O Flamengo de Zico ou o de Jesus? O primeiro foi campeão brasileiro três vezes, em 1980, 82 e 83 — quatro, se contabilizada a Copa União de 87 —, e conquistou a América do Sul e o mundo em 1981. O segundo, ainda não ganhou nada, mas está com oito pontos de vantagem no Brasileiro deste ano, em que disputará a final de Libertadores da América no próximo dia 23 contra o tradicional copeiro argentino River Plate. E, se ganhar, poderá jogar outra final de mundial em 13 de dezembro contra o mesmo clube inglês Liverpool que goleou por 3 a 0, em ritmo de treino, exatos 38 anos antes. Gênio e líder do Flamengo que realizou o maior feito da sua história, Zico é até hoje considerado o messias da Gávea. De fato, para os flamenguistas mais apaixonados, o Natal é celebrado em 3 de março, dia em que nasceu seu grande craque, 66 anos atrás. Com o nome do messias cristão, o treinador português Jorge Jesus fez o Flamengo de hoje resgatar a tradição daquele futebol técnico e ofensivo que se assenhorou do Brasil, da América e do mundo, no início dos anos 1980. Quase quatro décadas depois, a expectativa gerada gerou também a pergunta que imprensa e torcida, não apenas a rubro-negra, têm se feito: e entre o Flamengo de Zico e Jesus? No mano a mano hipotético entre os dois times, quem são os 11 que entrariam no gramado? A busca de resposta, sempre subjetiva, é tão difícil que a Folha saiu a campo atrás dela e achou 12 jogadores. Além do seu treinador.
No exercício sempre instigante de comparar um passado de glória com o presente e o porvir, ouvimos 24 pessoas ligadas ao futebol, entre ex-craques e treinadores, jornalistas esportivos da mídia nacional e regional, além de torcedores — não só do Flamengo. Na comparação jogador a jogador, foi registrado um único empate: entre os goleiros Raul Plassmann e Diego Alves. Com 12 votos cada, jogariam um em cada tempo. O resto dos titulares rubro-negros dos sonhos ficou com Leandro na lateral-direita (22 votos), Rodrigo Caio na zaga central (10 votos), Mozer na quarta-zaga (23 votos), Júnior na lateral-esquerda (24 votos), Andrade como volante (22 votos), Adílio de meia (21 votos), Zico como antigo ponta de lança (24 votos), Tita na direita do ataque (13 votos), Gabigol como centroavante (13 votos) e Bruno Henrique (21 votos) nas ações ofensivas pela esquerda. Ele foi o mais bem votado entre os jogadores do Flamengo atual. Seu técnico, Jorge Jesus comandaria o time fora do campo, com 18 votos.
Apesar da expectativa gerada pelo Flamengo de hoje, ele colocaria apenas três jogadores — quatro no empate de Diego com Raul — no misto hipotético com o maior Flamengo do passado. Mas daria também o seu treinador, português que vem revolucionando o futebol brasileiro. Sem a burrice sentenciada pelo tricolor Nelson Rodrigues, a unanimidade dos 24 votantes se deu apenas com os dois gênios mais conhecidos do Fla de 1981: Zico, maior jogador do Flamengo em todos os tempos, considerado pela Fifa e pelas tradicionais revistas europeias World Soccer e France Football entre os 10 melhores camisas 10 produzidos no século XX; e Júnior, destaque na história do time e do futebol brasileiro, como lateral ou meia.
Não apenas flamenguistas, os votantes foram o ex-craque tricampeão pela Seleção Brasileira de 1970 e colunista de O Globo, Paulo César Caju; o ex-artilheiro do Atlético de Madri e técnico Jorge Sena; os treinadores do Americano e do Campos, respectivamente Josué Teixeira e Gecildo Souza. Entre os jornalistas, participaram da enquete três titulares da mídia nacional: José Trajano, do Portal Ultrajano, TVT e rádio Brasil Atual; Paulo Vinícius Coelho, o PVC, da Fox Sports e da rádio Globo/CBN; e Igor Siqueira, repórter campista hoje em O Globo e Extra. Pela crônica esportiva regional, teve voz o seu decano, Péris Ribeiro, com passagem nacional pela revista Placar e autor do livro “Didi, o Gênio da Folha Seca”; além de Paulo Renato Porto, Marco Antônio Rodrigues, Viviane Siqueira, Antunis Clayton, Luiz Costa, Sebastião Carlos Freitas e Arnaldo Garcia. Também participaram a profissional de educação física Heloísa Landim e o presidente da Embaixada do Fla-Campos, Thiago Corrêa.
Entre os “simples” torcedores, votaram quatro que representam bem o arquétipo do flamenguista apaixonado: a empresária e atleta de futevôlei Bianca Inojosa, o motorista Leonardo Moreira, o médico Rafael Abud e o sociólogo Roberto Dutra. A lista de eleitores foi completa por três não rubro-negros: o advogado botafoguense Carlos Alexandre de Azevedo Campos, o empresário e triatleta tricolor Christiano Abreu Barbosa e o juiz de Direito e atacante de futebol amador Eron Simas. Mesmo torcedor do Grêmio, goleado por 5 a 0 pelo Flamengo na semifinal da Libertadores, no Maracanã do último dia 23, o magistrado não se furtou em julgar o que há de melhor entre o passado e o presente do time que eliminou o seu.
