Democracia, Segurança Pública e a defesa da Constituição de 1988
Por Luciane Silva
Domingo de sol, camelôs vendendo mercadorias em verde e amarelo, faixas a favor do impeachment em prédios da avenida Atlântica. Eu realizava entrevistas durante manifestação promovida no posto 1 da praia de Copacabana em 17 de abril de 2016. Meu objetivo era obter imagens e conteúdo sobre a presença de um trio elétrico com nomes do funk carioca. Mas o cenário era muito peculiar. Telões ao longo da avenida reuniam parte dos moradores do bairro que acompanhavam e vibravam com cada um dos 367 votos favoráveis a abertura de processo na Câmara dos Deputados contra a presidente Dilma Rousseff. Resolvi mudar o foco e me desloquei para a Lapa onde estavam concentrados setores contrários à abertura do processo. Era interessante a divisão dos bairros, a composição racial dos grupos e como o verde e amarelo seria ressignificado a partir daquele domingo. Assistir às declarações de voto foi um indicativo do tipo de encenação que seria representada a partir de então. A família e Deus em primeiro lugar. O então deputado Jair Bolsonaro parabenizou Eduardo Cunha e exaltou a memória de Carlos Alberto Brilhante Ustra, torturador. Atrás dele, o filho repetia o nome de um dos mais vis e assustadores homens que já passou pelo Exército. Ao nomeá-lo como o “pavor de Dilma Rousseff”, o deputado demonstrava sua capacidade para usar de crueldade como instrumento de propaganda.
Posteriormente ao impedimento de Dilma pelas “pedaladas”, o governo Temer, as declarações de Aécio Neves e as descobertas sobre a atuação do então juiz Sérgio Moro seriam alguns dos capítulos vividos em um país que afundava em crise econômica, retirava direitos com promessas de benefícios e aumentava o grau de letalidade de suas polícias.
O assassinato de uma vereadora e as reações cruéis e mentirosas ao episódio em março de 2018 eram o prenúncio do tipo de obscurantismo que figurariam nas interações públicas até a eleição. As falsas notícias, as ações “em nome de Deus” e os posicionamentos violentos em relação a mulheres e minorias, indígenas e campesinos, marcariam uma eleição que teve como desfecho uma comemoração religiosa em primeiro de janeiro de 2019. Estavam todos ali e todas as peças. Vivenciamos o crescimento das milícias no país, o apoio a uma moralidade que negava o caráter crítico da sala de aula e a perseguição às discussões de gênero. O primeiro escalão, um anti-escalão, ocupar-se-ia em desmatar, violar a educação, destruir a universidade, perseguir servidores públicos e insistir nas cores para roupas de meninos e meninas.
Quando Bolsonaro convoca atos para o dia 15 de março, ele sabe que tem a sua frente uma investigação sobre Adriano da Nóbrega. E talvez sua base sequer se importe com isso. Ele sabe das declarações de Rosa Weber sobre o funcionamento normal das instituições em coletiva do Tribunal Superior Eleitoral em 2018. O tempo da Justiça, justificado pela ministra, sobre a acusação de caixa 2 não chegou a tempo. Talvez por isso um dos filhos do presidente não tenha medo em afirmar que basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal Federal. Talvez por isso fale em bomba H no Congresso enquanto um general sugere simplesmente um “foda-se” como o modus operandi dominante no atual governo.
A democracia, mesmo com suas fragilidades, possibilita que possamos divergir. Que possamos exercer direitos e possamos ter respeitados alguns direitos fundamentais. Entre eles, o de ir e vir livremente e o direito à Segurança Pública. Assegurado na Constituição de 1988, art. 144 “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos é exercida para preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio”. Temos indícios para saber que greves das forças de Segurança Pública são um caldeirão em ebulição. Nenhum governador gostaria de lidar com o pânico social causado por greves de policiais. Vimos isso no Rio de Janeiro em 2017, quando o governador Luiz Fernando Pezão foi pressionado a pagar salários atrasados, décimo terceiro e bonificações. Seguindo o Espírito Santo, os policiais reclamavam das condições de trabalho. E esta era uma reclamação legítima.
A base que ideologicamente apoia atos contrários à democracia é a mesma que se ressente do fim da Ditadura. Eu os conheço bem. E eles não representam todos os policiais. Mas se aumentam as insatisfações e os usos políticos demagógicos, se as corporações percebem que há um “chamado” em curso e que serão finalmente os protagonistas, podem agir como aqueles que um dia esquecidos, voltam ao cenário para reconstituir a ordem. Neste caso, sob uma orientação fascista. Por isto o Ceará torna-se o epicentro de uma crise nacional.
Por outro lado, se um governador concede aumento de 41,7% a uma única categoria, como fez Romeu Zema com os policiais em Minas Gerais, ele abre um precedente perigoso. Então a pressão é o caminho para fazer valer as demandas? A força e a intimidação indicam que não é preciso portar-se dentro de um jogo democrático? Sabemos disso e sabemos da importância dos freios institucionais como impedimento deste tipo de manobra.
A democracia não pode ser negociada, relativizada ou secundarizada neste momento. Ulysses Guimarães, um dos parlamentares fundamentais da Constituição de 88 declarava “temos ódio e nojo à Ditadura”. Esta posição, clara, altiva, não pode ser relativizada. Conhecemos as consequências e as temos vivenciado: perseguição a jornalistas, censura à arte, difamação dos servidores públicos, desemprego e miséria.
Aquele que prima pelo obscurantismo porque imaginam estarem a salvo de um regime de exceção, devem voltar seus olhos para história do Chile, da Argentina, do Brasil. E lembrar-se de que, fora da democracia, qualquer suspeita justifica a prisão, a tortura e a violação. Não é uma questão de “opinião”.