Crônica, músicas e poema do domingo — Dúzia de anos depois, o voo de Dédalo

 

Dédalo em óleo sobre tela de Jacob Peter Gowy, 1635, Museu do Prado

 

 

O voo de Dédalo

 

Fernando Pessoa

Era o verão de 2007. O tempo, como definiu em vida o diretor de cinema e teatro Domingos Oliveira, “é um camundongo passando pela sala”. O que não mudava era o umbigo de Dédalo no mundo em Atafona. Leal até no combate, só àquela praia na foz do rio Paraíba do Sul e à língua de Luís de Camões era fiel. Em meio às dúvidas do resto, sobre a mesa da sala iluminada pelo sol que entrava pela porta direita aberta ao vento nordeste, observou atentamente a conjugação. Parecia casual. Mas não era. Sobre as fotos do ensaio que Roxanne enviara por lobby, estavam os brincos sem lóbulo deixados na passagem física de Lígia.

Poeta de vagas horas, das vagas de um mar castanho, se sentou diante da mesa e suas dúvidas. E resolveu transformá-las em versos. Olhando os brincos e as fotos sobrepostos, pensava no que um poeta de fato, conterrâneo de Camões, falava sobre definições. Para Fernando Pessoa optar pelo crescimento do ramo de uma árvore, era abrir mão das possibilidades de todos os outros. Por isso promoveu antes de Oppenheimer, pai da bomba atômica, a primeira divisão do átomo. Pessoa se repartiu em pessoas. E liberou a força dos heterônimos Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Caberia a este descrever o ruído nuclear da explosão: “Estala, coração de vidro pintado!”.

 

Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos no traço de Almada Negreiros

 

Leitor obsessivo de Pessoa na adolescência, a quem passou a ter como messias, no sentido daquele que veio à Terra para salvar-lhe a alma, Dédalo dera sorte. Da mais de dezena e meia de relações sérias que mantivera ao longo da vida, só se arrependia de duas. Que viriam depois daqueles brincos e daquelas fotos. Na média, se julgava no lucro. Considerava todas válidas ao conhecimento do caráter humano em sua face primeva e mais fértil de mulher.

Incomodava a Dédalo apenas o sofrimento alheio, causado sem dolo aos términos. Sentira na pele no único determinado contra a sua vontade. Foi quando inoculou o vírus que tornaria seu cotovelo imune. Era a mesma das fotos, agora sobre a mesa. Talvez sua única paixão, Roxanne também tinha dúvidas. Mas, na disputa dela, o adversário era o Deus fundamentalista dos pentecostais. Dogmas à parte, um homem não pode competir com o Divino. Nem se devoto do primeiro milagre de Cristo. Submisso como islâmico, tomou a benção ao mesmo Deus de Abraão. E, entre Sara e Agar, conformou-se.

Naquele verão de 2007, Dédalo já vivia há algum tempo da prosa parida em teclado e tela de computador. Mas só era capaz de escrever versos com papel e caneta. Pensando nos descaminhos da sua vida na conjugação de carne e sentimento, lembrou-se de Jack Kerouac. A leitura da maior obra deste, “On the Road”, diário de viagem de quem cruzou várias vezes os EUA do pós-II Guerra, abriu a cabeça de um adolescente a machadadas. Como Pessoa.

Agora adulto, Dédalo pensou numa frase do prosista para abrir o poema. Mas em ato de oxímoro: tirar de dentro de si a desilusão para louvá-la. E o resto foi vindo em aliterações. Aprendera em festivais de poesia que participou no início dos anos 2000 com Alexandro Mouro, seu camarada em armas. E com elas abriu veredas de papel e tinta à catarse: expressar com palavras o que apenas palavras não podem expressar.

Como era do seu hábito, tomou sem pedir licença outras duas referências na estrofe final. De Shakespeare, conferiu a todas as mulheres a paixão de Julieta, “na bela cidade de Verona” que Dédalo depois conheceria ao lado de Lígia, calçada de brincos. E do maldito Charles Bukowski, emblematicamente do seu “Um Poema de Amor”, roubou o desejo feminino carnado em metáfora com a manteiga derretida no miolo quente do pão. Com destino trágico ou não, pão, manteiga e desejo são comuns a qualquer mulher. Derreta-se por Romeu ou outra Julieta.

