Muito menos conhecido do que deveria, “A Filha de Ryan” (1970), do mestre inglês David Lean, será o filme exibido às 19h desta quarta (05) no Cineclube Goitacá. A sessão acontece na sala 507 do edifício Medical Center, no cruzamento das ruas Conselheiro Otaviano e 13 de Maio. Ao final, ocorre debate, mediado por mim. A entrada e a participação são gratuitas.
Diante de “Lawrence da Arábia”, dirigido por Lean em 1962 e considerado como um dos maiores clássicos da história do cinema, difícil impedir que seu brilho solar ofusque o resto da filmografia do diretor. Mas “A Filha de Ryan” também poderia integrar, sem favor, qualquer lista de melhores filmes de todos os tempos. Sobretudo se a coletânea for do gênero romance.
A história se passa numa pequena vila de pescadores da Irlanda, durante a I Guerra Mundial (1914/1918). Vizinha à Inglaterra, a ilha da Irlanda é hoje dividida entre a Irlanda do Norte, de maioria protestante e ainda ligada à Grã-Bretanha, e a independente República da Irlanda, de maioria católica. A atual divisão só se deu a partir da Guerra de Independência do país, entre 1919 e 1921.
Durante a I Guerra, toda a Irlanda era dominada desde o séc. XVII pela Inglaterra. Que estava militarmente ocupada em disputar o poder na Europa Continental, no Oriente Médio e na Ásia contra a Alemanha, Império Austro-Húngaro e Turquia. Com a maior parte dos dominadores britânicos dedicados ao conflito global, os dominados irlandeses se animaram com seus sonhos de independência, que só seriam concretizados poucos anos depois.
O contexto político é pano de fundo para a história de um triângulo amoroso, mas fundamental em sua evolução e desfecho. Na isolada aldeia de pescadores de Killary, na península irlandesa de Dingle, Sarah Miles é Rose Ryan. Jovem saída da adolescência, sonha com um mundo que só conhece de livros de romance e catálogos de artigos femininos, enquanto o mundo real explode em conflitos sangrentos.
Órfã de mãe, Rose é a filha única de Thomas Ryan (Leo McKern) — daí o título do filme. Dono também do único bar do local, fato de importância redobrada em se tratando de irlandeses, o pai pode ser considerado rico em meio a pescadores pobres, e mima Rose sempre que pode. Líder espiritual da aldeia, o velho padre Collins (Trevor Howard, poderoso como sempre) se preocupa com o choque inevitável entre sonho e realidade da filha de Ryan.
Das poucas pontes de Rose com o mundo exterior que idealiza é o professor da vila, Charles Shaughnessy. É interpretado pelo galã Robert Mitchum, astro de Hollywood na produção britânica, convincente como irlandês. Viúvo de meia idade e fã de Beethoven, é alvo da paixão platônica da ex-aluna, que só se consuma após insistência dela. A sequência do casamento e da noite de núpcias é uma das tantas do filme que merecem destaque.
Tudo poderia ir bem naquele cenário isolado de mar, penhascos e campos verdejantes, não fosse a chegada do novo comandante da guarnição britânica instalada para vigiar as atividades dos inimigos no litoral. O jovem e garboso oficial Randolph Doryan (Cristopher Jones) chega com a fama de herói dos campos de batalha da Europa, mas revela a realidade na perna comprometida por ferimento e no trauma de guerra que o atormenta.
É pela fragilidade que Rose se aproxima do “inimigo”, jovem como ela. Como é na deficiência física que se criará o vínculo entre o oficial britânico e o louco da aldeia irlandesa: Michael, em composição que deu o Oscar de coadjuvante a John Mills. Perambulando em seu mundo particular, ele será testemunha muda, mas mímica, do romance consumado em sequência com cenas da natureza entre as mais sensíveis da história da sétima arte — mesmo em clara metáfora de ejaculação.
O mundo real surge no descarregamento de armas de um navio alemão para reforçar a resistência irlandesa contra os ingleses, durante uma tempestade. A coragem dos aldeões contra a violência do mar dialoga com outro clássico do cinema: o documentário “O Homem de Aran” (1934), de Robert Flaherty, também filmado na Irlanda. E se trata de mais uma sequência soberba, cujo desfecho se abaterá como tragédia aos protagonistas da ficção.
Há poucos filmes perfeitos. “A Filha de Ryan” é um deles. Se não fossem as virtudes de interpretação, roteiro, adaptação de época, som e música, é fruto de uma das duplas que mais contribuíram para fazer do cinema um espetáculo sobretudo visual: o diretor David Lean e o diretor de fotografia Freddie Young, também inglês. Este, pelo trabalho, levou seu terceiro Oscar, após outros dois em parceria com Lean: “Lawrence da Arábia” e “Dr. Jivago” (1965).
Ao final do filme, sem spoiler, a mensagem tem a benção do padre Collins: amar pode ser também perdoar.
Confira o trailer do filme: