como inundar-se de memórias nem sempre positivas. E confrontá-las levava-o a se deparar com pequenos monstros escondidos entre hifens e elipses. Pontos e vírgulas. Vírgulas sem pontos. Pronomes. Passados presentes. Mas sentia a necessidade de insistir um pouco mais. Poderia encontrar uma forma de lapidar e reelaborar para conferir outro estilo à estrutura.
Abriu, mais uma vez.
Tocou as páginas com nostalgia.
“Vazios”, pensou.
Fechou.
“Talvez as folhas amareladas ainda conservem espaços.”
Tocou a capa, que parecia mais surrada agora.
Afastou as mãos.
Abriu.
“Ainda falta um ponto, quem sabe?”
Olhares. Toques. Outros. Pesares. Medos. Ele. Amores. Lembranças. Sorrisos-lágrimas-fome-brigas-risos-paz-dias-horas-minutos-segundos-o tempo. Mãos suadas. Um ponto. O resto. O tempo ecoando em tics-tacs. Ele. O tempo. Nele, o tempo. Dele, o tempo. Quanto. Quando. Em quanto? Enquanto.
Após o incêndio no Museu Nacional, o ministro Carlos Marun, da secretaria de governo, disse que só agora apareceram chorando muitas viúvas apaixonadas. Essa declaração acionou o alarme dos vigilantes da correção política, que aproveitaram a ocasião para bater nesse cachorro morto que é a administração Temer.
No entanto, não falta razão ao ministro. Apesar de sua importância histórica e de seu valiosíssimo acervo, o Museu Nacional estava esquecido, e não apenas pelo governo federal. Matéria do site G1 informa que em 2017 o numero de visitas que o museu recebeu foi de 192 mil pessoas, um número 34% menor à quantidade de brasileiros que visitaram o museu do Louvre em Paris nesse mesmo ano.
Quem for revisar as páginas web especializadas em turismo poderá observar que a maioria daqueles que visitaram o MN deixaram comentários elogiosos, mas também advertiam que o estado do estabelecimento não era bom. Destaco dois que retirei do Google:
Ingrid Marques: “Apesar do Museu estar em péssimo estado de conservação, com paredes rachadas, infiltração e mofo… Ainda me surpreendo toda vez que visito, não só pelas exposições em si, mas muito mais por causa do casarão que esconde muita riquesa (sic) arquitetônica e histórica!”
Luis Paulo Machado:” O lugar é muito bonito, está localizado num belo espaço e histórico. Podia ser melhor mantido, achei as instalações mal cuidadas. O valor do ingresso é bem barato, talvez por isso não consigam manter o local em melhores condições. Absurdo é não aceitarem cartão para pagamento, hoje em dia tem até camelô que aceita.”
No site Tripadvisor, o usuário ‘Giopaccini’ fez esta premonição em 29 de janeiro: “Museu com acervo incrível e arquitetura maravilhosa, mas manutenção MEGA PRECÁRIA.Vamos perder um acervo maravilhoso por conta do descaso público com a cultura. “
Retomando a analogia do ministro Marun, uma das viúvas que chora o falecimento do MN é a Universidade Federal do Rio de Janeiro, aquela que tinha sob sua égide a manutenção do estabelecimento, destinando pouco mais de 500 mil reais por ano do seu orçamento total de R$ 3,18 bilhões.
Em nota publicada em abril deste ano, o Pró-reitor de Planejamento, Desenvolvimento e Finanças da UFRJ, Roberto Gambine, propõe uma série de medidas para reduzir as despesas da universidade visando se ajustar aos contingenciamentos e ao recorte de repasses. Dentre essas medidas, sugere reduzir em 40% o montante gasto com combustível e carros oficiais, cujo valor anual atinge R$ 2,9 milhões.
Reparem: a UFRJ gasta R$ 2,9 milhões com carros oficiais e combustível. O orçamento do Museu Nacional era de R$ 515 mil.
Essa viúva é a mesma que em 2013 retomou a posse definitiva do Canecão, e conseguiu a malfadada façanha de transformar uma histórica casa de shows, localizada numa zona privilegiada da Zona Sul, num prédio abandonado caindo aos pedaços.
