Canal Engenheiro Antonio Rezende
Por Arthur Soffiati
Ocorreu significativa mortandade de animais aquáticos no canal Engenheiro Antonio Resende neste abril de 2019. Levantei as principais causas, mas somente uma análise detalhada das águas do canal poderá fornecer o motivo ou motivos da mortandade. A maioria dos leitores deve ter passado batida pela notícia publicada (aqui) na “Folha da Manhã” em página inteira no domingo de Páscoa.
Para compreender melhor a geografia criada pelo Departamento Nacional de Obras e Saneamento a partir de 1940, retornemos à formação geológica da planície do norte fluminense. Nos últimos 2.500 anos, o rio Paraíba do Sul, em grande parte, formou a vasta planície com ajuda do mar. O grande rio e outros menores, como o Guaxindiba e o Imbé, transportaram sedimentos argilosos da zona serrana e dos tabuleiros, depositando-os dentro de uma extensa semilaguna derivada do avanço (transgressão) do mar entre 11.700 e 5.100 antes do presente. A partir de então, dois movimentos se complementaram: o mar recuou (regressão) e o continente avançou (progradação). No fim do processo, o mar e o rio Paraíba do Sul formaram a maior restinga do estado do Rio de Janeiro. Quem a examina num mapa tem a impressão de que um navio de areia ancorou na planície argilosa, mas não se colou totalmente a ela.
Na margem esquerda do grande rio, um canal irregular e descontinuo separava a zona de tabuleiro da restinga. É o antigo canal do Mundeuzinho. Colada aos tabuleiros, formou-se também a lagoa do Campelo, a maior lagoa de restinga da região. Ela se liga naturalmente ao rio Paraíba do Sul por uma série de canais, sendo o da Cataia o mais conhecido. Em direção à linha de costa, formou-se naturalmente o brejo de Cacimbas, aproveitado no século XIX para a abertura do canal de navegação com o mesmo nome. Ele ligava o rio Paraíba do Sul à lagoa de Macabu, na zona de tabuleiros. O trabalho pioneiro de Leidiana Alonso Alves mostrou a ligação das lagoas de tabuleiro, em grande parte barradas pela restinga na margem esquerda do rio Paraíba do Sul, e a lagoa do Campelo (Análise geossistêmica da variação temporo-espacial dos espelhos d’água das lagoas do sistema Campelo entre os anos de 2006 e 2015. Campos dos Goytacazes: IFF/Centro, 2016).
Na margem direita do Paraíba do Sul, a restinga também parece um navio que aportou na planície aluvial. Contudo, examinando mais de perto, encontraremos, nessa conexão, também um curso d’água que parece separar a restinga da planície argilosa. Ele foi batizado de rio Água Preta ou Doce, saindo do Paraíba do Sul na forma de defluente e desembocando no banhado da Boa Vista, junto à linha de costa. Um defluente funciona distintamente de um afluente. Este despeja suas águas em outro rio, enquanto o aquele nasce no rio principal. Algo só possível numa planície em que, pelo menos, uma margem é mais baixa que o leito do rio principal. Assim, quando as águas de cheia transbordam, elas correm para o ponto mais baixo, seja na superfície, seja em canais naturais formados pelas águas de transbordamento.
Mas a complexidade era ainda maior. Do rio Água Preta, que saía do Paraíba do Sul, entroncavam-se dois defluentes que se dirigiam ao mar e funcionavam como extravasores em tempos de cheia. Eles receberam respectivamente os nomes de Gruçaí e Iquipari. Atualmente, são duas lagoas alongadas. Da grande lagoa Feia, partiam vários defluentes na forma de cursos d’água que formavam o rio Iguaçu, que também recebia defluentes do Paraíba do Sul, que engordava no banhado da Boa Vista, que finalmente desembocava no mar. Em 1632, quando começou uma colonização europeia contínua na região, havia três rios que cortavam a planície e desembocavam no mar: Guaxindiba, na extremidade norte; Paraíba do Sul, no centro e Iguaçu, no sul. Poderíamos incluir o rio Macaé, na extremidade sul da planície, entre ela e a zona serrana. Mas ele corre em terreno mais antigo.
Foi nesse estupendo caos que os europeus e seus descendentes resolveram ganhar dinheiro com a criação de gado, seguida pela cana. Logo sentiu-se um grande obstáculo: como a água corria lentamente para o mar, ela se acumulava em várias depressões da planície e formava brejos, banhados e lagoas. No empenho de ganhar terras, o capitão José de Barcelos Machado, um grande proprietário rural, abriu uma vala ligando o rio Iguaçu ao mar, em 1688. Formou-se, assim, a vala e a barra do Furado, intervenção que se tornou célebre. Mas, de certa forma, o problema continuava. Depois de escoadas as águas de cheia para o mar, ondas e correntes vedavam a foz da vala.
