Coronavírus, desigualdade e a sociedade global de risco
Por Fabrício Maciel
O momento atual nos obriga à reflexão. Não temos para onde fugir. O mundo está de joelhos diante de um desafio que não conhece bem e tenta mobilizar todos os esforços possíveis para enfrenta-lo. Precisamos recorrer a todas as ideias possíveis, todas ao nosso alcance, que somos capazes de reproduzir, de modo a enfrentar este grande mal que nos assola. O vírus coloca, em certo sentido, todos nós em pé de igualdade, democratiza o medo, nos deixa sem saída e sem saber bem o que pode acontecer em poucas semanas. As análises políticas muitas vezes são rasas, diante de um problema de natureza tão profunda, ainda que apontem algumas medidas práticas viáveis em curto prazo.
Um dos maiores pensadores da atualidade, o sociólogo alemão Ulrich Beck, desenvolveu nos anos de 1980 sua poderosa tese da sociedade de risco. Ela aponta alguns caminhos muito frutíferos para nossa reflexão neste exato momento. Para ele, a sociedade atual, situada no tempo da modernidade desde a década de 1970, pode ser definida como a “segunda modernidade”. Nesta fase, a principal característica do mundo identificada pelo autor é que a produção de riscos seria nosso grande problema, maior até mesmo do que a produção de desigualdades, tese esta que se tornou polêmica por questionar algumas das bases mais profundas da sociologia predominante em todo o século XX. O significado desta tese é profundo e se mostra agora com a pandemia do corona vírus. Posteriormente, Ulrich Beck desenvolveu e sofisticou sua tese, ampliando-a para a compreensão de que vivemos agora em uma sociedade global de risco, na qual alguns riscos transcendem os limites das sociedades nacionais e até mesmo das desigualdades de classe. Não é outra coisa o que o vírus agora nos ensina. Ninguém está livre do risco e é urgente que levemos este recado bem a sério.
Em seu último livro, “A metamorfose do mundo” (Editora Zahar, 2016), ainda pouco conhecido no Brasil, Ulrich Beck avançou com aspectos essenciais de sua tese. Nele, ele chama a atenção para o fato de que a ciência procura muito mais compreender a distribuição e a não distribuição de bens do que de males. Agora se torna fundamental que compreendamos a distribuição global de males e como ela pode nos afetar de maneira geral, mas também diferencialmente. Assim, Ulrich Beck está consciente de que a distribuição de males, na sociedade global de risco, também é uma forma, talvez a mais profunda, de desigualdade. Com isso, a realidade atual é que temos territórios mais vulneráveis do que outros, nações mais vulneráveis do que outras e, o que deveria ser óbvio, classes sociais mais vulneráveis do que outras.
Os crimes cometidos em Mariana e Brumadinho, chamados metaforicamente de tragédias ou desastres, são uma grande evidência da irresponsabilidade e da loucura que rege agora um novo capitalismo sem nenhum limite institucional e moral, sendo este novo capitalismo a base econômica insana da sociedade global de risco. Estes crimes também são uma prova viva da seletividade territorial e social dos riscos. Várias matérias na grande mídia brasileira, na época, mostraram que a empresa responsável pelo crime em Brumadinho sabia exatamente da dimensão do risco e até quantas pessoas iam morrer, algo que passou batido aos nossos olhos, o dia inteiro ocupados com a novela da política.
Outro aspecto essencial do último livro de Ulrich Beck tem a ver com o poder e com o que ele está definindo como “política da invisibilidade”. Com este conceito, ele procura compreender a nova forma de poder predominante na sociedade global de risco, que para ele se resume ao poder de definição do que é risco hoje. De modo simples, o que o autor quer dizer é que nós desconhecemos, enquanto sociedade global, boa parte dos riscos que nos ameaçam e como eles podem realmente nos afetar. No caso do corona vírus, algumas pesquisas sobre vacinas para seu combate já foram publicadas, mas as previsões para a utilização das mesmas e a superação de fato do problema ainda são tímidas.
Indo além, Ulrich Beck procura definir o que seriam hoje “classe de RISCO” e “CLASSE de risco”. O primeiro conceito procura dar conta da diversidade de riscos que nos assolam, para além da nossa vontade e controle (ambientais, virais, políticos). O segundo conceito procura enfatizar a nova forma como as classes sociais podem hoje ser pensadas, ou seja, como classes de risco. Com isso, precisamos enfrentar dois problemas hoje, no Brasil e no mundo: encontrar as melhores formas de se defender do corona vírus e compreender como ele afeta diferencialmente as classes sociais. O primeiro problema tem sido enfrentado a partir da compreensão de que a vida se torna o bem maior a ser preservado. Deveríamos saber sempre disso, mas parece que só agora, quando o mundo se depara com um risco de características inéditas, somos postos diante do espelho que mostra à humanidade como ela é pequena e limitada. Agora a grandeza se resume em assumir a nossa pequenez e tentar agir a partir dela.