A despeito das responsabilidades que caibam genuinamente ao governo federal, é inegável que ele não tem culpa exclusiva pelo assassinato do Museu Nacional. É evidente que a UFRJ também não queria, não podia, ou não sabia como cuidá-lo, pois aqueles que administram a universidade se defrontam nesse típico conflito intelectual que costumam ter os acadêmicos, onde colidem a gestão racional com o idealismo anticapitalista (somada a uma boa dose de hipocrisia), e cujo resultado usual é a inação – e, às vezes, as cinzas.
Escreveria hoje sobre o teatro político eleitoral, a última semana fora repleta de lances interessantes, tivemos as entrevistas dos cinco presidenciáveis mais bem colocados nas pesquisas pela dupla de apresentadores do Jornal Nacional na Rede Globo. Houve, a deveras esperada, decisão do TSE quanto a pitoresca candidatura do Lula (agora negada inclusive sua participação na publicidade). Na Folha da Manhã tivemos entrevistas de presidenciáveis e candidatos a governador, além de perguntas sem resposta que deveriam, ao menos, fazer com que pensasse o eleitor. Afinal, quem, enquanto candidato, não se digna a responder nossas questões, tão pouco o fará se eleito. Entretanto me pego cabisbaixo pela tragédia do Museu Nacional, consumido em chamas.
O desrespeito a nossa história vai além da escrita tendenciosa de quem se arvora o direito de interpretar fatos, como se fossem apenas ficção, para atender a fetiches ideológicos. O pragmatismo da lógica econômica já fez ruir muito de nosso patrimônio arquitetônico e com ele se tornam em entulhos bocados inestimáveis de história. Campos dos Goytacazes, rica em passado, destrói sua memória como se não houvesse futuro. Casarios e solares vêm abaixo pela inércia do poder público aliada a conduta criminosa de alguns proprietários. De prédios que vem abaixo pelo péssimo estado de conservação, vide Hotel Flávio, até aqueles que são derrubados na calada da noite ou nos finais de semana como o Clube do Chacrinha, na esquina das avenidas Treze de Maio e Saldanha Marinho.
Há algum tempo se consumia o Museu da Língua Portuguesa. No domingo foi a vez do Museu Nacional. Quanto de nós mesmos não se perde a cada lasca de história que rui, queima ou se apaga como se jamais tivesse existido?
O futuro se constrói no presente, sobre os alicerces do passado. Sem saber quem somos, não saberemos quem seremos. E como diz o Gato em Alice no País das Maravilhas: “Para quem não sabe aonde quer ir, todos os caminhos servem”. Mesmo os que levam ao desastre.
Conhecer nossa história é essencial para entender quem somos e projetar nosso futuro. Lamento as perdas inestimáveis que sofremos com essas destruições e ainda mais que tais preocupações passem longe do debate político. Líderes que não tem consciência de nossa vocação histórica, que desconhecem o povo que somos e não possuem visão da nação que podemos nos tornar são como cegos querendo ser guias dos demais.
Charhe do José Renato publicada hoje (04) na Folha
Museu Nacional
Talvez nada exemplifique melhor a decadência do Brasil do que incêndio do Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, Zona Norte do Rio, entre domingo e segunda. A perda não se restringiu ao patrimônio arquitetônico da antiga residência da família imperial e palco da primeira Constituinte da República. O acervo histórico, antropológico, paleontológico e linguístico consumido pelas chamas jamais será recuperado. Duzentos anos de trabalhos e pesquisas foram transformados em cinzas. Que, como tudo mais no país, serviram de combustível para “coxinhas” e “mortadelas” arderem suas vaidades na fogueira das redes sociais.
Mudará?
As causas do fogo ainda não foram definidas. Mas é absurdo se culpar uma reitoria “aparelhada” da UFRJ, responsável pela manutenção do Museu, toda composta por filiados do Psol, PCdoB e PCB. O abandono da instituição era a tônica na administração Michel Temer (MDB). Como foi nos 13 anos anteriores em que o PT comandou o país. Ou antes, nos oito anos da gestão tucana de Fernando Henrique Cardoso. E, se não fosse o incêndio, alguém arriscaria a mão ao fogo para garantir que algo mudaria no próximo governo? Mudará, independente de quem for eleito presidente no próximo mês?
