Fato ou fake?
Por Aluysio Abreu Barbosa
O auditório Cristina Bastos, no IFF, estava lotado na última sexta (23), durante a 10ª Bienal do Livro de Campos. Na abertura do debate “Fake News: Mentiras Verdadeiras”, o jornalista Ocinei Trindade, mediador do debate, usou a imagem bíblica do Éden para falar como a serpente usou de fake news para tentar Eva com o fruto proibido. No ensejo, após as participações dos jornalistas Artur Xexéo e Cláudia Eleonora, aproveitei os estudos sobre o Éden real para lembrar como as fake news estavam presentes no nascimento da humanidade. E como, talvez a partir delas, tenhamos passado a nos diferenciar dos demais animais.
Em seu livro “Sapiens — Uma breve história da humanidade”, o historiador israelense Yuval Noah Harari conta que o homem se tornou homem a partir da Revolução Cognitiva, há cerca de 70 mil anos. Com ela, passamos a criar e compartilhar mitos, deixando de ser uma espécie restrita ao continente africano para conquistar o mundo. E uma das teorias mais aceitas, com apoio na neurolinguística, é que isso só se deu pelo apreço humano à fofoca, congênere do boato, ou das fake news:
— Nossa linguagem evoluiu como uma forma de fofoca. De acordo com essa teoria, o Homo sapiens é antes de mais nada um animal social (…) Não é suficiente que homens e mulheres conheçam o paradeiro de leões e bisões. É muito mais importante para eles saber quem em seu bando odeia quem, quem está dormindo com quem, quem é honesto e quem é trapaceiro (…) As novas habilidades linguísticas que os sapiens modernos adquiriram há cerca de 70 milênios permitiram que fofocassem por horas a fio. Graças a informações precisas sobre quem era digno de confiança, pequenos grupos puderam se expandir para bandos maiores, e os sapiens puderam desenvolver tipos de cooperação mais sólidos e sofisticados (…) A fofoca normalmente gira em torno de comportamentos inadequados. Os que fomentam os rumores são o quarto poder original, jornalistas que informam a sociedade sobre trapaceiros e aproveitadores e, desse modo, a protegem.
Após a fofoca nos espalhar da África ao mundo, o termo fake news foi cunhado na eleição presidencial dos EUA de 2016. Nasceu da imprensa, não da academia, para designar as notícias falsas divulgadas na internet contra a candidata Hillary Clinton, que ganhou no voto popular, mas perdeu no sistema do colégio eleitoral. Depois de eleito, Donald Trump se apropriou do termo, chamando de fake news todas as matérias jornalísticas críticas a ele e seu governo.
Se o fenômeno não é novo, ganhou notável impulso com a popularização da internet. Antes de Trump, foi através dela que Barack Obama se elegeu presidente dos EUA pela primeira vez, em 2008. E se reelegeu em 2012. Em 2011, o advento das redes sociais criou a Primavera Árabe, que sacudiu o Norte da África, o Oriente Médio e parte da Ásia. Foi emblemático: o primeiro movimento de massas da história que não nasceu em nenhum templo, quartel, partido, sindicato, ou escola. Foram todos substituídos pelo celular.
No Brasil, o fenômeno deu o ar da graça nas Jornadas de Junho de 2013. Com uma pauta difusa, começou com preço da passagem do transporte coletivo, passando à luta contra a corrupção e à cobrança por melhores serviços públicos. Durante o governo Dilma Rousseff, trouxe uma relevante novidade: o fim do domínio do PT sobre as ruas brasileiras, que exercia desde o impeachment do ex-presidente Fernando Collor de Mello, em 1992.
Vinte e um anos depois, foi nas Jornadas de Junho que, além dos black blocs, começaram a aparecer pessoas com as camisas amarelas da seleção brasileira de futebol. As mesmas que depois dominariam as ruas do país em 2015 e 2016, gerando o impeachment de Dilma. Foram os maiores protestos populares do Brasil desde as Diretas Já, em 1984. E os grupos que os lideraram voltaram a usar as redes sociais para encarnar seu antipetismo em Jair Bolsonaro na eleição presidencial, vencida por ele menos de um mês atrás.
