Hoje o presidente Jair Bolsonaro (PSL) deu mais uma das suas polêmicas declarações. Sobre um dos seus assuntos preferidos: a nossa última ditadura militar (1964/1985). Só que desta vez envolveu Campos dos Goytacazes, mesmo sem querer, na nova celeuma. O caso envolve a suposta queima de corpos de presos políticos nos fornos da usina Cambaíba, denunciada pelo ex-delegado do extinto Departamento de Ordem Política e Social (Dops) Cláudio Guerra no livro “Memórias de uma Guerra Suja” (2012), e em seu depoimento na Comissão da Verdade.
Hoje de manhã, falando a jornalistas, Bolsonaro se mostrou descontente com a atuação da Ordem os Advogados do Brasil (OAB) nas investigações sobre o caso de Adélio Bispo. Como é notório, o ex-militante do Psol lhe deu uma facada durante a campanha presidencial de 2018, em Juiz de Fora (MG), considerada fundamental para sua vitória nas urnas:
— Por que a OAB impediu que a Polícia Federal entrasse no telefone de um dos caríssimos advogados (do Adélio)? Qual a intenção da OAB? Quem é essa OAB? — questionou o presidente.
Logo depois, como é do seu estilo, Bolsonaro partiu para o ataque pessoal contra o próprio presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz, que teve o pai Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, militante de esquerda desaparecido em 1974, nos anos de chumbo da ditadura:
— Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele. Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro.
A declaração gerou nota de repúdio da OAB, que lembrou os limites da Constituição ultrapassados pelo presidente: “Todas as autoridades do País, inclusive o Senhor Presidente da República, devem obediência à Constituição Federal, que instituiu nosso país como Estado Democrático de Direito e tem entre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana, na qual se inclui o direito ao respeito da memória dos mortos”.
Em carta aberta a Bolsonaro, Felipe Santa Cruz disse: “O mandatário da República deixa patente seu desconhecimento sobre a diferença entre público e privado, demostrando mais uma vez traços de caráter graves em um governante: a crueldade e a falta de empatia”. Diretora da Anistia Internacional, Jurema Werneck ressaltou que “é terrível que o filho de um desaparecido pelo regime militar tenha que ouvir do presidente do Brasil, que deveria ser o defensor máximo do respeito e da justiça no país, declarações tão duras”.
Após a reação, Bolsonaro voltou a se manifestar sobre o assunto nas redes sociais, atribuindo a morte de Fernando Santa Cruz aos próprios movimentos de oposição à ditadura:
— Tinha o Santa Cruz, que era jovem, veio para o Rio de Janeiro. De onde eu obtive as informações? Com quem eu conversei na época, ora bolas. Conversava com muita gente. […]. E o pessoal da AP (Ação Popular) do Rio de Janeiro ficou, primeiro, ficaram estupefatos, ‘como é que pode esse cara vir do Recife se encontrar conosco aqui?’. O contato não seria com ele, seria com a cúpula da Ação Popular de Recife. E eles resolveram sumir com o pai do Santa Cruz (…) Isso que aconteceu, não foram os militares que mataram ele, não, tá? É muito fácil culpar os militares por tudo o que acontece. Isso mudou. Mudou através do livro “A Verdade Sufocada”, o depoimento do Brilhante Ustra.
Diferente da versão de Bolsonaro e do falecido coronel Carlos Brilhante Ustra, único militar a serviço da ditadura condenado por tortura e morte de presos políticos no Brasil, o ex-delegado do Dops Cláudio Guerra conta na página 58 do livro “Memórias de uma Guerra Suja”:
— Fiz outras viagens entre a Casa da Morte e a usina de Campos (Cambaíba) para levar corpos, que eu identifiquei, pelo livro, serem de Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Eduardo Coleia Filho, José Roman e Luiz Ignácio Maranhão Filho. Mais uma vez não torturei, não matei. Somente transportei os cadáveres para a incineração. Perdigão e Vieira passaram a contar com a usina de Campos como um braço operacional das execuções, uma alternativa para eliminar os vestígios dos mortos pelo regime.
Com base no testemunho de Cláudio Guerra e outros, a Comissão Nacional da Verdade concluiu que Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro”. A partir das revelações do livro, o Ministério Público Federal de Campos abriu uma investigação sobre a suposta queima de corpos de presos políticos durante a ditadura na usina Cambaíba.
Procurador da República da comarca, Guilherme Virgílio assumiu as investigações após a transferência de Eduardo Santos Oliveira para o Rio de Janeiro. Ele informou hoje que o inquérito foi concluído na semana passada e que o MPF está trabalhando na finalização e no que será apresentado à Justiça. O procurador confirmou que Cláudio Guerra disse no livro e em depoimentos na Comissão da Verdade que o corpo de Fernando Santa Cruz foi incinerado em Cambaíba, mas não pôde dar mais detalhes porque o procedimento ainda está sob sigilo. No entanto, disse acreditar que o sigilo será levantado ainda nesta semana. Assim que o sigilo cair, ele vai encaminhar todas as peças da investigação.
Diretor do documentário “Forró em Cambaíba” (2013), que trata das denúncias de Cláudio Guerra e a ocupação da terras da usina pelo MST, o jornalista campista Vitor Menezes disse hoje sobre o caso, que voltou à tona com a nova polêmica de Bolsonaro:
— Se o presidente disse estar informado sobre as circunstâncias da morte do militante Fernando Santa Cruz, tem a obrigação moral de revelar para a família e para a sociedade o que ocorreu. No caso específico de Cambaíba, contribuiria também para elucidar o suposto uso do local para queima de corpos de presos políticos. Seria o modo honrado de lidar com a história, especialmente em se tratando de crime praticado pelo Estado e sendo Bolsonaro, agora, seu mais importante representante.
Presidente da OAB/Campos, Cristiano Miller também comentou as declarações do presidente da República sobre o pai do presidente nacional da OAB:
— Esses ataques, em verdade, atingem à advocacia como um todo. Independente da escolha político-partidária de cada um. E todos nós somos livres, óbvio, para tê-las. As ofensas da forma como estão sendo feitas são inaceitáveis e não podem contar com o nosso apoio.
Um dos primeiros a fazer o elo (aqui) das declarações de Bolsonaro com a antiga usina de Campos foi o jornalista niteroiense Erick Bretas, influenciador virtual que trabalha radicado nos EUA, na área de tecnologia da Globo:
— Bolsonaro cruzou, mais uma vez, a fronteira da simples estupidez e da deselegância e entrou num território muito delicado ao falar hoje cedo de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do presidente da OAB, desaparecido em 23 de fevereiro de 1974, no Rio de Janeiro (…) É ocioso continuar deitando falação sobre as grosserias e impropriedades ditas pelo presidente da República. Mas é importante apontar as consequências dessas falas, inclusive legais. As prerrogativas de presidente não significam inimputabilidade. Mais cedo ou mais tarde Bolsonaro terá que prestar contas pelo que diz.
Colaborou o jornalista Aldir Sales
Sobre as palavras do jornalista Vitor Menezes:
Honradez é uma qualidade muito distante desse capitão