O inferno
Em 2004, então secretário estadual de Energia e Indústria Naval, Wagner Victer disse: “O Museu Nacional vai pegar fogo. São fiações expostas, mal conservadas, uma situação de total irresponsabilidade”. A profecia se cumpriu 14 anos depois. Hoje, simbolicamente, Victer é secretário estadual de Educação. A tragédia foi fruto do abandono que se repete em prédios históricos de todo o país, inclusive Campos, como evidencia a Folha Dois desta edição. A responsabilidade não é só do governo, em suas três esferas. É de cada um que assiste passivo para depois querer protestar. O inferno que ardeu no Museu Nacional não são os outros.
Extinção de Luzia
Na semana em que o Brasil comemora seus 196 anos de independência, do prédio que abrigou também a assinatura da proclamação de independência, ficou apenas a fachada. Cerca de 90% do acervo do Museu Nacional foi destruído pelas chamas. Entre os poucos sobreviventes, está o meteoro de Bendegó, maior já encontrado no país. Do que foi perdido, está o crânio de “Luzia”, registro fóssil humano mais antigo da América, datado de 12,5 mil a 13 mil anos atrás. Encontrado em Minas Gerais, pertenceu a uma mulher entre 20 a 24 anos. E foi preservado por 130 séculos, até encontrar sua extinção definitiva entre nós.
Bolsonaro lidera
Na esperança de que algo possa mudar no país, foi divulgada ontem a primeira pesquisa presidencial após o início da propaganda eleitoral gratuita em TV e rádio, e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) impugnar a candidatura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Pelo BTG Pactual, o instituto FSB ouviu 2 mil pessoas por telefone, entre os dias 1 e 2 deste mês. Comparando com a consulta anterior FSB/BTG, feita em 25 e 26 de agosto, Jair Bolsonaro (PSL) não só continua liderando, como cresceu. Na estimulada, ainda que dentro da margem de erro de dois pontos para mais ou menos, ele foi de 24% para 26% das intenções de voto.
Ciro, Marina e Alckmin
Na comparação entre as duas pesquisas do mesmo instituto, a grande novidade aconteceu na segunda colocação. Ela passou a ser ocupada por Ciro Gomes (PDT), que pulou de 8% para 12%. Ainda que no empate técnico, o cearense passou Marina Silva (Rede), que caiu de 15% para 11%. Pela margem de erro, Geraldo Alckmin (PSDB) também está no mesmo bolo, mas patinou com pequena queda: foi de 9% para 8%. Substituto de Lula, Fernando Haddad (PT) teve leve crescimento: de 5% para 6%. João Amoêdo (Novo) manteve os mesmos 4%, assim como Álvaro Dias (Pode) repetiu seus 3%.
Mudança para onde?
Algumas tendências carecem de confirmação com entrevista de rua, sem vantagem ao último nome citado, como é inevitável na consulta estimulada ao telefone. Se Ciro tiver mesmo passado Marina, será a primeira vez em dois anos de pesquisas. Por outro lado, se a campanha agressiva de Alckmin contra Bolsonaro for um tiro pela culatra, a preocupação pode ser maior, após a reação do filho do ex-capitão. Deputado federal, Eduardo Bolsonaro (PSL/SP) respondeu ao tucano no Twitter: “Vamos mudar o Brasil, nem que seja na bala”. Se esta for a mudança que o país busca, o fogo que consumiu Luzia pode ainda queimar muito mais gente.
Na matéria da página anterior desta edição, estão publicados os números da última pesquisa a governador do Rio. Divulgada ontem (31), foi feita pelo instituto Paraná, com 1.860 eleitores de 46 municípios, entre os dias 25 e 30 de agosto. Em empate técnico na margem de erro de 2,5 pontos percentuais para mais ou menos, lideram Romário Faria (Pode), com 18,3%; Eduardo Paes (MDB), com 17,3%; e Anthony Garotinho (PRP), com 14,5%. Comparadas com as pesquisas de maio e junho do mesmo instituto, Romário está em queda: vinha de 24,8% e 24,3%. E Paes (vindo de 13,5% e 15,1%) e Garotinho (11,2% e 13,5%) em ascensão.
