Fogo
Por Arthur Soffiati
Evoco um depoimento: “Uma trilha, vinda da costa, cedo nos conduziu, através de espessos bosques, a uma grande floresta. Cavalgava adiante da tropa, observando as belas plantas, e pensando nos tapuias, que algumas vezes infestam essas paragens, quando, para meu pequeno espanto, vi de súbito, em frente de mim, dois homens escuros e nus. Tomei-os por selvagens no primeiro momento, e preparava a espingarda de dois canos para me defender de qualquer ataque, quando percebi que eram caçadores de lagartos. Os colonos, que vivem esparsos nessas solidões, gostam muito da carne da grande espécie de lagarto denominado teiú na língua geral dos índios da costa. Por isso, partem muitas vezes, entre matagais e florestas, em busca desses animais, levando um par de cães treinados para esse fim. Quando os cães se aproximam do lagarto, este se lança com a rapidez de uma flecha para a toca subterrânea, que lhe serve de morada, donde é arrancado e morto pelos caçadores. Sendo grande o calor, esses homens, cuja pele do corpo inteira fica tão tisnada pelo sol que podem passar por tapuias, desnudam-se completamente. Carregavam machados e dois lagartos de mais ou menos quatro pés de comprimento, inclusive a longa cauda. Esses caçadores, que conheciam bem a região, asseguraram-nos que estaríamos, em menos de uma hora, na fazenda de Muribeca, onde pretendíamos passar a noite. Com efeito, em breve passávamos a cerca que lhe servia de limite”.
Não era uma única pessoa, mas uma expedição, que caminhava por trilha em meio a espessa floresta, encontrando dois caçadores de teiú que pareciam indígenas. E o escritor prossegue: “Na escura e imponente mata virgem achamos bonitas plantas, e o soberbo ‘Convolvulus’ de flores azul-celeste enlaçava-se nos arbustos, até grande altura. O pio forte e grave do ‘juó’, em três ou quatro notas, é ouvido, nessas matas imensas, em todas horas do dia e mesmo à meia noite. Em todas as direções, divisamos um quadro encantador da majestosa solidão, às margens do Itabapoana, que, como fita de prata, vai coleando entre as selvas umbrosas, e corta uma planície verdejante, em cujo meio se localiza a grande fazenda de Muribeca, cercada de vastas plantações. Em todo o redor, florestas imensas limitam o horizonte”.
O escritor manifesta encantamento pela floresta e sua fauna. Mas, pouco tempo depois, um segundo depoimento parece confirmar o primeiro: “A vegetação que limita essa praia (Manguinhos) era uma trama impenetrável de cactos, de monocotiledôneas espinhosas, arbustos em parte dessecados que se elevam a uma altura uniforme e entre os quais se nota um grande número de aroeiras, pitangueiras e feijões da praia. Findamos por distanciarmos da praia e penetramos em uma floresta. Durante todo o dia apenas encontramos água doce em um pequeno lago pantanoso. Durante muito tempo continuei a atravessar a floresta e, de repente, deparei um lugar descoberto, no meio de vasta plantação onde trabalhavam numerosos negros. Logo me aproximei da fazenda Muribeca, que eu havia visto de longe, ao sair da floresta. É construída ao pé de algumas colinas que, a sudoeste, limitam uma planície estreita e muito comprida, cercada de matas virgens. Essa risonha planície forma uma espécie de oásis no meio de sombrias florestas. O céu apresenta um azul dos mais brilhantes, e a calma profunda que reinava na natureza junta mais encanto à paisagem”.
Céu esplendoroso, rio de águas cristalinas, floresta majestosa. Passando considerável tempo depois da expedição dos dois primeiros, alguém cruzou o mesmo local e se perguntou: “Não será este o Paraíso perdido, ocultado debaixo destes frondosos e sombrios bosques?”. Mas entre os dois primeiros e o terceiro, alguém registrou o fogo do inferno no meio desse paraíso e o registrou no desenho abaixo.
O primeiro depoimento foi deixado pelo príncipe alemão Maximiliano de Wied-Neuwied, em 1815. O segundo vem do naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire, datado de 1818. O terceiro foi deixado pelo médico naturalista brasileiro Manoel Basílio Furtado em 1873. Finalmente, o desenho da queimada foi feito pelo naturalista e diplomata suíço Jacob Tschudi, em meados do século XIX. Todos os quatro se referem ao território hoje correspondente a São Francisco de Itabapoana. Pelo relato dos dois primeiros, podemos depreender que o paraíso vislumbrado pelo terceiro já estava sendo destruído, mas conservava ainda extensas e exuberantes florestas habitadas por diversa fauna nativa. O claro rio Itabapoana ainda contava com grande variedade de peixes.