Durante os séculos XVIII e XIX, o meio mais utilizado para drenagem da planície era escoar as águas de cheia para o mar pela vala do Furado. A indústria sucroalcooleira se modernizou no final do século XIX e princípio do século XX, com a substituição dos antigos pequenos engenhos pelos grandes engenhos centrais e pelas usinas. A capacidade produtiva aumentou, mas a oferta de cana de açúcar não a acompanhou. Era preciso terra para plantar, mas essas terras férteis estavam sob as águas das lagoas.
No final do século XIX, o engenheiro Marcelino Ramos da Silva concebeu e abriu o canal de Jagoroaba, ligando a lagoa Feia ao mar no ponto em que ela mais se aproximava da costa. O canal foi escavado em linha reta inteiramente em terreno de restinga. O empreendimento foi um fracasso reconhecido pelo próprio idealizador e pelo engenheiro Francisco Saturnino Rodrigues de Brito (Saneamento de Campos. Campos: Typographia de Silva, Carneiro e Cia., 1903). Voltou-se à vala do Furado.
Entre 1940 e 1950, o Departamento Nacional de Obras e Saneamento, valendo-se de um plano elaborado por Saturnino de Brito na década de 1920 (Defesa contra inundações: melhoramentos do rio Paraíba e da lagoa Feia. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1944). Ele consistia em ligar a lagoa Feia ao mar por um canal, como pretendeu Marcelino Ramos da Silva, mas cortando agora terrenos aluviais e apenas atravessando uma pequena extensão da restinga. Esse canal recebeu o nome de Flecha. Pretendia-se que ele fosse um largo rio que auxiliaria o Paraíba do Sul e esgotar água doce para o mar. Entre ele e o Paraíba do Sul, o DNOS se empenhou em construir uma rede de canais, valendo-se dos defluentes naturais do grande rio. Em 1950, a estrutura já estava quase montada. Daí em diante, o órgão se concentraria na finalização e na manutenção das obras.
Nos anos de 1960 e 1970, o DNOS cuidou mais da margem esquerda do rio Paraíba do Sul. O córrego da Cataia foi substituído pelo canal do Vigário para adução de água do rio na lagoa do Campelo. O valão do Mundeuzinho foi substituído pelo canal Engenheiro Antonio Rezende, que sai da ponta norte da lagoa do Campelo e chega ao mar, aproveitando a foz do rio Guaxindiba, que passou a ser seu afluente. De ponta a ponta, o canal atravessa terreno de restinga, à semelhança do malfadado canal de Jagoroaba. O antigo canal de navegação de Cacimbas foi cortado pelo canal Engenheiro Antonio Rezende e foi transformado num canal de drenagem.
Antes do DNOS, a água doce da planície mantinha com a água salgada do mar um equilíbrio dinâmico. Pela superfície, a água salgada avançava nas desembocaduras dos rios até o ponto maior da amplitude das marés e a resistência da água doce dos rios, formando estuários, ou seja, uma zona de água salobra propícia ao desenvolvimento de manguezais. Pelo lençol freático, a água salgada também avançava até encontrar a resistência da água doce, que se acumulava em lagoas. Cumpre lembra também que, antes dos europeus e ainda por bastante tempo depois da sua chegada, as florestas atlânticas perenes da zona serrana e periódicas dos tabuleiros eram pujantes e garantiam grande oferta de água, parte dela fluindo para o mar e outra parte se acumulando nas lagoas continentais. Não havia ainda a transposição de águas do Paraíba do Sul para o sistema Guandu. O grande rio chegava a seu delta com grande pujança, lançava sedimentos na restinga e mantinha o estuário equilibrado.
As obras realizadas pelo DNOS não levaram em conta esse equilíbrio dinâmico de águas doce e salgada. Cursos d’água foram retilinizados, lagoas foram total ou parcialmente drenadas, canais adutores foram substituídos pela abertura de outros. Na margem direita do rio, o canal da Flecha cortou ao meio o rio Iguaçu. Na margem esquerda, o córrego da Cataia foi parcialmente desativado depois da abertura do canal do Vigário. O brejo do Mundeuzinho foi substituído pelo canal Engenheiro Antônio Rezende. O canal da Flecha não funciona como um verdadeiro rio. Seu estuário é muito oscilante, dependendo das comportas instaladas no trecho final do canal e que têm a finalidade de regular o nível da lagoa Feia. Quando fechadas, a água salgada avança. Quando abertas, a água doce avança. E a energia marinha tende a fechar sua foz, que já foi prolongada mar adentro por dois espigões de pedra, gerando um novo problema: acúmulo de areia no espigão construído no município de Quissamã e erosão costeira depois do espigão construído no lado de Campos.