Na dúvida diante da pergunta que só tem resposta na imaginação, uma coisa é certa. Raul, Leandro, Marinho, Mozer e Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico; treinados pelo ex-craque Paulo César Carpegiani; entraram no campo do Estádio Nacional de Tóquio, no começo da tarde japonesa de 13 de dezembro de 1981, madrugada no Brasil, para escrever a página mais importante dos 124 anos de história do Clube de Regatas do Flamengo. Foi quando aquele time, campeão da Libertadores da América, conquistou também o mundo, ao bater por 3 a 0 o Liverpool — o mesmo que levantaria quatro Champions da Europa. “Em dezembro de 81/ Botou os ingleses na roda/ Três a zero no Liverpool/ Ficou marcado na história”, como canta hoje a maior torcida do mundo. É uma adaptação da música “Primeiros Erros”, do músico santista Kiko Zambianchi, que se tornou um segundo hino do clube da Gávea.
Ainda sem ter conquistado nada, o Flamengo do “Mister” lusitano vem apresentando grande futebol. Vem de tropeço, é verdade, ao ceder o empate em 2 a 2 com o Goiás na última quinta (31). E às 16h de hoje encara no Maracanã o Corinthians, clube da segunda maior torcida do país. Independente da vantagem na tabela com que sair de campo sobre o Palmeiras, vice-líder do Brasileiro, seu maior desafio está marcado para a final da Libertadores contra o River Plate, às 17h30 do próximo dia 23, no Estádio Nacional de Santiago — se os protestos do Chile não alterarem local e data. Mas, sob a batuta de Jesus, Diego Alves, Rafinha, Rodrigo Caio, Pablo Marí e Filipe Luís; Arão, Gérson e Arrascaeta; Éverton Ribeiro, Gabibol e Bruno Henrique; tornaram possível acreditar em um sonho. Que é cantado a plenos pulmões por 40 milhões de rubro-negros: “E agora o seu povo/ Pede o mundo de novo”.
No Brasil de hoje, o Flamengo é uma das poucas coisas que vem dando certo. Até quando e onde, só os caprichosos deuses do futebol dirão.
Flamengo e Brasil, misto de dor e glória
Por Fernanda Huguenin(*)
O gosto pelo Flamengo deu-se na infância vivida nos anos 80, ainda sob a ditadura, quando aos pés do pai sobre o tapete da sala recebia chutes acidentais para um gol imaginário que se transmutava da TV para o ar. Zico era o herói ao qual a reverência foi marcada no registro de nascimento do irmão, como dádiva pela vitória no Mundial de 1981. A explicação das regras do jogo tinha a didática dos exemplos hipotéticos e, às vezes, da bola jogada no quintal, embora futebol não fosse para meninas na época. Ainda não é.
Depois, já adulta, entendi a paixão brasileira ao ler um artigo antropológico que defendia que as leis do futebol são acessíveis e compreensíveis a todos, ao contrário das leis do Estado, tantas vezes válidas apenas para os inimigos. Por outro lado, a malandragem, a catimba e o jeitinho são partes da disputa pela vitória e, sabemos, pela própria vida neste país de múltiplas faltas.
No entanto, a paixão teve seu momento de ódio, como crítica ao Capitalismo que se apropria de jogadores transformados em produtos e à exclusão de torcedores expropriados da “geral”. Enquanto craques viram marcas e são vendidos por milhões aos times de fora, fabricamos em campinhos improvisados nas ruas as matérias-primas que agregam valor aos grandes clubes estrangeiros. O futebol-arte se reinventa no futebol-empresa, refazendo o percurso colonialista.
A crítica se arrefeceu ao acompanhar a mistura de talento com indisciplina do Baixinho e do Imperador. Era preciso entender a gente brasileira com empatia, reconhecendo na bricolagem um caminho para a resistência. É difícil entender como o Flamengo pode, neste ano, vivenciar a tragédia do incêndio que matou os meninos-promessa da base ao mesmo tempo em que anseia se tornar vitorioso na Libertadores. O Flamengo, como o Brasil, é o misto de dor e glória.
O time que provavelmente será o campeão do Brasileiro e (quem sabe?) chegará ao Mundial enfrenta mudanças importantes. Malandragem, catimba e jeitinho já não passam despercebidos diante do VAR. Treinar é mais importante do que saber o que fazer. E pode ser que Gabigol, Rafinha, Arrascaeta e todos os outros talentos encontrem lugar em times brasileiros.
Dizem que o Clube de Regatas fez suas lições de casa, como arrumar as contas, e por isso o time ascendeu. Já o país mantém-se na desordem de um quarto de despejo repleto do ódio de duas torcidas fanáticas e ferozes. No esporte é certo que só a união traz vitórias. Já na vida, a unanimidade é sempre burra, como disse Nelson Rodrigues. De qualquer forma, estarei ao lado do pai, que secretamente deve sofrer pelo fato de que o filho que tem o nome do herói rubro-negro de 1981 é botafoguense. Mas afinal, a liberdade de escolha é o preço da democracia!
*Antropóloga e aluna do curso de Direito do Isecensa
Publicado hoje (02) na Folha da Manhã