Jacob Tschudi, que passou pelo antigo sertão de São João da Barra, hoje São Francisco do Itabapoana, proveniente da província do Espírito Santo, legou-nos um desenho que tem muito a ver com a realidade atual do município: o fogo, as queimadas. Depois de marchar quatro horas por uma trilha na mata virgem, ele assinala que ela não era mais tão virgem como no tempo de seus antecessores. Cá e lá, encontra-se uma que outra fazenda. Ele pousou na de São Pedro, do traficante português de escravos André Gonçalves da Graça, e observou as marcas externas de seu enriquecimento com o tráfico já considerado ilegal àquela época. Chamou a atenção para o intenso extrativismo vegetal, salientando que o comércio madeireiro parecia render fabulosos lucros, além das facilidades de transporte, pois que as florestas não ficavam muito distantes da costa, onde eram embarcadas as madeiras para exportação. Mas lamentou que a síndrome do desperdício eliminasse madeiras nobres junto com as comuns usando o fogo para abrir espaço destinado à lavoura e à criação de animais.
A reportagem com título “Queimadas constantes em SFI”, publicada na “Folha da Manhã” de 4 de agosto do corrente, motivou-me a desarquivar questões relacionadas ao emprego de fogo, já que o jornal, nesse dia, dedicou-se à queimada de vegetação e de corpos humanos numa usina de Campos, estes durante a ditadura militar que o governo atual insiste em negar.
São Francisco de Itabapoana compreende, na sua maior parte, terrenos de restinga, do rio Paraíba do Sul até Guaxindiba, e de tabuleiros, do rio Guaxindiba ao Itabapoana. No primeiro, a vegetação típica era herbácea e arbustiva, crescendo sobre terreno arenoso. O segundo era revestido pela Mata Atlântica na sua variação estacional semidecidual. Trata-se de um tipo de mata vigorosa que perde de 20% a 50% de suas folhas na estação seca. Daí estacional. E, por não perder suas folhas por completo, é semidecidual. Depois de um desmatamento secular e descomunal, restou dela a Mata do Carvão. Trata-se de um nome sintomático, pois, da mata, eram retiradas árvores para a fabricação de carvão. Ela hoje está protegida pela Estação Ecológica Estadual de Guaxindiba, depois de uma luta árdua contra proprietários rurais com espírito colonial e contra desmatadores contumazes.
Além desse fragmento de mata, restaram poucos vestígios da antiga floresta. No meio da imensa mata original, deslizavam nove pujantes córregos, dos quais a maioria dos cidadãos do município e da região desconhece seus nomes por terem sido eles desfigurados pelo desmatamento, agricultura, pecuária e mineração praticada pela antiga Nuclemon, depois Indústrias Nucleares do Brasil (INB). Os córregos Salgado, Doce, Guriri, Tatagiba Grande, Tatagiba Pequeno, Buena, Barrinha, Manguinhos e Guaxindiba perderam suas matas ciliares, foram barrados em vários pontos, tiveram seus cursos modificados e quase todos perderam suas desembocaduras no mar. Foram assoreados, eutrofizados e embrejados.
O individualismo da economia de mercado foi violento nos países de fraca cidadania. O Brasil se inclui entre eles. A região norte-noroeste fluminense parece não ter saído do período colonial brasileiro. O individualismo exacerbado e retrógrado leva o proprietário rural a destruir, em nome da economia e do magro lucro, exatamente o que lhe propicia ganhos. Ele não tem limites. Ele trabalha sob orientação de um capitalismo atrasado. O capitalismo moderno, conhecido como desenvolvimento sustentável, não chegou à região. O pouco dele que chegou ao Brasil parece enfrentar um processo de extradição com o novo governo federal.
O resultado é que São Francisco de Itabapoana se tornou ressecado ao extremo. As raras chuvas que caem não são retidas como antes, pois não existem mais as imensas florestas e os córregos. Com o ressecamento da vegetação rasteira, qualquer guimba de cigarro deflagra um incêndio que dizima a flora e fauna, ameaçando também moradores. Eis aí o efeito bumerangue. As poucas pessoas que desejam reverter minimamente as péssimas condições ambientais enfrentam forte oposição de interesses insustentáveis nos dias atuais.
Aqueles que lutam por um mundo mais justo pelo prisma socioambiental sofrem ao conhecer São Francisco de Itabapoana, munícipio em cujas terras começou a história do Rio de Janeiro e que conta com um potencial turístico em decomposição.
Livros citados
Auguste de Saint-Hilaire. Viagem pelo Distrito dos Diamantes e litoral do Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp,1974.
J. Tschudi. Viagem às Províncias do Rio de Janeiro e São Paulo. Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp, 1980.
Manoel Basílio Furtado. Itinerário da Freguesia do Senhor Bom Jesus do Itabapoana à Gruta das Minas do Castelo. Campos dos Goytacazes: Essentia, 2016.
WIED-NEUWIED, Maximiliano. Viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1989.