Diferenças e semelhança
Após o fraco desempenho no debate da Band, dia 16, Romário fugiu da sabatina do dia 28, do jornal O Globo. E o resultado parece não ter sido bom. Com mais cancha nesse jogo, Paes e Garotinho foram aos dois, se atacando em ambos. A diferença é que o ex-prefeito do Rio, pela ligação com o ex-governador Sérgio Cabral (MDB), sofre ataque também dos demais adversários. Menos visado, o ex-prefeito de Campos tem penado, além de Paes, apenas com Tarcísio Motta (Psol). Este repetiu, em entrevista exclusiva à Folha, o que pensa sobre Romário, Paes e Garotinho: “todos, de uma forma ou de outra, se aliaram à máfia do Cabral”.
Tarcísio sobe, Indio cai
Tarcísio ainda está no bloco de baixo pela disputa ao Palácio Guanabara: em quinto lugar, com 4,4%. Apesar de estarem todos embolados no empate técnico da pesquisa Paraná, quem puxa o pelotão em quarto ainda é Indio da Costa (PSD), que teve 5,5%. Depois dele e do candidato do Psol, vieram: Pedro Fernandes (PDT), com 2,6%; Wilson Witzel (PSC), 2,3%; e Marcelo Trindade (Novo) e Márcia Tiburi (PT), ambos com 1,7%. Também comparado com as pesquisas do mesmo instituto de maio e junho, Tarcísio está em ascensão: vinha de 3,0% e 3,8%. Vindo de 8,2% e 7,2%, Indio está em queda franca, enquanto os demais estão estagnados.
Motivos
Não é novidade a nenhum eleitor a ligação de Cabral com Paes. Mas o fato de que Tarcísio foi até agora o único a corretamente estender esse ônus também a Romário e Garotinho, pode ser o motivo da sua ascensão. Além, lógico, do seu bom desempenho nos debate. Por outro lado, o fato de ter feito escada para Garotinho bater em Paes no debate da Band — denunciada pelo ex-prefeito do Rio como jogada arquitetada por seu sucessor, Marcelo Crivella (PRB) —, parece ser a causa da queda de Índio. No debate de O Globo, ele até tentou também agredir o político de Campos. Mas recebeu deste um aviso velado e se encolheu.
Motivo
Já a desidratação contínua de Romário parece não ter muito mistério. Em qualquer frase que precise articular como candidato, expondo seu desconforto na quantidade de vezes em que molha com a língua os lábios secos, ele expõe desenvoltura oposta à que desfilava nos campos — onde se consagrou como um dos maiores atacantes da história do futebol mundial. A experiência administrativa e política que Paes e Garotinho acumularam ao longo dos anos, mesmo quando passível de críticas, dão a ambos grande vantagem no contraste com o ex-craque. Já nas suspeitas que pesam sobre os três, a disputa indica outro “empate técnico”.
Na Justiça
Paes teve seu ex-secretário de Obras, Alexandre Pinto, preso pela Lava Jato. Ele foi solto, ao que tudo indica, após contar o que sabe em delação. As consequências parecem esperar a urna, para nelas não interferirem. Garotinho foi preso três vezes ano passado: duas pela troca de Cheque-Cidadão por voto, uma pela denúncia de extorsão de empreiteiros com emprego de arma de fogo. Sem contar sua condenação pelo desvio de R$ 234,4 milhões da Saúde no governo estadual Rosinha, que gerou pedido de impugnação da sua candidatura. Por sua vez, Romário é acusado de ocultar patrimônio para não pagar dívidas em torno de R$ 20 milhões.
Na rejeição
Ainda assim, Romário, Paes e Garotinho lideram as intenções de voto. Nelas, a tendência de queda do primeiro e de ascensão dos outros dois parece atender ao desejo da candidatura do DEM. Por conta da sua imensa rejeição, Garotinho é uma espécie de Jair Bolsonaro (PSL) estadual: forte no primeiro turno e fácil de ser batido no segundo. Na Paraná, o campista liderou a rejeição: 69,9%. Assim como ficou à frente no índice negativo da última pesquisa Ibope: 55%. No pleito a governador de 2014, Garotinho não foi nem ao segundo turno. E chegou à urna também liderando a rejeição pelo Ibope: 40%. São 15 pontos a menos do que tem hoje.
