A “Suprema Autoridade” e seus avisos
“Justiça que a Rainha Nossa Senhora manda fazer a este infame Réu Joaquim José da Silva Xavier pelo horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constituiu chefe, e cabeça na Capitania de Minas Gerais, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana e Suprema Autoridade da mesma Senhora, que Deus guarde. Manda que com baraço e pregão seja levado pelas ruas públicas desta cidade ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre e que separada a cabeça do corpo seja levada a Vila Rica (atual Ouro Preto), donde será conservada em poste alto junto ao lugar da sua habitação, até que o tempo a consuma; que seu corpo seja dividido em quartos e pregados em iguais postes pela estrada de Minas nos lugares mais públicos, principalmente no da Varginha e Sebollas (atual Inconfidência); que a casa da sua habitação seja arrasada, e salgada e no meio de suas ruínas levantado um padrão em que se conserve para a posteridade a memória de tão abominável Réu, e delito e que ficando infame para seus filhos, e netos lhe sejam confiscados seus bens para a Coroa e Câmara Real. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1792”.
Essa foi a sentença que condenou Joaquim José da Silva Xavier, o “Tiradentes”. Na didática do terror, o recado da Coroa de Portugal foi claro: veja o que acontece com quem desafia a “Suprema Autoridade” do Brasil de então. Antes mesmo que a colônia fizesse sua independência e sua república, pelas quais Tiradentes conspirou junto a outros para tentar antecipá-las a Minas Gerais, uma indagação estava imposta em nossa gênese pelos donos do poder: “sabe com quem (ou sobre quem) está falando?”.
No Direito há vários conceitos que se aplicam à vida comum. Um deles é o princípio da proporcionalidade, ou da razoabilidade. Para quem não é jurista, mas acompanha futebol, é simples de entender. Para um jogador que sistematicamente comete faltas durante a partida, no intuito de parar o time adversário, o cartão vermelho, sobretudo se antecedido de um amarelo, pode ser aplicado pelo árbitro ao “conjunto da obra”. Mesmo que a última falta não tenha sido assim tão grave. Mas não sobre um que cometeu sua primeira infração, a não ser que ela tenha sido superlativa em violência.
Até a última terça-feira (03) o juiz de Campos Glaucenir Oliveira nunca teve uma falta sua levada ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ). E na primeira delas foi colocado em disponibilidade, com vencimentos proporcionais ao tempo de serviço. Enquanto durar seu afastamento, não poderá advogar ou exercer cargo público, salvo magistério em curso superior. Em dezembro de 2017, o magistrado campista insinuou em um grupo de WhatsApp que o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), teria recebido dinheiro do ex-governador Anthony Garotinho (sem partido) para soltá-lo da prisão.
Não há dúvida de que Glaucenir errou. Ele próprio publicaria uma carta aberta nas redes sociais, se desculpando e admitindo que suas acusações eram falsas. Antes disso, em 27 de dezembro de 2017, a coluna Ponto Final escreveu: “Ao comentar a decisão de Gilmar de soltar Garotinho, Glaucenir errou se afirmou sem provas: ‘O que se cita aqui, dentro do próprio grupo dele (Garotinho) é que a quantia foi alta’ ou ‘E segundo os comentários que eu ouvi hoje, de gente lá de dentro (do grupo de Garotinho) é que a mala foi grande’”.
Admitido o erro pelo próprio magistrado, a questão é: a punição obedeceu ao princípio da proporcionalidade na primeira infração de Glaucenir levada ao CNJ? Pergunta que leva a outras: 1) Se a irresponsabilidade verbal em um grupo de WhatsApp pode ser um crime de opinião, não há outros mais graves, como corrupção, cuja suspeita jamais pesou sobre o juiz? 2) E se o alvo do crime de opinião não fosse Gilmar Mendes?
No próprio desfecho dado no CNJ ao processo administrativo disciplinar contra Glaucenir, aberto após representação de Gilmar, houve dúvida. Relator do caso, o conselheiro Arnaldo Hossepian votou pela pena de remoção compulsória, que seria o cartão vermelho logo de cara. Já o conselheiro Luciano Frota abriu divergência, votando pela pena de censura, que seria o amarelo. Foi o ministro Dias Toffoli, presidente do CNJ e do STF, onde é colega próximo de Gilmar, quem propôs a alternativa vencedora da pena de disponibilidade.
