Por Aluysio Abreu Barbosa
Em artigo jornalístico se deve evitar sempre a primeira pessoa. Por isso, leitor, peço desculpas de antemão. E que você encare este texto como testemunho. Diante do resultado das eleições de ontem, repito o filósofo francês Emmanuel Mounier (1905/50): “quando não restar possibilidade nenhuma de sucesso, resta-nos testemunhar”.
Social-democrata, meu espectro político é de centro-esquerda. Votei em Ciro Gomes (PDT) no primeiro turno presidencial, mesmo que ele trouxesse propostas contrárias aos meus interesses de classe. Mas o fiz no sentido de sobrepor os interesses do país aos particulares. E na certeza pragmática de que era a melhor opção para derrotar Jair Bolsonaro (PSL) no segundo turno.
Quem tirou Ciro do segundo turno foi o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que manobrou deslealmente da cadeia em Curitiba para isolar nacionalmente o político cearense. Quem impediu que uma alternativa viável a Bolsonaro avançasse foi o eleitor que, por ressentimento e ausência de autocrítica, preferiu votar em Fernando Haddad no primeiro turno. Foi tão legítimo quanto previsível em suas consequências.
Por isso e pelo projeto de governo do PT, que previa o controle da imprensa, do Judiciário, do Ministério Público e dos Tribunais de Conta, não votei em Haddad no segundo turno. Nele, noves fora o discurso, a máxima concessão petista à democracia foi abdicar da sua proposta de uma nova Constituinte. Tampouco seria capaz de votar em Bolsonaro, por motivos muito além dos balidos de ordem — fascista, bééé; nazista, bééé; machista, bééé; misógino, bééé; homofóbico, bééé — que o elegeram.
Desde 1989, sempre tive orgulho em votar de quatro de quatro anos em quem achava mais apto a governar o Brasil. E para aqueles que hoje balem “mito, mito, mito, bééé, bééé, bééé” no pasto oposto, relativizando a existência da ditadura militar no país, relevante lembrar: aquela foi a primeira eleição presidencial não só para mim, aos 17 anos, como para minha mãe. Com os 46 que tenho hoje, foi a primeira vez em que ela, junto do filho adolescente, pôde votar a presidente. Só meu pai, à época com 53, tivera uma única oportunidade anterior de fazê-lo, em 1960. Ganha o capim que ofereceram aos nordestinos quem ignorar o que houve no intervalo.
Entre Bolsonaro e Haddad, a opção que minha consciência reservou foi votar nulo. O mesmo fizeram 7,44% dos eleitores que, somados aos 2,15% que votaram em branco, não chegariam aos 10,58 pontos de vantagem na vitória do capitão. Que respeito, credito a uma campanha eleitoral revolucionária no uso das mídias sociais e à qual me submeto como cidadão — enquanto nenhum outro tiver seus direitos constitucionais desrespeitados.
Tenho muitos amigos que votaram em Haddad. Alguns no primeiro turno, outros no segundo. Como também os tenho entre quem deu seu voto a Bolsonaro, independente do turno. Concordância política à parte, respeitei opções diferentes da minha.
Não, sua tia do WhatsApp não é fascista. Como sua sobrinha lacradora que vive com a cara enfiada no smartphone não é corrupta. É só aquilo que uns gregos malucos inventaram há uns 2,5 mil anos e chamaram de democracia. E, desde antes de Cristo, só existe com contraditório.
Se a eleição de Bolsonaro ontem, assim como a do ex-juiz Wilson Witzel (PSC) a governador do Rio, a despeito do meu voto pessoal em Eduardo Paes (DEM), não ensinarem a lição devida à esquerda brasileira, difícil crer que outra coisa o fará. O senador eleito pelo Ceará Cid Gomes (PDT) e o rapper Mano Brown bem que chegaram a alertar, mas já era tarde demais.
Em seu pronunciamento após a confirmação do resultado, Haddad mostrou o quanto o aprendizado é difícil a quem se nega a aprender. Ele retomou o discurso que tinha abandonado no segundo turno, ao falar “em prisão injusta do presidente Lula”. Pelo menos, o derrotado foi emblemático ao se referir ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff como “afastamento”, não golpe. Se foi assunção tardia, ou ato falho, logo saberemos.
Ciente de que a derrota de Haddad era fato consumado, Ciro voltou da Europa, onde se auto-exilou após o primeiro turno, e divulgou na véspera do segundo um vídeo. Nele, orientou os eleitores “pela necessidade de votar com a democracia, votar contra a intolerância, votar pelo pluralismo, mas também ninguém está obrigado a votar contra convicções e ideologias”.
Se não deu a adesão desejada por quem o sabotou, o cearense foi ainda mais duro ao votar ontem em Fortaleza: “Eu não quero é fazer campanha com o PT, nunca mais”. Deixou claro que está aberta a disputa para liderar a oposição ao governo federal eleito. E propôs sua maneira: “O Brasil precisa desesperadamente desarmar essa bomba da confrontação miúda que vem destruindo a economia brasileira”.
A Bolsonaro cabem os parabéns que Haddad não deu, por uma vitória incontestável nas urnas, mesmo a despeito de um passado com várias declarações contra a democracia. Que, no lugar delas, o presidente faça valer as que disse ontem em seu discurso de vitória: “vou guiar um governo que defenda e proteja os direitos do cidadão que cumpre seus deveres e respeita as leis; elas são para todos. Porque assim será o nosso governo; constitucional e democrático”.
Que assim seja. Caso contrário, caberá mais do que testemunhar.
Publicado hoje (29) na Folha da Manhã