Pleito antigo da Uenf, sua autonomia financeira está entre as propostas de Tarcísio Motta, candidato do Psol a governador do Rio. Se eleito, garantiu nesta entrevista que 6% da receita fluminense serão destinados às universidades estaduais. Ele planeja preservar o rio Paraíba do Sul, investindo na captação de água alternativa dos municípios da sua bacia. Tarcísio também fez críticas ao projeto inicial do Porto do Açu — “um delírio absolutamente irresponsável” — e aos adversários que lideram as pesquisas. Sobre Eduardo Paes (DEM), Romário Faria (Pode) e Anthony Garotinho (PRP), frisou: “todos, de uma forma ou de outra, se aliaram à máfia do Cabral”. O candidato defendeu o polêmico governo do Psol no município vizinho de Itaocara.
Folha da manhã – Perto de Campos, no município de Itaocara, foi eleito em 2012 o primeiro prefeito do Psol no país. Mas Gelsimar Gonzaga teve um governo conturbado. Chegou a ser afastado pela Câmara Municipal, teve o registro indeferido pelo TRE, na tentativa frustrada de reeleição em 2016, e acabou condenado por abuso de poder político e econômico. Que balanço o partido fez da experiência?
Tarcísio Motta – O companheiro Gelsimar foi afastado por ter enfrentado os poderosos de Itaocara, que nunca se conformaram de um ex-cortador de cana, ex-sindicalista, eleger-se prefeito e lutar contra o fisiologismo, tentando mudar a forma de fazer política no município. No dia da votação de seu afastamento, houve uma grande mobilização contra a cassação na cidade e na Câmara de Vereadores, porque o povo reconhece os avanços.Valorizamos o funcionalismo público e melhoramos os indicadores sociais. Buscamos desde o primeiro dia fortalecer a participação popular. Diversos secretários foram escolhidos por eleição direta. Mesmo com toda a adversidade, achamos que ali estavam presentes algumas pistas importantes de como construir um novo modo de governar.
Folha – A esquerda fluminense veio com quatro candidatos a governador: o senhor, Marcia Tiburi (PT), Pedro Fernandes (PDT) e Dayse Oliveira (PSTU). Velho pecado da esquerda brasileira, a divisão não deveria ser evitada, sobretudo em meio à onda conservadora no país?
Tarcísio – A necessária unidade no enfrentamento a essa onda conservadora não implica necessariamente em coligações eleitorais. Nossas alianças eleitorais são programáticas. Temos muito orgulho de estar disputando essa eleição ao lado do PCB, do MTST, do PCR, e tantos outros movimentos sociais. Não fazemos alianças simplesmente para obter mais tempo de televisão. É preciso haver convergência no programa. De qualquer forma, o fato de haver diversas candidaturas do campo progressista disputando o pleito não significa que o eleitorado irá se dividir. Nossa campanha não para de crescer. Acredito que na hora do voto os eleitores do campo progressista irão se unir em torno da nossa candidatura para garantir um representante da esquerda no segundo turno.
Folha – Inegável que tanto o senhor, quanto o candidato a presidente do Psol, Guilherme Boulos, passaram a adotar um discurso contra a corrupção e até alguns privilégios do setor público. Pelas beiradas, para não tropeçar na prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas não é uma maneira de pegar carona na aprovação popular à operação Lava Jato?
Tarcísio – Tenho críticas à Lava Jato, em especial à forma como garantias constitucionais estão sendo flexibilizadas ou mesmo ignoradas em determinados casos. A luta contra a corrupção é decisiva, porém, ela não pode servir como desculpa para enfraquecermos as instituições democráticas que preservam o devido processo legal. Mas nosso discurso contra corrupção e privilégios nunca foi feito “pelas beiradas”. Pelo contrário: é incisivo. E não ficamos só no discurso, denunciamos aos órgãos de controle o que identificamos como irregular na gestão pública. Em um ano e meio de mandato na Câmara do Rio, por exemplo, entreguei ao Ministério Público análises e documentos que provam que o poder público age em conluio com empresários de ônibus, deixando as tarifas do transporte mais caras para aumentar os lucros indevidos a esses empresários. Foi mais de R$ 3,6 bilhões. E nada disso foi feito de forma tímida, “pelas beiradas”: investigamos, conseguimos provas, fizemos reuniões abertas convocando a imprensa, nos reunimos com Tribunal de Contas, Ministério Público, divulgamos em todos os canais de comunicação possível, inclusive grandes emissoras de TV, democratizando as informações e nossa opinião. Derrotar a máfia da velha política que levou o Estado do Rio para o buraco é uma das nossas missões.
