Crônica de uma “revolução” anunciada
Por Hamilton Garcia
Os cem primeiros dias do Governo Bolsonaro deixam clara sua estratégia de poder. Montado num ministério tecnocrático, complementado por pastas ideológicas e de costas para o fisiologismo político, ele oferece ao país reformas a serem votadas no parlamento sem a prévia constituição de uma base parlamentar. Faz sentido.
Na geleia geral dos partidos brasileiros, o PT governou com o Centrão, de centro-direita, para se perpetuar no poder com um ajambrado “social-desenvolvimentismo”, e quando Temer assumiu o governo, sob os auspícios do mesmo grupo, a “ponte para o futuro”, de sentido radicalmente distinto, passou a ser seu Norte – logo se transformando numa “pinguela” no esforço prioritário de salvar o Presidente (e a si próprios) de uma investigação criminal. Fazendo tábula rasa de tudo isso, PSDB e PPS embarcaram nessa canoa na expectativa de convencer o eleitorado de que se tratava de uma “frente democrática para tirar o país do atoleiro”: resultado, o PSDB ficou fora do páreo, onde tinha lugar cativo desde 1994. Bolsonaro não teria destino melhor se resolvesse governar com eles – embora a alternativa seja uma pirambeira de pedras.
O fato é que as elites tradicionais (neopatrimoniais) dominam o Congresso, em especial a Câmara Federal, e nem os deputados liberais e bolsonaristas juntos podem com elas somadas à oposição. A oposição surfa nessa onda sem se importar com os efeitos sobre o sistema democrático, como é de praxe desde o PT. Seus setores mais consequentes chegam a apostar que a chicana parlamentar do Centrão, tomando como reféns a reforma da previdência e a Lei anticrime, são parte do “jogo democrático” e um freio ao autoritarismo bolsonarista. Sob a liderança de Rodrigo Maia, acreditam que se pode chegar a um ponto de equilíbrio que salvaguarde a Constituição. Bolsonaro agradece por mais este tiro n’água.
A aposta do Centrão e da oposição tem, a seu favor, a tradição: desde Collor, todos os Presidentes, vendo suas pautas ameaçadas, cederam às pressões. Bolsonaro, apoiado pela maioria da opinião pública, até aqui, reage pelas redes sociais reforçando seu compromisso eleitoral com a “refundação da República” – termo cunhado na campanha pelo Senador Álvaro Dias, mas encarnado pelo Capitão em sua oposição radical ao petismo. A resistência governamental procura se valer dos interesses sociais em jogo para confrontar a maioria parlamentar. Neste primeiro embate, deu certo: o mercado e o empresariado forçaram Maia à correção de rumo quanto à reforma da previdência.
De seu lado, não obstante a narrativa da imprensa de “acerto mútuo”, Bolsonaro não piscou: recebeu os dirigentes partidários de seu campo, mas manteve a Lei Anticrime e não revogou as normas que impôs para ocupação de cargos públicos: ficha limpa, perfil condizente com o cargo e admissibilidade pelo dirigente do setor, sinalizando que este não é um “governo normal”, como crêem muitos analistas políticos, convictos de que ele é prisioneiro de uma narrativa que o impediria de governar.
Mesmo perdendo popularidade no intrincado processo de negociação com a elite parlamentar, Bolsonaro segue sustentando seu objetivo “revolucionário” – expressamente assumido nos bastidores da recente visita à Trump – de recompor a racionalidade burocrática perdida pelo Estado brasileiro desde o fim do regime militar, e, assim, reanimar a economia e o emprego.
Nesta fase “paz&amor”, o Capitão torce para que as patacoadas parlamentares e judiciárias não só superem as de sua gestão – o que não é pouco! –, como convença os recalcitrantes da frente liberal-conservadora que o elegeu – com suas convicções democrático-procedimentais à moda de Schumpeter[i] – que este dois poderes, tal como estão hoje divididos, não serão capazes de contribuir com o país naquilo que deles o povo exige: desprendimento para recolocar a nave na rota do desenvolvimento. Esta conclusão só pode amadurecer, no seio da própria coalizão governamental, na travessia deste rubicão parlamentar, por meio da tática das “aproximações sucessivas” – já mencionada pelo Gen. Hamilton Mourão como sua perspectiva de superação dos impasses numa institucionalidade claudicante.
