“E casamento é isso. Cada dia, uma merdinha.”
Achei a frase em, pelo menos, 50 das quase 100 páginas de um diário amarelado de minha mãe. Não sabia ao certo quanto tempo aquelas folhas estiveram entre os meus cadernos. Ela deixara o objeto, de capa dura e contornos azuis, em minha caixa de correio pouco antes de ir embora, há, no mínimo, vinte anos. Ainda me lembro do quão revoltada fiquei com seu gesto à época.
“Eu não devo ter sido boa filha”, dizia em determinados momentos. Em outros, xingava-a de todas as formas possíveis. Em sonhos, em noites, em dias, em gritos. Mas ela já estava longe para me ouvir. Hoje, tantos e tantos anos depois de sua partida, consigo entendê-la melhor. Talvez seja na leitura de sua vida que eu peça desculpas diárias a ela e seus motivos.
Recordo-me, com poucos detalhes, do dia em que ela comprou o diário. Eu era adolescente e tinha acompanhado minha mãe em suas compras de Natal. Eram horas e horas a pé pelas ruas. Calor, ombradas, tropeços, vozes em debate e uma menina de 17 anos com humor de cão. E ela aguentava pacientemente, sempre com um sorriso. Eu tentava, mas não conseguia compreender como ela levava sua feliz infelicidade estampada no rosto. Nenhuma das constantes desavenças com meu pai era capaz de mudar sua forma de lidar com o mundo. Era lindo. No fundo, eu a invejava. E ela sabia.
Entramos em uma papelaria. Não havia entendido o motivo da entrada no estabelecimento incomum em compras de Natal. Ela caminhou em direção a um vendedor, que a entregou uma encomenda. Mesmo curiosa, preferi não perguntar. Em seus sorrisos, para mim, minha mãe era um mistério. Após pagar a compra, ela saiu da loja. Passou a mão em meu rosto. “Vamos?” Concordei e a segui. Dias depois, encontrei o diário em cima de sua cama. Sem buscar as páginas, entendi a ida à papelaria. Olhei, pensando no que poderia estar por dentro da capa dura, mas não me atreveria a invadir sua solidão.
As folhas encardidas roçavam em meus dedos. Uns cabelos brancos a mais me fizeram ter coragem, pela primeira vez, de descobrir o que minha mãe quis dizer em seu bilhete de despedida. “Para todas as suas dúvidas”, escrevera em letras tremidas. Ela sabia que eu a observava e tentava entender quem era. Ou quem éramos. Há mais dela em mim do que fui capaz de enxergar em toda a minha vida.
Chovia no dia em que vi minha mãe chorar pela única vez. Era um sábado. Meu pai gritara com ela de forma estúpida. Mais estúpida, aliás. Eu não conheci a voz dele. Somente os gritos. “Quando eu for embora, você vai se lamentar. Vai minguar. Vai se destruir ainda mais. Vai mostrar o nada que você é.” A frase foi seguida de um tapa dela, um grito dele e batida de porta. Nunca mais o vi, assim como nunca mais ouvi minha mãe falar seu nome. Só via o sorriso.
Eu a conheci depois de lê-la nas páginas do diário. Era uma mulher sofrida. Carregava um peso que considerava além do suportável. A primeira linha de seu caderno era sobre o pacto que fizera em um momento de tristeza: “custe o que custar, você me verá sorrindo”. E assim foi. Todos os sorrisos apareciam em suas narrativas. Ela sempre tratava a si como camaleão. Engraçado ver esse termo traçado pelas letras dela. Quando saí de casa e me vi fora daquela realidade, era exatamente assim que eu a imaginava.
Ler a primeira página foi doído. Era como se rasgassem um véu e desnudassem uma vida desconhecida.
Por trás dos sorrisos, ela acumulava uma quase amargura. Sabia se afastar dela quando queria, mas a vivia de forma intensa em seu interior. Pela garganta, por vezes, parecia escorrer um fel inexplicável. Mas ela nunca daria a meu pai a satisfação de vê-la dessa maneira. Como não consegui enxergar enquanto vivia sob o teto dela?
Em um trecho do seu diário, minha mãe contou que o casamento foi o calvário de sua vida, salvo somente pela minha existência. Eu não notei o quanto ela me amava. Parecia sempre tão distante que eu me sentia apenas uma parte da casa, e não dela. “Essa menina, minha menina, foi capaz de tirar o melhor sorriso do camaleão. Pena que ela não sabe que esse, somente esse, foi sincero. Pena, pequena”, escreveu. Eu não tinha como saber. Para mim, era só mais um sorriso.
Deixei o diário descansar por alguns anos até ter coragem de tocá-lo de novo. Desvendar minha mãe era desnudar a mim mesma. Era como tirar toda a minha roupa em uma praça. Era quase violento. Mas eu precisava voltar a ele para entender. Eu só queria entender. Aquela mulher de olhar sereno era capaz de desejar coisas terríveis em momentos de ódio, embora eu nunca tenha visto um deles. Ao mesmo tempo, uma palavra grosseira de meu pai era o começo de uma dor lancinante contada em detalhes, por dias a fio, em seus escritos.
A última página vinha diferente. Não tinha desabafos ou dores. Era para mim. Eu sabia que era. Havia uma foto envelhecida. Estávamos em um quintal, não me lembro de onde, com flores. Minha mãe estava de mãos dadas comigo. Nossos sorrisos eram o mesmo. Nossos olhares também. Talvez ela nunca entenda. Talvez eu também não. Pena. Pena, pequena.