Quanto ao primeiro problema, parte da humanidade parece estar se saindo bem, na medida do possível, mesmo apesar de comportamentos distoantes e de intencionalidade suspeita como o do não-presidente da república do Brasil. As forças de ordem maior tender a predominar nesta hora. Não é a primeira vez que a humanidade se depara com tamanho desafio e é possível que fiquemos bem em breve. Em momento de tamanha dificuldade, inédito em sua história recente, a humanidade pode vislumbrar a expectativa de algo maior logo adiante, quando a ciência parece não oferecer todas as respostas.
Quanto ao segundo problema, que diz respeito à forma diferencial como o vírus afeta neste momento e vai afetar ainda mais as classes sociais, precisamos ter sensibilidade. Como pessoas, esta é uma chance para profunda reflexão e para ação. Neste exato momento, as classes médias e altas podem se dar ao luxo de ficar em casa, fazer sua quarentena de boa, ler um livro, colocar alguns assuntos em dia e até mesmo fazer uma reflexão como esta que aqui se apresenta. Não é a realidade das classes populares, e isso deveria ser óbvio, mas não é. Mais da metade da população brasileira se encontra neste exato momento em uma situação de completa vulnerabilidade, sem a certeza de que terá, nos próximos meses, o mínimo para sua sobrevivência.
A atual discussão da renda básica universal e as medidas de implantação da mesma, que surgem agora, enfrentam parcialmente o problema, mas não essencialmente. Um real enfrentamento precisaria repensar as bases profundas de reprodução do capitalismo, como uma ordem global incontornável que nunca produziu justiça social. A quantidade de evidências sobre este fato já é mais do que suficiente, já basta. Quando o Welfare State fracassou nos Estados Unidos e na Europa ficou claro que o capitalismo é um sistema que jamais produzirá justiça social por si mesmo. O verdadeiro enfrentamento da desigualdade, para além da renda básica universal, o que pode ser por si mesmo um bom início, deveria incluir a taxação das grandes riquezas e uma sensibilização por parte das elites na condução do mercado.
Quem está por trás das ações patéticas do não-presidente da República? Como é possível não se sensibilizar com pelo menos metade da população vivendo abaixo de qualquer linha imaginável de dignidade? São questões que exigem respostas de imediato, e o corona vírus aprofunda tais questões. Algumas ações de ajuda social e boa vontade já são vistas emanando da própria sociedade, que apresenta com isso seu lado mais sensível e solidário. São ações louváveis, mas não suficientes. O sistema político e as elites econômicas precisam reagir de maneira sensível e responsável, levar a sério o slogam que sempre evocaram para si, o de conduzir os rumos da humanidade. É muito fácil para a classe empresarial arrogar para si a condição de condutora da sociedade, como tem surgido em pesquisa atual que estou realizando com executivos, ao dizer que gera empregos.
Agora, como nunca antes, a questão não é gerar e manter empregos ou obrigar as pessoas a trabalhar. A questão é como enfrentar o problema da desigualdade, sempre existente, com sua intensificação pelo corona vírus, neste exato momento. Um caminho seria uma atitude mais consciente e sensível por parte da classe empresarial, em todos os níveis, mas principalmente nos andares de cima. Um dos pilares da reforma trabalhista foi exatamente deixar nas mãos “das partes”, empregadores e empregados, a possibilidade legal de negociar o que fazer sobre salários e tempo de trabalho. Vamos ser sensíveis neste momento e aliviar para o lado do trabalhador, adotando medidas de tolerância e de proteção social nos próximos meses, sem simplesmente colocar isso na conta do Estado? Isso seria ser “responsável” pela sociedade, ou seja, que a elite usasse os recursos que tem para proteger os vulneráveis. Mas não é o caso. Presenciamos exatamente o contrário. Vamos mexer no caixa da empresa, como se fosse um investimento, e pensar em um salário para proteger o trabalhador nos próximos meses, ou seja, fazer um investimento no próprio capital humano que será necessário ali na frente? Não, longe disso, vamos por na conta do Estado. Nesta hora predominam o medo e a pequenez humana.
Esta atitude idealista não vai acontecer por que o capitalismo global, há 40 anos, vem construindo uma economia política de “generalização da precariedade”. No plano da vida moral, trata-se de um processo de “institucionalização da indignidade” das condições de trabalho e das relações entre as classes. O fato de não ter um trabalho e de não poder trabalhar, o que se complexifica com o corona vírus, é por si mesmo indigno, ameaçando a capacidade de milhões de pessoas de proverem por si mesmas, para si e suas famílias, o mínimo para sua dignidade. Como dignidade das classes populares, compreendo a possibilidade de ter o mínimo para preservar a vida material e a vida moral. Por outro lado, as elites e as classes médias não podem ser dignas se não agem efetivamente para combater a indignidade dos mais carentes. Recursos financeiros para o enfrentamento do problema existem, precisariam ser utilizados com um pouco mais de humanidade. Um pouquinho mais já seria um bom começo.
Publicado aqui e na edição de hoje (05) na Folha da Manhã