Na dúvida que habitou dentro e fora do CNJ, não se pode confundir um crime de opinião do juiz com os que levaram o ex-governador à prisão na operação Caixa d’Água. Ele foi encarcerado, por decisão de Glaucenir como juiz da 98ª Zona Eleitoral, pela acusação de comandar um esquema de cobrança de propina, inclusive com emprego de arma de fogo, no governo municipal Rosinha Garotinho (Pros). O objetivo? Fazer caixa à sua campanha a governador em 2014. A versão foi confirmada em depoimento pelo empresário campista André Luiz da Silva Rodrigues, conhecido como Deca, e o ex-executivo da JBS, Ricardo Saud. Deca usou uma empresa de fachada, a Ocean Link, para repassar o dinheiro da JBS a Garotinho. As investigações surgiram a partir da delação premiada de Saud à Lava Jato.
Se Glaucenir cometeu erro primário, tanto pior para um magistrado, ao verbalizar acusações sem provas em um grupo de WhatsApp, isso também deve ser separado da dinâmica dos fatos que levou à decisão de Gilmar de soltar Garotinho em 2017. Por decisão da Justiça Eleitoral de Campos, ele e Rosinha foram presos em 22 de novembro daquele ano. E a ex-governadora ganharia liberdade no dia 29 daquele mês.
Após 28 dias em Bangu 8, Garotinho só seria solto em 21 de dezembro, por decisão monocrática de Gilmar, então presidente do TSE. O curioso é que foi em seu primeiro dia no plantão na instância máxima da Justiça Eleitoral, seguinte ao plenário encerrar a pauta de 2017 sem apreciar o pedido de habeas corpus. O que levou a pensar se o ministro não esperou apenas 24 horas para decidir sozinho o que, talvez, não tivesse o mesmo desfecho na decisão coletiva dos sete ministros do TSE.
Outro dado curioso é que a ação penal da Caixa d’Água havia sido suspensa em 25 de junho de 2018, por decisão de Dias Toffoli no STF. Ela foi retomada em 18 de outubro deste ano, por decisão contrária da ministra Carmen Lúcia, que assumiu o caso quando Toffoli foi para a presidência do STF. Seus ministros, além da diferença nos juízos, às vezes ficam famosos por frases que despertam diferentes sentimentos na sociedade.
Quando foi um dos que decidiram pela liberdade de José Dirceu (PT), em junho de 2018, Gilmar arrogou: “O Supremo está voltando a ser Supremo”. Em março daquele ano, Luís Roberto Barroso sentenciara Gilmar: “Você é uma pessoa horrível, mistura do mal com o atraso e pitadas de psicopatia”. Em outubro de 2016, Carmen reforçou o direito da imprensa de repassar informações aos cidadãos: “O cala-boca já morreu”. Recusado duas vezes no concurso público para juiz de primeira instância, no qual passou Glaucenir, ao suspendê-lo das suas funções, Toffoli ameaçou na última terça: “Não se pode brincar com o STF”.
“O homem é ele e suas circunstâncias”, definia o filósofo espanhol Ortega y Gasset. Sem comparar os homens, mas atento às suas circunstâncias, Tiradentes foi esquartejado e teve suas partes espalhadas em exposição pública como aviso. Da “Suprema Autoridade” da rainha portuguesa Maria I. Que ficaria mais conhecida como “Maria, a Louca”.
Publicado hoje (08) na Folha da Manhã
Se Glaucenir porventura tivesse absolvido o Garotinho por falta de provas, vocês da Folha estariam falando mal dele e nem o convidariam para Feijoada como fizeram com o Desembargador João Damasceno num caso em que Garotinho foi absolvido por maioria do Colegiado:
https://opinioes.folha1.com.br/2019/02/09/juiz-que-inocentou-garotinho-ja-puxou-arma-contra-colega-dentro-do-tj/
(Trecho excluído pela moderação por propaganda se site)
Caro Fabio Kuy,
Vc está certo. É compreensível que um desembargador que puxou uma arma para um colega dentro do TJ, como foi o caso de Damasceno, tenha empatia por alguém condenado por extorquir empresários com emprego de arma de fogo, como é o caso de Garotinho.
Grato pela chance da concordância!
Aluysio