Por Arnaldo Neto e Aluysio Abreu Barbosa
O promotor estadual Marcelo Lessa vê com surpresa a conclusão do Ministério Público Federal (MPF) de que corpos foram incinerados na usina Cambaíba, durante a ditadura. Em 2012, ele decidiu pelo arquivamento da investigação das denúncias e diz que hoje reitera tal posição.
Folha da Manhã – Em 10 de agosto de 2012, você decidiu pelo arquivamento da investigação das denúncias de queima de corpos de 12 presos políticos da ditadura militar nos fornos da usina, feitas pelo ex-delegado do Dops Cláudio Guerra no livro “Memórias de uma Guerra Suja”, lançado naquele ano. Como viu o inquérito do MPF sobre o caso, divulgado esta semana, que concluiu no sentido de validar as denúncias?
Marcelo Lessa – Não cheguei a ver o inquérito, mas as notícias divulgadas por meio da imprensa sobre as conclusões do aludido inquérito, que, segundo o que li, teria resultado em denúncia em face do ex-delegado do Dops (sic). Caso a informação esteja correta, recebo com surpresa, a uma porque tais crimes estão anistiados, a duas porque prescritos, a três pela própria competência da Justiça Federal na espécie, e a quatro pela materialidade de tais delitos: como se conseguiu demonstrá-la, tantos anos depois? Ratifico o entendimento que adotei à época e que levou ao arquivamento do procedimento investigatório criminal que havia no âmbito do Ministério Público Estadual, o que, acredito, era a solução mais técnica, ainda que não exatamente a mais popular, na espécie.
Folha – A investigação que você conduziu foi instaurada a partir de notícia-crime do empresário Jorge Lyzandro, um dos herdeiros do espólio de Cambaíba, por conta das denúncias do livro. Por que pediu o arquivamento sem ouvir Cláudio Guerra?
Marcelo – Por um razão muito simples: ele já havia escrito e publicado um livro inteiro sobre o assunto. Duvido que tivesse algo a acrescentar. Naquele momento, julguei que o que ele buscava era se promover e, neste caso, achei que não era o papel do Ministério Público contribuir para este tipo de promoção, sobretudo da forma espampanante como se pretendia. Além do mais, segundo o entendimento que adotei e hoje reitero, tecnicamente não fazia sentido investigar um crime prescrito e anistiado. Não é esta a finalidade de um procedimento investigatório criminal.
Folha – No documentário “Forró em Cambaíba” (2013), feito pelo Sindipetro e dirigido por seu assessor de imprensa Vitor Menezes, você chegou a declarar sobre as denúncias de Cláudio Guerra: “Não vou bater palmas para maluco dançar”. Isso não é uma desqualificação a priori?
Marcelo – Eu não assisti ao documentário e, tanto tempo depois, não consigo me recordar o contexto em que teria sido dita esta frase. No entanto, dentro da resposta anterior, está explicada no sentido de que, se considero o crime anistiado e prescrito, ouvir o autor do livro no momento em que estava fazendo a divulgação do mesmo, seria tão-somente garantir um espaço para fazer “merchandising”, o que não é o papel do Ministério Público, ao menos na minha percepção.
Folha – O caso voltou à tona após o presidente Jair Bolsonaro (PSL), na segunda (29), questionar a atuação da OAB na investigação da facada que recebeu de Adélio Bispo em Juiz de Fora (MG). E atacar o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz: “Um dia se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade”. Na página 58 do livro de Guerra, ele conta como, em 1974, transportou o corpo do ex-militante de esquerda Fernando Santa Cruz, pai de Felipe, da Casa da Morte em Petrópolis, para ser incinerado em Cambaíba. O que achou do episódio?
Marcelo – Eu não acho apropriado, como membro do Ministério Público e num momento de polarização político-ideológica sem precedentes como esse em que vivemos nos dias atuais, fazer qualquer consideração crítica acerca de uma manifestação pública do presidente da República. Peço desculpa, portanto, por não responder concretamente à pergunta. No entanto, falando em termos gerais, tenho que nenhuma morte, de nenhuma pessoa, seja em que circunstância ocorra, legítima ou ilegítima, deva ser objeto de deboche ou qualquer tipo de comentário irônico. Pouco importa, é uma morte de qualquer maneira. Antes de tudo, temos que ser solidários aos familiares de quem foi morto, não importa em que circunstância foi; nunca fazer ironia com isto.
