Edmundo Siqueira — Na análise do governo Bolsonaro, a verdade fora da caverna

 

“O mundo não começou quando nascemos, como muitos teimam em acreditar”. Em tempos como os atuais, quando o obscurantismo ronda perigosamente na negação de fatos históricos, do heliocentrismo, da evolução das espécies, da importância das vacinas à saúde pública, da ida do homem à Lua e até da forma redonda da Terra, a afrmação é tão óbvia quanto necessária. E foi feita em artigo do campista Edmundo Siqueira, servidor do Banco do Brasil.

O texto chegou ao blog através do policial federal Roberto Uchoa, especialista em Segurança Pública e também blogueiro do Folha 1. O Edmundo pediu a ele que o enviasse pelo fato da sua análise dialogar diretamente com o artigo intitulado “Democracia com megafone”, escrito por mim e publicado no último domingo domingo, na Folha da Manhã e (aqui) neste blog.

Para analisar o governo Jair Bolsonaro (PSL), Edmundo recorreu à lembrança da guilhotina que cortou tantas cabeças no Período do Terror da Revolução Francesa do séc. XVIII, inclusive dos seus líderes. O texto termina com a referência sempre atual ao “mito da caverna”, presente na obra “A República” do filósofo Platão, aluno de Sócrates e professor de Aristóteles, na linha direta do pensamento que pariu a Civilização Ocidental.

Quando muitos buscam abrigo na sombra, um pouco de luz é sempre bem vinda:

 

 

Edmundo Siqueira, servidor federal

Verdade fora da caverna

Por Edmundo Siqueira

 

Outro dia desses estava absorto em pensamentos que viriam a fazer uma comparação entre as ágoras na Grécia do séc. VI a.C., que eram espaços abertos, praças, onde os gregos discutiam os assuntos relacionados a cada pólis (cidade-estado na Grécia Antiga) e o Facebook. Entendia que haveria semelhanças entre as duas plataformas, com as duas formas de comunicação e de diálogo e muitas vezes de discussões acaloradas. Seria possível traçar um paralelo entre elas, mesmo com o abismo histórico-temporal e com a diferença na complexidade das sociedades a que elas habitaram. Conceitualmente, seria possível.

Eis que me deparo com um editorial do principal jornal de minha cidade tratando do tema. Tratando exatamente sobre o fato de que as mídias sociais estariam cumprindo o papel de ser esse espaço de discussão da pólis. No artigo, o jornalista Aluysio Abreu Barbosa faz um levantamento histórico da democracia e seu modelo representativo, passando pelo Iluminismo, pela Revolução Francesa e chegando ao Brasil, trazendo esse resgate para analisar os dias atuais. Ora, é preciso saber de onde viemos e como construímos nosso pensamento para que possamos analisar o presente e planejarmos nosso futuro. O mundo não começou quando nascemos, como muitos teimam em acreditar. Existem determinismos históricos aos quais não podemos fugir.

Escrevi sobre o tema em uma dessas redes sociais, o Instagram, essa em verdade mais parecida com os ginásios da Grécia antiga, onde o culto à beleza era frequente. A usava para que eu pudesse tomar a distância necessária do objeto para observá-lo, uma vez que comparava a ágora com o Facebook, querendo que minhas ponderações tivessem algum cunho científico, mesmo restando essa hipótese impossível. Ao ler o artigo, porém, pude pensar em outra comparação, com outro fato histórico: os “tribunais do povo” instaurados na França revolucionária, no período de terror jacobino de Robespierre (1793-1794), onde os inimigos do “povo” e do estado eram julgados e sentenciados à guilhotina. O Facebook muitas vezes cumpre esse papel. Reputações são destruídas e mitos são criados por uma mídia social que se comporta como verdadeiros tribunais. E o pior: não aceitam recursos. Outra semelhança “jurídica” com os robespierianos. A histórica nos ensina e mostra que o próprio líder daquele período da Revolução Francesa foi sentenciado à mesma guilhotina que outrora instituía a tirania a seu mando, inclusive com a morte do rei Luís XVI. O mesmo tribunal criado pelo Robespierrre o sentenciou. Voltando aos paralelos, as mídias sociais parecem ter mesmo poder, não há guilhotinas, mas há sentenças que decepam vidas.