Um ano antes do pleito, para testar a pauta conservadora na sociedade através das redes sociais, grupos como o MBL — Movimento Brasil Livre, que copiou seu nome do Movimento Passe Livre, das Jornadas de Junho de 2013 — empreenderam uma cruzada contra a arte e os artistas do país em 2017. E uma das vítimas foi o coreógrafo Wagner Schwartz, convidado principal do debate de sexta, atacado nas redes sociais por uma direita local acéfala.
Independente da ideologia, ouvir o depoimento do que esse artista sofreu na sua vida real, após ser linchado virtualmente nas redes sociais e na propaganda eleitoral de Bolsonaro, mas não se solidarizar, talvez seja perder o que, acima da fofoca, nos torna humanos. Para os que se dizem cristãos e não se deixam tocar, é uma pena. A solidariedade para com o semelhante que sofre, sobretudo quando injustamente, é a maior virtude do cristianismo.
Após ouvir o testemunho de Wagner no debate da Bienal, aplaudido de pé pela grande maioria do público, o mediador propôs aos debatedores estabelecer as diferenças entre fato e fake. Reproduzo aqui o que respondi:
Fato: uma menina de 4 anos interagiu durante poucos segundos, tocando o pé e a mão do artista nu, que era filha de uma amiga presente, numa performance artística no MAM de São Paulo. Era 26 de setembro (de 2017). No dia 28, as cenas editadas da criança tocando o artista viralizaram na internet. Ele sofreu cinco meses de linchamento moral como pedófilo.
Fake: comprados com dinheiro público pela Lei Rouanet nos governos do PT, artistas e museus de esquerda tentam promover a pedofilia e a pornografia infantil, contra os valores cristãos da família tradicional.
Fato: em 22 de fevereiro o Ministério Público Federal de São Paulo pediu o arquivamento da investigação. A procuradora da República Ana Letícia Asby concluiu: “a mera nudez do adulto não configura pornografia eis que não detinha qualquer contexto erótico. A intenção do artista era reproduzir instalação artística com o uso de seu corpo, e o toque da criança não configurou qualquer tentativa de interação para fins libidinosos”.
Fato: o artista chegou a encaminhar à Polícia as 150 ameaças de morte que sofreu.
Fake: o pedófilo se suicidou. E foi morto a pauladas na rua diante da sua casa.
Fato: o artista sobreviveu. E está aqui contando a sua história.
Publicado hoje (25) na Folha da Manhã
Boa noite! O maior problema desta exposição não está no que OCORREU NA AMOSTRA NO MUSEU e sim, em QUEM FOI EXPOSTA A ISSO. O problema ocorreu, quando se expõe uma CRIANÇA a um HOMEM NU. Independente se ela e próxima ou não do artista citado. E mesmo que o Ministério Público diga que não houve CRIME, esse fato não pode em HIPÓTESE NENHUMA se tornar algo normal. E por mais que se tenta informar que se tratava de uma apresentação artística, esse argumento não pode ser usado como DESCULPA para que CRIANÇAS façam parte disso!
Caro Murilo,
Vc não determina o que é CRIME. Em HIPÓTESE NENHUMA. Nem o Ministério Público, que se limita a acusar na Justiça, após investigar. E foi o Ministério Público que decidiu arquivar a investigação no caso do MAM de São Paulo. A livre exposição, inclusive a crianças, de nudez masculina e feminina expressas como forma de arte se dá em todos os museus do mundo. Na dúvida, se tiver oportunidade, vá ao Museu do Vaticano. Crianças devem ser protegidas de qualquer exploração. Seja sexual ou pela ignorância de quem nunca entrou em um museu.
Grato pela chance do debate!
Aluysio
Prezado , bom texto. Gostaria de fazer uma observação; no tocante ao uso do mito de Adão,Eva e a serpente falante já de cara posso afirmar que é fake news. Afinal, como você mesmo aborda,o autor judeu chega à conclusão quea fofoca foi parte preponderante da teoria evolucionista. Outra observação diz respeito a comparação entre a campanha pelas diretas e os protesto da era petista. Diferença reside exatamente aí. A primeira foi uma campanha democrática legítima que em pleno regime militar não provocou os estertores no governo que os protestos pela condução político e econômica causaram.