Folha – Em 2016, o filósofo Pablo Ortellado, da USP, publicou o artigo “É possível falar de corrupção a partir da esquerda?”. Em entrevistas anteriores, a Folha perguntou (aqui) a Boulos, formado na USP, e (aqui) ao deputado Chico Alencar, candidato do Psol ao Senado, se era possível. O primeiro tergiversou. Mas o segundo admitiu ter lido e disse ser possível. E para o senhor?
Tarcísio – A corrupção precisa ser enfrentada como um problema sistêmico e não tratada como uma patologia individual. Não adianta culpar o rei quando o problema é o trono. A corrupção é uma forma de governar, sem transparência pública, sem participação popular. A corrupção é inimiga da democracia. Onde tem transparência e participação, a fiscalização é feita pelas pessoas e assim combatemos a corrupção. Nós defendemos o fortalecimento da democracia na gestão do governo. Vamos derrotar a velha política do toma-lá-dá-cá mudando tanto o conteúdo quanto a forma de governar. Pra nós, governar é defender os direitos do povo, e não cuidar do privilégio de meia-dúzia. Governando pro povo, e não pra panelinha, o Rio tem jeito.
Folha – O senhor foi considerado por muitos o melhor no debate da Band, dia 16. Enquanto candidatos como Garotinho e Eduardo Paes (DEM) se atacaram, um ponto positivo foi a sua solidariedade a Pedro Fernandes, que teve o pai desaparecido em acidente aéreo. Falta essa humanização à política de um país cindido entre “coxinhas” e “mortadelas”?
Tarcísio – Os debates entre candidatos transmitidos pelas emissoras de TV são muito importantes para que os eleitores conheçam as propostas dos candidatos de forma igualitária, já que todos têm o mesmo tempo para expor suas ideias e propostas. É, sem dúvida, um momento de disputa, em que cada um quer comunicar ao expectador aquilo que acredita ser a melhor opção. Mas não podemos esquecer que, antes de sermos adversários políticos, somos seres humanos, e a solidariedade não deve ser abandonada em nome de divergências. Não posso dizer, de forma generalizada, que falta humanização na política. Mas posso falar que me esforço a cada dia para ser um ser humano melhor.
Folha – Também entrevistado por este jornal, o candidato Indio da Costa (PSD), mesmo de perfil liberal, elogiou (aqui) as suas virtudes. Em conversas reservadas, outros candidatos admitem o seu potencial de crescimento. Pela Datafolha, ainda que em empate técnico, o senhor passou Indio: 5% a 3%. Dá para ameaçar os líderes Paes, Romário e Garotinho?
Tarcísio – Nossa eleição é pra valer. Acreditamos que é possível tirar o Estado do Rio do buraco se enfrentarmos essa lógica do toma-lá-dá-cá a que esses políticos estão acostumados. Portanto, seguiremos na campanha para continuar aumentando nossas intenções de voto. Na medida em que as pessoas vão conhecendo nossas propostas, reconhecem que se trata de uma candidatura séria e capaz de enfrentar os problemas do Estado.
Folha – O senhor também fez críticas na sua última fala no debate da Band. Sobre Paes: “é cria do Cabral”. Romário: “foi bom de bola, mas votou contra o interesse do trabalhador”. Garotinho: “fez a mesma coisa (que Sérgio Cabral) quando foi governador”. Em seu entender, qual deles representaria o maior retrocesso?
Tarcísio – Que pergunta difícil! [risos] Não consigo escolher um “campeão” no ranking do retrocesso. Os três são páreo duro no quesito “retirada de direitos”. Todos, de uma forma ou de outra, se aliaram à máfia do Cabral que levou o Rio para o buraco.