A história brasileira é repleta de ambivalências: país de maioria negra foi o último do Ocidente a abolir a escravidão, para dar apenas um exemplo. A formação de nossa identidade enquanto nação foi conturbada, guiada por grupos de interesses domésticos e estrangeiros. O exercício democrático foi sempre tardio, mais reativo que proativo. Passamos por um período militar que foi apoiado por uma parcela da sociedade, personificada pela “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, outro exemplo de ambivalência explícita. Não era representativa. O povo não teria participado do processo. Nossa democracia vem passando por maus bocados. Acusações de golpes, mortes de políticos sem explicação, uma ditadura, dois impeachments. O Brasil em pouco tempo, em comparação com países europeus e até americanos, precisou amadurecer suas instituições. Depois da ditadura ou regime militar como recentemente grupos de uma nova direita quiseram nomear através de uma narrativa própria, iniciou-se o processo de redemocratização que culminou no nascimento de dois filhos de políticos de uma mesma ideologia. Dois partidos coirmãos que se apresentaram como a saída de um regime ditatorial longo e violento. Tempos depois vieram a ser antagonistas no tabuleiro político, mas possuem a mesma base social democrata, progressista em alguns aspectos. PT e PSDB determinaram os rumos do país por décadas. Parecia que o país atravessara um período de paz e de dobradinhas ideológicas, a exemplo de democracias mais maduras como a americana, trazendo as figuras dos partidos democrata e republicano. Até que um fenômeno personificado na presidência e chamado Dilma Rousseff aparece. A presidente reunia incapacidade política administrativa e somava-se o desgaste do longo período de poder de seu partido. O resultado foram os movimentos de Junho de 2013 que resultaram com o impeachment.

A história nos mostra quem somos. Mas também deve servir para prever alguns movimentos, ou pelo menos poder analisar a conjuntura e a realidade cotidiana. O governo Bolsonaro é eleito justamente com o uso das mídias sociais. As ágoras gregas seriam um elemento da administração política da pólis. Bolsonaro parece ter aprendido, a despeito de sua visível limitação intelectual. Usa o Twitter para fazer interlocução com seus eleitores e até com o Congresso. Esquece-se que ocupa o posto mais alto da república e compartilha vídeo afrontoso no carnaval. Usa as mídias para impor uma agenda ligada a costumes e desprovida de ações concretas. Com a pecha de conservador nos costumes e liberal na economia, agradou grupos de direita e extrema direita que agora parecem ir para um arranjo de oposição ou pelo menos de desconforto. O tribunal do povo de Robespierre, com sua versão moderna no Facebook, pode levar o eleito Boslonaro à guilhotina.

O próximo dia 26 irá marcar, falando em previsões, um movimento pró governo que pode demarcar o território político em D+1, no day after. Os grupos conservadores irão se alinhar definitivamente ao governo? Os grupos liberais que acreditaram que Paulo Guedes, ministro da economia, pudesse impor ações de mesmo espectro ideológico, continuarão acreditando? As alas do governo passarão a se entender, mesmo com os ataques do guru e astrólogo Olavo de Carvalho ao setor militar, ou irão rachar de vez?

A nossa democracia vem passando por maus bocados. Ressurgem ataques ao congresso e ao judiciário. As mídias sociais ecoam esses ataques. Novas formas de governos são propostas. Parlamentarismo parece ser uma opção viável, apesar de todo descrédito do congresso. As pautas do Executivo não emplacam. Grupos opositores ganham força e corpo com os ataques à educação. Setores das igrejas neopentecostais parecem insatisfeitos. O exercício democrático é intenso e a elasticidade dessa forma de organização social é testada. Bem como o estado tripartite de Mostesquieu. Todo esse caldo tem muito de sofismo. A retórica é cada vez mais usada e aperfeiçoada. A filosofia explica, mais que a psicologia, talvez, embora se complemente. Os antigos pensadores moldam nossa vida, suas ponderações são cada vez mais presentes. Mesmo séculos depois ainda discutimos as mesmas inquietações. Resta saber quem saíra da caverna e verá a verdade. E mais ainda: quem acreditará nela.

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Sérgio Provisano

    Meu querido Aluysio, eu tenho por hábito ler e reler, para formar meu juízo de valor e posso dizer que sempre é prazeroso frequentar este espaço, que é um dos poucos, abertos à diversidade de ideias e opiniões, e um dos poucos, onde a vida inteligente, existe e vai além de 15 linhas de texto, andei nua espécie de período sabástico, pois estive acometido – e portanto limitado – e não participava de publicações, pois estava com catarata nos dois olhos e só recentemente, consegui operar, pois como Educador e Funcionário Público, o que percebo, mal dá para sobreviver, quiça operar pelo sistema privado, ai´quem como a maioria da população (e eu sou maioria) depende dos serviços públicos sofre na carne, mas o artigo é excelente, de parabéns a editoria, de parabéns o articulista, o Edmundo Siqueira. Esse tema me é caro, eu tergiverso de quando em vez, sempre dentro dele e sempre que deparo, me encanto. Agora, tenho podido estar mais amiúde nas redes sociais, donas das “irrefreáveis Democracias”, e acompanho atentamente as reflexões postadas neste espaço, que repito, é mais que necessário, é essencial, para sobrevivência das ideias e para o debate. Saudações, esse ecrevinhador que vai morrer, te saúda!

  2. Maia

    Um texto com tanta coerência e conhecimento não poderia deixar de ser aplaudido. Quem o conhece, como eu que tenho algumas opiniões contrárias politicamente falando, sabe o quanto você é um grande Escrevinhador e debatente sobre assuntos diversos. Parabéns Edmundo Siqueira.

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