Antes de assistir “Eu fui Macabéa”, na noite de hoje, no Teatro de Bolso, a autora da peça, professora Arlete Sendra, me pediu que escrevesse após minhas impressões. Tenho profundo respeito por ela como literata de primeira grandeza no plaino goitacá. E foi a partir dessa base sólida que testemunhei sua estreia como dramaturga.
A peça de hoje faz parte de uma trilogia de personagens femininas de peso na literatura brasileira, transpostas ao teatro por Arlete. Macabéa é a protagonisa de “A Hora da Estrela”, último romance de Clarice Lispector. As outras duas são a Capitu, de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, e a Diadorim de “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa.
Órfão de pai e mãe ainda pequena, Macabéa é uma alagoana que sai do sertão à capital Maceió. Ela é criada por uma tia rígida com fartura de cocurutos na cabeça e privação do seu único objeto de desejo: goiabada com queijo. Após se mudar ao Rio, faz curso de datilografia e arruma emprego como secretária em um escritório.
Ciosa da sua virgindade, ela tem uma único relação amorosa, com o metalúrgico Olímpico. Também retirante do Nordeste, de onde saiu após matar um homem, ele sonha em ser deputado no romance de Clarice. Na peça de Arlete, o sonho fica oportunamente mais ambicioso: o metalúrgico almeja ser presidente. A identificação óbvia com Lula é um dos momentos que arrancam risos da plateia.
Magra pela vida de privações e pouco dotada de atributos físicos, Macabéa acaba perdendo o namorado para a carioca Glória. Loura oxigenada de formas generosas, ela “incha” o púbis de Olímpico à primeira vista — em outro momento que o público responde com risos.
Se a vida de Macabéa já era prenhe de agruras e desencantos, ela ganha contorno mais dramático com o diagnóstico de tuberculose — doença que, por ingenuidade, não dá a dimensão devida. Com consciência pesada por ter lhe roubado o namorado, Glória convida a nordestina para um lanche, na qual ela come tanto que passa mal. Mas não vomita por considerar desperdício de comida um “luxo de rico”.
É também Glória quem paga e recomenda uma consulta de Macabéa a uma cartomante: Madama Carlota. Como no verso de um fado, ela incute na sofrida nordestina a “saudade do futuro”, onde lhe esperaria o amor verdadeiro com um estrangeiro louro e rico chamado Hanz. Mas, na verdade, acaba por aproximá-la do desfecho trágico e solitário.
Como no romance de Clarice, o Nordeste da peça não foge do lugar comum. Mas a grande virtude das duas obras é humanizar Macabéa em seus conflitos internos e com o mundo que a cerca: do sertão, a Maceió, ao Rio. E como no romance “O Leitor”, de Bernhard Schlink, transformado pelo diretor Stephen Daldry no belo filme homônimo, o aprendizado da palavra escrita é fundamental nesse processo de humanização.
A ideia de partir de obras prévias não diminui o trabalho de Arlete. Desde o séc. XVI, Shakespeare era conhecido por escrever suas peças em cima de histórias já existentes. Assim como Sófocles, Ésquilo e Eurípedes fundamentaram o teatro na história e mitologia gregas das obras de Homero e Hesíodo. É pela dramaturga campista, não pela romancista ucraniana e naturalizada brasileira, que a chuva do encontro de Macabéa com Olímpico é comparada ao “esperma que fecunda a terra”.
Com justiça mais conhecido pelo talento na cenografia, do que por seu trabalho com atores, Fernando Rossi tem a virtude na direção de deixar a atriz Rosângela Queiroz à vontade para encarar o monólogo de Arlete. E a intérprete dá conta do recado com pungência. Que venham agora a Capitu de Katiana Rodrigues e a Diadorim de Adriana Medeiros.