Folha – A Segurança Pública, sob intervenção militar do governo federal, é hoje um dos principais problemas do Estado do Rio. As execuções da vereadora Marielle Franco (Psol) e do motorista Anderson Gomes, em 14 de março, estão ainda hoje impunes. Ironicamente, o problema é uma das principais bandeiras de um presidenciável como Jair Bolsonaro (PSL). Há solução? Como?
Tarcísio – Não vamos insistir nessa política de segurança falida, que trata a favela como território inimigo e mata pobre todo o dia. Esse modelo não gera segurança. Pelo contrário, gera medo, violência e sofrimento, em especial para a juventude negra que está sendo exterminada. E isso a um custo enorme para os cofres públicos. Só na ocupação da Maré em 2014 foram gastos R$ 600 milhões. E a previsão de gastos para a intervenção esse ano ultrapassa a marca de R$1 bilhão. É preciso mudar o modelo como um todo. Vamos modernizar a gestão, integrar os diferentes órgãos de segurança e priorizar o combate ao tráfico de armas. Os agentes de segurança serão ouvidos e, junto com eles, vamos melhorar suas condições de trabalho. Queremos valorizar o salário dos servidores e garantir planos de carreira dignos. Além disso, vamos aprimorar o controle externo e fazer uma limpa nas instituições para retirar das ruas os agentes envolvidos com grupos criminosos. Nosso objetivo será reduzir os índices de violência, em especial, homicídios e estupros, e construir uma rede pública de apoio, acolhimento e denúncia para familiares e vítimas.
Folha – Além da violência, o Estado do Rio vive também um quadro de insolvência financeira. Sobre o regime de recuperação fiscal firmado entre os governos Michel Temer e Luiz Fernando Pezão, o senhor já disse: “não foi socorro, foi agiotagem”. O que propõe?
Tarcísio – Vamos revisar o Regime de Recuperação Fiscal. Faço questão de repetir aqui: o que o governo Temer fez com o Estado do Rio foi agiotagem. Ele simplesmente empurrou a dívida para o próximo governador cobrando juros escandalosos. Isso não é um plano de recuperação. Isso é suicídio fiscal. E não será com cortes na saúde e na educação que vamos conseguir sair do buraco que a máfia do MDB nos enfiou. Precisamos rejeitar as políticas de austeridade fiscal que retiram direitos da população e recuperar as finanças do Governo do Estado investindo na diversificação da matriz econômica, incentivando o adensamento das cadeias produtivas e induzindo a retomada da atividade para ampliar a arrecadação. Além disso, vamos renegociar a dívida do Rio com a União, auditar os contratos, reestruturar a política de isenção fiscal, otimizar o uso dos recursos públicos e garantir a integração dos órgãos estatais de forma que a as ações de governo sejam mais eficientes.
Folha – A face mais cruel da falência financeira do Estado se dá sobre os servidores ativos e inativos. Qual o seu compromisso em honrar mensalmente esses vencimentos?
Tarcísio – Nós vamos garantir o pagamento integral e em dia dos vencimentos dos servidores, aposentados e pensionistas. Nenhum servidor, ativo ou inativo vai ficar sem seu dinheiro. Sou professor de escola pública e posso garantir que a valorização do servidor público é uma das nossas principais bandeiras. Somente assim iremos melhorar a qualidade dos serviços públicos e garantir os direitos da população.
Folha – Outra face do caos financeiro se dá sobre o abandono da Uenf e do Colégio Agrícola Antônio Sarlo. No debate da Band, quando perguntados sobre a Uerj, apenas o senhor, Paes e Garotinho lembraram que a Uenf existe. O que pretende fazer para que a instituição de ensino superior da região continue a existir?
Tarcísio – A Uenf, assim como Uerj, Uezo e os Institutos Superiores de Educação precisam ser valorizados como importantes centros de formação, pesquisa e inovação. A rede pública de ensino superior do Estado deve servir como um vetor de desenvolvimento estratégico que pode, inclusive, nos ajudar a sair da crise e elaborar soluções criativas para resolver os problemas de desemprego no Rio. Nossa principal medida será garantir autonomia financeira para as universidades estaduais, com a ampliação dos recursos públicos reservados ao ensino, à pesquisa e a programas de extensão, destinando, desde o primeiro ano, 6% da receita do Governo do Estado para as universidades estaduais. Além disso, vamos garantir instalações e equipamentos adequados nas unidades da rede. E vamos expandir o ensino superior estadual público para o interior, garantindo a qualidade da educação, a integração entre ensino, pesquisa e extensão e a ampliação da oferta de vagas em cada região do Estado.