Para esse desequilíbrio contribuíram também o desmatamento na zona serrana e nos tabuleiros. A transposição de águas do Paraíba do Sul para atender a cidade do Rio de Janeiro pelo rio Guandu foi o golpe mortal dado ao rio. Hoje, estamos passando de um regime superúmido para um regime semiárido. Não existem mais lagoas para reter água doce. As florestas foram devastadas. Em conjunto, esses fatores substituíram o equilíbrio dinâmico por uma grande instabilidade. A salinização de terras é resultado desta instabilidade.
É interessante o paralelismo entre o canal da Flecha e o Engenheiro Antonio Rezende: ambos foram construídos nos limites do grande sistema de drenagem da planície. Além do canal Engenheiro Antonio Rezende, só as obras efetuadas na bacia do Itabapoana ganham relevância. Aquém do canal da Flecha, apenas as obras na bacia do Macaé assumem magnitude. Entre os dois canais, o DNOS empreendeu uma das maiores obras de engenharia hidráulica do mundo. Numa comunicação do DNOS em 1949 (Exaguamento e drenagem para recuperação de terras e defesa contra inundações em regiões e cidades brasileiras. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional), o órgão enfatiza a importância do canal da Flecha como o único do conjunto a desembocar no mar. O canal Engenheiro Antonio Rezende não havia sido iniciado. Ele também desembocará no mar subtraindo a foz do rio Guaxindiba.
MAPA
Depois dessa longa, mas necessária retrospectiva, examinemos o caso do canal Engenheiro Antonio Rezende, onde recente mortandade de peixe ocorreu. Este canal não é alimentado o ano todo pelas águas da lagoa do Campelo, que também não é alimentada permanentemente pelas águas do Paraíba do Sul. No começo do canal do Vigário, foram instaladas comportas mecanicamente manejadas. Elas podem ser fechadas em tempo de cheia e abertas em tempo de estiagem. Nos dois casos, a água do rio não entra nela, seja por barramento das comportas, seja por falta de nível do Paraíba do Sul. Como a escassez de água é grande, costuma-se abrir as comportas quando há nível, a fim de que as águas fluam em direção à lagoa.
No começo do canal Engenheiro Antonio Rezende, o DNOS instalou um vertedouro de concreto com 4, 69 metros na cota antiga, algo em torno de 2,90 metros atualmente. Assim, as águas da lagoa só fluem para o canal quando ultrapassam esta altitude.
Como se não bastasse, a prefeitura de São Francisco de Itabapoana, tempos atrás, construiu uma barragem no canal para atender às reivindicações do assentamento Zumbi dos Palmares. Com ela, as águas que fluem esporadicamente da lagoa ficam represadas, só correndo a jusante quando há nível para ultrapassá-la.
Acrescentemos a escassez progressiva de água. A região enfrentou uma longa estiagem nos anos de 2014-15 e agora atravessou o verão de 2018-2019 sem chuvas e elevação de nível do Paraíba do Sul de forma significativa. A natureza clama por água no norte/noroeste fluminense.
A redução da vazão do canal Engenheiro Antônio Rezende declina primeiro pela falta de chuvas. Depois, pela falta de nível do rio Paraíba do Sul e, consequentemente, da lagoa do Campelo. Para agravar, a barragem no meio do canal reduz drasticamente a vazão a jusante. Sem água doce que enfrente a água salgada das marés, a língua salina penetra a canal cada vez mais longe. Anos atrás, a saudosa bióloga Norma Crud e eu buscamos vestígios indiretos da penetração da língua salina no canal. Acompanhamos plantas de manguezal. Quando elas não mais germinavam e cresciam, continuamos procurando tocas de guaiamum, caranguejo que sinaliza a presença de salinidade. Alcançamos seis quilômetros canal acima.
Quando a água doce do continente escasseia, muitos problemas podem aparecer. O pouco volume permite o aquecimento das águas rasas, propiciando o que se conhece como demanda térmica de oxigênio (DTO). O pouco volume facilita também a demanda bioquímica de oxigênio (DBO). Ou seja, qualquer carreamento de matéria orgânica para o curso d’água, quer por lançamento ou por carreamento de chuvas, causa problemas mais agudos que causaria com mais volume de água. O avanço da língua salina também provoca choques que afetam tanto a fauna de água doce quanto a fauna marinha. Produtos tóxicos igualmente são mais letais com pouco volume de água.
Enfim, as obras realizadas pelo DNOS em nome da redenção regional foram concebidas numa época em que ainda não havia exigência de estudos de impacto ambiental. Elas fragilizaram principalmente a planície não só para a atividade pesqueira, mas também para a agropecuária.