 

 

Na dúvida entre o brinco e as fotos sobre a mesa daquele verão de 2007 em Atafona, desposaria as donas de ambos em tempos diferentes, antes e depois. E delas se separaria, como de outras, na fluidez das “relações líquidas” do filósofo polonês Zygmunt Bauman. Como da sua primeira (ex-)esposa, Dana, mãe do seu único filho, hoje homem, sobre o qual Dédalo passou a orbitar quando cambiou sua existência de sol a satélite. E se rebatizou enquanto personagem coadjuvante da própria vida.

 

 

Mas, mesmo na liquidez, algo concreto sempre fica a ser redescoberto. A lembrança de uma mulher é capaz de revelar o que há de comum em todas. De uma maneira ou outra, como Chico Buarque escreveu sobre a melodia de Tom Jobim: “É desconcertante rever um grande amor”. De outro estilo musical, só quando da morte do compositor e cantor inglês George Michael, no dia de Natal de 2016, Dédalo tomou conhecimento da regravação de um sucesso do grupo The Police, que integrou sua trilha sonora pessoal nos anos 1980.

Entre as prostitutas do famoso Bairro da Luz Vermelha, na Amsterdã de 1999, um homem que amava outros homens foi capaz de cantar de maneira pungente a condição masculina seduzida por mulheres. Na contrapartida de Chico, heterossexual que canta o macho como fêmea, o homossexual George Michael reinventou com sensibilidade à flor da pele uma canção de Sting: “Roxanne”.

 

 

Dédalo descobriu na regravação da música, homônima à sua paixão do passado, uma síntese do que sentia em fascínio de menino e desejo de homem pelas mulheres. Foi no mesmo ano de 2016 em que estreou nos cinemas do mundo o filme “La La Land”, de Damien Chazelle. Indicado ao Oscar do ano seguinte em 13 categorias, o musical levaria sete estatuetas. É uma história romântica passada em Los Angeles, entre um pianista de jazz (Ryan Gosling) e uma aspirante a atriz de Hollywood (Emma Stone).

No final do filme, em meio ao solo de piano, os desencontros do casal protagonista parecem caminhar à reconciliação do “felizes para sempre”. Deve ter sido a todos os demais espectadores, capazes de acreditar nisso, naquela mesma sala escura de cinema. Mas não para Dédalo.

 

 

“Pianista” que nunca aprendeu a dedilhar nada, a não ser por conta própria a melodia de “But Not for Me” (“Mas Não Para Mim”), dos irmãos George e Ira Guershwin, Dédalo sabia previamente que o final do filme remeteria aos seus. Que seriam melhor descritos em outros versos de Álvaro Campos: “Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?/ Será essa, se alguém a escrever,/ A verdadeira história da humanidade”.

 

 

Expectativa real confirmada na ficção, Dédalo sentiu um estranho frescor de melancolia no peito. Libertou as idealizações de Ida, menina sonhadora como a personagem de Emma Stone, pela qual conservava ternura paternal. E optou pela pavimentação dos rumos que nunca abandonara em Lena. Ao norte e ao sul da geografia mais ampla de mulher.

Depois foi ler o poema que escrevera naquele verão de 2007 em Atafona. Dúzia de anos depois, em busca de pouso, seu uivo ainda enfunava o voo de Dédalo:

 

“louvada seja a desilusão, o ondular”

(jack kerouac)

 

uivo

 

lobby nas fotos

brincos sem lóbulo

— lembranças por lobo

com brancos caninos

à caça de luas

 

verão na varanda

visões à vera, veredas

 

julietas diversas

vararam veronas

com manteiga

no miolo quente do pão

 

atafona, 20/02/07

 

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Este post tem 2 comentários

  1. Sérgio Provisano

    Sim meu caro Aluysio Abreu Barbosa, Aluysinho, confesso que levei um tempão para ler e fluir tudo e por um simples motivo… Ouvi e vi cada vídeo, cada canção que intercalou este primoroso texto, uma “good trip”, envolvente, encantadora e hipnótica… Em verdade, relerei um par de vezes, ou mais, para identificar os intertextos que seguramente são muitos, incontáveis muitos e ali estão ocultos, porém revelados, mesmo que pareça contraditório, e é e não é. Eu fiquei aprisionado num dèjá vu e com uma baita inveja de não tê-lo escrito, mas logo o sentimento de inveja, deu lugar à lucidez, como eu poderia escrever sobre o que não vivi ou vivenciei? Aí dei por mim, e entendi o verdadeiro mistério da vida, o verdadeiro sentido do viver que é poder ler essas pérolas, que só os seres composto por células de Poesia e Prosa, poderiam e podem engendrar, enredar…

  2. GILDO

    Bravo! Quantas referências. E voos. E poesia. Quantos minotauros presos para a idealização de um Ícaro…

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