Depois de “Era Uma Vez em.. Hollywood” (confira sua resenha aqui), de Quentin Tarantino, e “Coringa”, de Todd Phillips, dois outros fortes candidatos ao Oscar de 2020 estão sendo exibidos no cinema de Campos. São o o sul-coreano “Parasita”, de Bong Joon-ho, ganhador da Palma de Ouro em Cannes, que estreou desde quinta (16); e a produção britânica “1917”, de Sam Mendes, que teve sua pré-estreia no sábado (18) e domingo (19), voltando para ficar nesta quinta (23).
Como sempre acontece com o cinema de qualidade na planície goitacá, ambos estão em cartaz no Kinoplex Avenida, no Shopping 28. Não no Cine Araújo do Shopping Boulevard, restrito a blockbusters comerciais. E quase sempre dublados, na pressuposição de que seu público seja composto de analfabetos — de fato ou funcionais.
“1917”
“1917” é uma história de dois cabos do Exército Britânico no penúltimo ano da sangrenta I Guerra Mundial (1914/1918) — e também da Revolução Russa, que não é tratada no filme. Em um tempo sem comunicação em tempo real, os dois soldados recebem como missão levar uma mensagem do alto-comando para impedir um ataque contra os alemães, que recuaram para montar uma armadilha aos seus inimigos nas trincheiras da França. Entre outras armadilhas deixadas pelos germânicos e o confronto direto contra estes, serão muitos os percalços enfrentados pelos mensageiros.
Motivo de crítica por Luiz Fernando Veríssimo em “Dunkirk” (aqui, de 2017,), de Christopher Nolan, sobre a importante batalha homônima da II Guerra Mundial (1939/45), a ausência dos britânicos negros, além dos hindus, muçulmanos e siks da Índia, é lapso racial que não se repete em “1917”. Nele, lado a lado com os anglo-saxões pálidos, estão soldados de pele escura e de turbante.
Ganhador dos Oscar de melhor diretor e melhor filme por “Beleza Americana” (2009), filme de estreia de Sam Mendes e clássico recente do cinema, o diretor inglês traz em “1917” uma comentada novidade estética: seu novo filme é todo em plano-sequência, sem cortes. Outro inglês, o mestre Alfred Hitchcock já havia feito isso em “Festim Diabólico” (1948), todo filmado dentro de um apartamento. Ao levar a ousadia técnica a campo aberto, Mendes foi agraciado com o Globo de Ouro de melhor diretor em 5 janeiro. É sempre um forte indicativo ao Oscar, que será entregue em 9 de fevereiro.
Sem spoiler, o final de “1917” é sensível e revelador. No que lembra o epílogo de um dos maiores filmes de guerra já feitos: “Glória Feita de Sangue” (1957), baseado em fatos reais da mesma I Guerra Mundial e dirigido pelo mestre estadunidense Stanley Kubrick. Que nele imortalizou no cinema um dito do pensador inglês Samuel Johnson, tão pertinente ao Brasil e ao mundo de hoje: “O patriotismo é o último refúgio dos canalhas”.
“PARASITA”
Mas a grande novidade entre os indicados a melhor filme é mesmo “Parasita”. Nas desigualdades sociais inevitáveis do sistema capitalista, mesmo em um país tido como um seu exemplo positivo, como a Coréia do Sul, é difícil saber quem melhor batiza o título do filme. Seria a família pobre de embusteiros — ao melhor estilo do clássico “Feios, Sujos e Malvados” (1977), do mestre italiano Ettore Scola, morto ontem (aqui) há exatos quatro anos? Ou a família rica, fútil e elitista que a primeira inveja e engana para servir? Na dúvida, a crítica mordaz ao capitalismo não peca por maniqueísmo, já que o regime comunista e oligárquico da vizinha Coréia do Norte também é exposto ao ridículo devido.
Questão emblemática desde sempre no conceito marxista da “luta de classes” — que o excelente roteiro sul-coreano não busca nivelar no proletariado, apenas tomar o lugar do patrão —, o “cheiro do povo” tem sua universalidade independente de Ocidente e Oriente, hemisférios Norte ou Sul. É ele que ativa o turning point contundente da história, ao transformar uma comédia na mais extremada tragédia. Tragédia no sentido grego do termo, que não serve de base ao Extremo Oriente, não de fazer tragédia. De fato, esse “cheiro do povo” evoca uma frase marcante de um bom filme brasileiro, “Linha de Passe” (2008), dirigido por Walter Salles Júnior e Daniela Thomas, sobre desigualdades sociais muito semelhantes: “Olha pra minha cara, porra!”.
Com suas surpresas subterrâneas, “Parasita” talvez seja um filme ainda mais revolucionário e marcante do que o frenético “Oldboy” (2003), de Park Chan-wook. Foi com ele, numa leitura oriental de Tarantino em suas bases no cinema de kung-fu de Hong Kong, que a Coréia do Sul impactou o mundo do cinema no novo milênio. Se não dedicado à violência estilizada de “Oldboy”, o sangue derramado em “Parasita” pode chocar ainda mais. Tanto quanto a antológica cena da jovem e bela mulher sentada sobre a privada que regurgita esgoto durante uma inundação no porão onde habita, enquanto fuma seu cigarro “mentolado” de fezes. E é choque necessário para tirar o espectador de classe média da sua zona de conforto, em qualquer parte do mundo.
Igualmente sem spoiler, talvez ainda mais que “1917” o(s) final(is) de “Parasita” não precisa de código Morse para entregar sua mensagem. No filme sul-coreano e universal, o “inimigo” é visceralmente humano. Como quem está sentado na poltrona do cinema.
“1917” é um filme sobre honra e altruísmo. “Parasita” é sobre falta de honra e ambição. Faces da mesma humanidade, não por coincidência ambos são também sobre família. E sobrevivência.
Entre comédia e tragédia, o parasita real do filme da Coréia do Sul é revelado em outro dito, de outro pensador inglês. Que serve também aos campos de batalha reais de 1917. Como sentenciou Thomas Hobbes em seu clássico “Leviatã”: “O homem é o lobo do homem”.
Confira abaixo os trailers dos dois filmes candidatos ao Oscar em cartaz no Kinoplex Avenida: