O ídolo dos nossos ídolos
Por Aluysio Abreu Barbosa
Mas este texto não era para falar de João Gilberto? E você vem com Eric Clapton, seu aculturado anglófilo? Calma, explico. Como meu pai tinha me passado, desde que sou capaz de lembrar, muito da sua vasta cultura musical em MPB, jazz, tango, bolero e ópera italiana, sempre desejei sair do polo passivo e estabelecer diálogo de influências. Como ele não gostava de rock, nem guitarra elétrica, tive muita dificuldade para convencê-lo que o gênio de Clapton, como aprendi sobre Gilberto, excedia o instrumento e o estilo.
Vai, então, que era 1992 e a MTV grava e lança o Unplegged de Eric Clapton. Foi um estrondoso sucesso de público e crítica, com mais de 26 milhões de discos vendidos em todo o mundo e três prêmios Grammy.
Os motivos? Primeiro, pela irresistível curiosidade de conferir o deus da guitarra tocando violão. Segundo, porque foi nele que o inglês branco finalmente superou o constrangimento para se assumir como um dos maiores nomes na história do blues, música de lamento dos negros dos EUA. Terceiro, porque o disco foi puxado pela história trágica da lacrimogênea canção “Tears in Heaven”, que compôs para seu filho Conor, morto aos 4 anos após cair por acidente da janela do 53º andar de um prédio em Nova York.
Mas, logo que comprei e ouvi pela primeira vez o disco, estranhei que sua primeira música, “Signe”, composição de Clapton e executada sem voz, apenas instrumental, fosse levada por ele no violão numa característica batida de bossa nova. Bem verdade, a cintura dura se revela na percussão, como sempre acontece quando um não brasileiro se arrisca no batuque do samba. Mas aquela viola não faria feio na roda de bamba de nenhum morro carioca.
Como escutava o disco o tempo todo, estava com ele num dia de sol daquele início dos anos 1990, em que fui visitar meus pais em Atafona. Eles estavam hospedados na casa de Cicinha e Edvar Chagas, hoje falecido como meu pai. Mas lembro da curiosidade de Aluysio e Diva, que estavam na piscina da casa, quando botei no aparelho de som aquela primeira faixa do Unplegged de Clapton. Antes, lancei o desafio: “Quero ver se vocês adivinham quem toca o violão nessa música”.
Durante os 2:07 minutos da faixa, meus pais gastaram munição nos palpites: “João Gilberto?”, “Não!”; “Baden Powell?”, “Não!”; “Carlinhos Lyra?”, “Não!”; “Roberto Menescal?”, “Está frio!”; “Já sei: Raphael Rabello!”, “Na-na-ni-na-não!”. Quando a música acabou e eu disse que era Eric Clapton, eles fizeram caras mudas de espanto. E nos pequenos olhos verdes do meu pai, vi refletidos seus dois braços dados a torcer. Sem verbo, como era coisa dele.
Só uns 10 anos depois, lendo uma entrevista de Clapton, fui descobrir a origem daquela composição bossanovista pelo gênio do blues e do rock. Após assistir a um show de João Gilberto em Londres, ele ficou tão impressionado com a revolucionária batida de violão do brasileiro, que não suportou ser apenas polo passivo. Foi impelido a dialogar com aquilo, como eu com meu pai. E o resultado foi “Signe”, que escolheu para abrir seu disco até hoje mais exitoso.
Após a morte de João Gilberto, no último dia 6, quase tudo foi escrito sobre o criador da batida da bossa nova no violão. Junto com o piano de Tom Jobim e a poesia de Vinicius de Moraes, ele integrou a santíssima trindade do movimento musical brasileiro que ganhou o mundo entre o final dos anos 1950 e a década seguinte. A novidade foi pegar a melodia e o ritmo do samba, riquíssimos, e associá-los à harmonia mais sofisticada do jazz. Foi o mesmo que o argentino Astor Piazzolla faria com o tango para criar o Nuevo Tango.
Se o violão de João foi criação própria e personalíssima, seu canto contido, na ourivesaria de cada sílaba, ecoando o mínimo toque entre língua, dentes, lábios e palato, é influência direta de Chet Baker. Outro gênio da música, o trompetista e cantor dos EUA foi um dos maiores nomes do cool jazz.
Quem se impressionou de cara com a antológica gravação de “Chega de Saudade” pelo brasileiro, em 1958, deve ouvir a gravação de Chet de “My Funny Valentine”, em 1953. O eco da voz deste sobre aquele, cinco anos depois, grita em cada sussurro.
Com seu violão e canto, João Gilberto foi um mestre da contenção no samba, como Chet Baker no jazz e Eric Clapton, no blues. É uma arte mais sutil e rara que a de expansão. E tem expoentes além da música: Ernest Hemingway e Graciliano Ramos na prosa, João Cabral de Melo Neto na poesia, Robert De Niro na interpretação, Zinédine Zidane no futebol. Em diferentes áreas de expressão humana, suas artes têm a circunscrição da essência. Existem para provar que menos é mais.
Sobre todos esses nomes, a característica que talvez distinga João Gilberto é essa tremenda influência que ele teve sobre outros gênios da sua área. Não só os brasileiros vivos e cônscios em 1958, capaz de fazer com que todos se lembrem onde estavam quando ouviram “Chega de Saudade” pela primeira vez, como sobre alguém distante em espaço, cultura e estilo como Eric Clapton.
Foi pelo eco da batida do violão de João que consegui traduzir um meu ídolo a outro, ao vento nordeste de Atafona. E esse talvez seja o melhor resumo do gênio da raça que o Brasil perdeu: ele foi o ídolo dos nossos ídolos.
Publicado hoje (14) na Folha da Manhã
Esse sim merece todo respeito foi uma perda imensurável da musica no nosso pais.