Folha – Quais são seus planos para Porto do Açu na questão do desenvolvimento específico do Norte Fluminense?
Tarcísio – Antes de mais nada, precisamos garantir os direitos das centenas de famílias de agricultores familiares e pescadores artesanais no V Distrito do município de São João da Barra que foram removidas para o distrito industrial do empreendimento se tornar uma realidade. O projeto inicial do Porto do Açu foi um delírio absolutamente irresponsável. Mas não será com cortes em investimentos que iremos sair do buraco que a máfia do MDB nos enfiou. Pelo contrário, precisamos investir em setores altamente empregadores, como a indústria portuária, para conseguir sair da crise. Vamos criar um plano estratégico para o setor de minério, óleo e gás no Estado do Rio. Queremos redimensionar a política de adensamento dessa cadeia produtiva no Estado e reduzir os impactos socioambientais dos projetos. Nos últimos anos, o Rio aprofundou a sua dependência em indústrias extrativistas como petróleo e gás. Isso é muito preocupante. Temos que reverter esse quadro buscando soluções economicamente criativas e ambientalmente sustentáveis. Vamos implementar planos regionais de desenvolvimento social em cada região do Estado, considerando o meio ambiente, as culturas locais, a soberania alimentar e a tradição de cada localidade. Nosso objetivo será diversificar a economia, garantir justiça socioambiental e incentivar a inovação. No caso do Norte Fluminense, a agricultura familiar será prioridade: vamos realizar reforma agrária para democratizar o acesso à terra, garantir regularização fundiária para viabilizar o acesso à linha de crédito e isentar a cesta básica de impostos para tornar a comida mais barata. Além disso, vamos investir em obras de construção civil nas áreas de mobilidade urbana e saneamento ambiental para qualificar a infraestrutura das cidades da região, destinando vagas de trabalho para os moradores locais e transformando, assim, os investimentos em obras em uma política de distribuição de renda.
Folha – Com sua foz em Atafona assoreada, o rio Paraíba do Sul sofre bastante em tempo de estiagem. Há registro de língua salina já em Barcelos. Há vida para Campos, São João da Barra e São Francisco de Itabapoana sem o rio que as formou? Como recuperá-lo?
Tarcísio – É preciso investir na recuperação de manguezais, restingas e matas de encosta e implementar os planos de preservação elaborados pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Médio Paraíba do Sul. Além de construir novas redes de coleta e estações de tratamento de esgoto nas cidades do entorno do Rio Paraíba do Sul e seus afluentes, como Volta Redonda e Barra Mansa: os municípios do Sul do Estado despejam mais de 120 milhões de litros de esgoto in natura por dia no rio. Mas nada disso será suficiente se não enfrentarmos os problemas estruturais relativos ao consumo de água na região, que não foi ampliado adequadamente e continua calcado apenas no aumento da captação da água do rio. Além do desastre natural que representa a superexploração do Paraíba do Sul, a falta de planejamento no abastecimento de água de regiões com grande crescimento econômico e demográfico é uma irresponsabilidade absurda dos últimos governos. O rio não pode continuar sendo a única fonte de abastecimento dessas regiões.
Folha – O que Campos, Norte e Noroeste Fluminense devem esperar de Tarcísio governador?
Tarcísio – Nosso programa engloba uma série de ações que irão melhorar a qualidade de vida dessas regiões. Nossas prioridades são reduzir o custo de vida, promover trabalho digno e distribuição de renda para diminuir a desigualdade social, melhorar a qualidade dos serviços públicos para garantir direitos, preservar o meio ambiente e defender a igualdade de todas e todos. Para resolver os problemas na segurança, vamos combater o tráfico de armas, reformar a polícia e investir em inteligência e prevenção, substituindo a lógica do confronto pela investigação. Para superar a crise econômica, vamos reduzir o preço da passagem dos transportes, diminuir o custo com moradia, tornar a comida mais barata e investir em obras que geram emprego, aumentam a infraestrutura das cidades e melhoram a vida das pessoas. O Rio tem jeito, mas não é o das máfias.