Tal aposta, pressupõe, naturalmente, que a soberania legislativa e a arbitragem judiciária se esvaiam no espetáculo deprimente da pequenez política e do particularismo corporativista que o Centrão não cansa de dar – agora secundado pelos torquemadas do STF –, e que só tende a adensar o apoio popular à “refundação”, abrindo caminho para iniciativas plebiscitárias de Governo que podem, inclusive, culminar na própria reforma do sistema político, cujo déficit de representatividade foi desnudado em 2013 e continua à espera da solução que evite seu colapso total – o que, em parte, não acontece porque a atual legislação político-partidária que enfraquece o poder de arbitragem dos eleitores, é a mesma que empoderou as oligarquias capitalistas até aqui (vide, Reforma Política e Governo Representativo).
A eventual emasculação das reformas, assim, é mais provável que seja debitada, pelo povo e o próprio empresariado, na conta do sistema político esgotado, não de Bolsonaro, como esperam as oposições mirando suas caneladas. O único elemento capaz de embaraçar este cenário, parece ser a ofensiva olavista contra o generalato, que pode levar a seu exato oposto: enfraquecimento do Presidente em proveito do Vice, num processo tão desgastante quanto o de Dilma. Para que este cenário se estabeleça, todavia, seria necessário que capitalistas e militares, junto com boa parcela da opinião pública, se convençam que Bolsonaro e seus filhos são o verdadeiro empecilho às reformas.
Uma solução sem Bolsonaro, porém, teria também seus riscos, podendo precipitar o agravamento da crise econômica no curto-prazo e deixando o cenário bastante nebuloso, não só pela reação bolsonarista, mas, principalmente, pela combustão espontânea que o agravamento da estagnação econômica e seus possíveis efeitos inflacionários podem produzir sobre um tecido social já esgarçado pelas drogas, violência, desemprego e aumento da pobreza.
Neste caso, a solução da crise não se daria pela simples assunção constitucional do Vice, um General da linha dura, mas pela provável decretação do estado de exceção (defesa ou sítio) para conter eventuais distúrbios e ameaças, cuja extensão e profundidade tornaria impossível controlar seus desdobramentos, em meio à polarização política e à desmoralização institucional (Legislativo e Judiciário).
Ademais, diante de um parlamento burocratizado[ii], com alta insensibilidade social – vide Maia e seu desdém pela Lei anticrime, que não foi capaz de propor antes de Moro – e crônica disfuncionalidade institucional, plasmada na assimetria entre o poder de veto e sua (ir)responsabilidade governamental, não é possível cravar que as mesmas medidas já apresentadas seriam aprovadas pelo Congresso apenas porque o Presidente mudou.
A esta altura do jogo, em que a caixa de Pandora parlamentar se encontra escancarada – com o Centrão cogitando vetar até os mais simples decretos presidenciais pela singela motivação de afrontar o Governo, com o apoio de setores liberais temerosos das tendências autoritárias do bolsonarismo – e que o Judiciário é comandado por personagem que se sente acuado por simples matéria jornalística, parece não haver dúvidas que as instituições, com ou sem Bolsonaro, precisam ser reparadas, institucional e eticamente.
De um legislativo dominado pelo Centrão, só se pode esperar o agravamento da anarquia gerencial/orçamentária, com pautas-bomba sendo detonadas em série, à moda dos aumentos salariais ao alto funcionalismo e magistratura, das PECs onde os recursos públicos são investidos sem planejamento, ao sabor dos interesses locais imediatistas, de anistias amplas às infrações políticas, etc. De um STF que rasga a constituição para implantar a censura em proveito próprio, e faz cara de paisagem, a mesma coisa: só novos casuísmos na mesma direção.
Oxalá, tal barafunda seja revertida pela razão e a força das vontades populares expressas nas recentes eleições, caso contrário, a refundação da República trilhará, inexoravelmente, por caminhos tortuosos, onde, pelo menos num primeiro momento, a poliarquia[iii] pode não sair ganhando – o que não se constituiria numa exceção histórica.
[i] Vide Joseph Schumpeter, Capitalismo, Socialismo e Democracia; ed. Fundo de Cultura/RJ, 1961, passim.
[ii] Vide Max Weber, Parlamentarismo e Governo numa Alemanha Reconstruída, in. Max Weber – textos selecionados (Os Pensadores), ed. Abril Cultural/SP, 1985, passim.
[iii] Vide Robert Dahl, Poliarquia – participação e oposição; ed. USP/SP, sd, passim.
[iv] Universidade Estadual do Norte-Fluminense (Darcy Ribeiro).