Folha – Ainda na segunda, após a reação nacional à sua declaração, Bolsonaro afirmou em live que Fernando Santa Cruz teria sido morto pelos companheiros da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), que integrava. E foi desmentido pela revelação do relatório secreto RPB 655, da Aeronáutica, que atestou que Fernando foi preso em 22 de fevereiro de 1974. A verdade pode ser distorcida pela ideologia? Isso não é ainda mais grave no presidente da República?
Marcelo – Aqui, mais uma vez, peço desculpa por não responder diretamente, já que a pergunta se refere a uma fala do presidente da República, que não me cabe criticar sob o ponto de vista político. Não julgo apropriado a um membro do Ministério Público fazer isso. Agora, não posso deixar de reiterar que a verdade deve ser um compromisso de qualquer autoridade pública, doa a quem doer.
Folha – A Comissão Nacional da Verdade, que investigou esse e outros milhares de casos no regime militar, deu duas possibilidades ao destino do corpo de Fernando Santa Cruz: sepultado pela ditadura numa vala comum no Cemitério dos Perus, em São Paulo, ou incinerado em Cambaíba. Na sua experiência de investigador, acha possível se chegar a uma conclusão definitiva?
Marcelo – Esse foi um dos fundamentos pelos quais arquivei aquele procedimento investigatório: a impossibilidade técnica, segundo os recursos investigatórios de que dispunha, para comprovar se um dia algum corpo foi de fato queimado nos fornos da usina. Pelo tempo que passou e por todas as intempéries a que o local foi exposto, do ponto de vista técnico, não creio ser possível determinar sinais ou vestígios de que corpos tenham passado pelo local, quando mais identificar de quem eram.
Folha – Alguns, como você, alegam que os crimes cometidos pela ditadura, assim como pelos grupos de esquerda que fizeram oposição armada ao regime, ficaram para trás com a Lei da Anistia de 1979. Outros, como procuradores da República de Campos, alegam que o crime da tortura é imprescritível. Como fica essa discussão no plano jurídico?
Marcelo – Anistia e prescrição são institutos que não se confundem. Anistia é um ato de política legislativa que resolve “perdoar” a infração, conduzindo à extinção da punibilidade de seus autores. Foi o que ocorreu com a Lei da Anistia, “ampla, geral e irrestrita”, como se dizia nos anos 80. Da mesma forma como os militantes de esquerda não precisam mais se preocupar com eventuais crimes de sequestro, organização criminosa armada, por exemplo, os integrantes do regime não precisam se preocupar mais com abusos de autoridade e outros crimes. Foi uma opção política do legislador, que preferiu apagar os efeitos jurídicos dos crimes cometidos por ambos os lados. Se foi uma boa ou uma má opção, é outra questão. Porém, de uma forma ou de outra, a opção foi feita e precisa ser respeitada, por todos, independentemente de qualquer posição ideológica. A anistia é uma figura jurídica prevista na Constituição e atribuição do Poder Legislativo. Anistia não se confunde com prescrição; uma coisa não impede a outra, e inclusive, ambas as figuras jurídicas podem se sobrepor, como na espécie se sobrepõem. A prescrição é a perda do direito de punir, por parte do Estado, em face do decurso do tempo. A tortura é um crime prescritível. Só existem dois tipos de crimes imprescritíveis, na atual Constituição: o racismo e a ação de grupos armados, civis ou militares, contra ordem constitucional e o estado democrático (art. 5º, XLII e XLIV, da Constituição). A tortura não está, portanto, dentre os crimes imprescritíveis. O que a tortura é e, mesmo assim, nos termos da atual Constituição, é insuscetível de graça e anistia. Mas a Lei de Anistia de que estamos falando é anterior à atual constituição. E, além disto, no caso concreto, o que investigava não era a tortura, que teria ocorrido na “Casa da Morte”, em Petrópolis, e, sim, o crime de ocultação de cadáver, que não se confunde com a tortura quando em vida, já que os cadáveres supostamente teriam sido transportados para serem incinerados em Campos. Eram cadáveres, segundo o livro. Portanto, as pessoas já haviam sido mortas quando seus corpos eram trazidos para Campos. O crime, portanto, é outro: ocultação de cadáver. Que não se confunde com a tortura daquelas pessoas quando em vida, supostamente consumada, inclusive, em outra comarca.
Publicado hoje (04) na Folha da Manhã