“E daí?”, respondeu Jair Bolsonaro (sem partido) em suas redes sociais no último domingo (26), ao ser questionado (confira aqui) por um internauta sobre a proximidade da sua família com Alexandre Ramagem, indicado pelo presidente para a diretoria-geral da Polícia Federal (PF). A resposta demorou três dias. Na manhã de hoje (29), o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a nomeação. A resposta de Bolsonaro foi ainda mais rápida: na tarde de hoje ele tornou sem efeito a nomeação de Ramagem, que deve voltar para a Agência Brasileira de Informação (Abin)
O novo recuo do presidente, em mais um dos seus testes aos limites da democracia, tornou definitiva a decisão liminar de Alexandre Moraes. Que foi tomada em ação movida pelo PDT:
— Defiro a medida liminar para suspender a eficácia do Decreto de 27/4/2020 (DOU de 28/4/2020, Seção 2, p. 1) no que se refere à nomeação e posse de Alexandre Ramagem Rodrigues para o cargo de Diretor-Geral da Polícia Federal (…) A finalidade da revisão judicial é impedir atos incompatíveis com a ordem constitucional, inclusive no tocante às nomeações para cargos públicos, que devem observância não somente ao princípio da legalidade, mas também aos princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público — escreveu Moraes em seu despacho.
Ramagem é amigo da família Bolsonaro. A relação começou quando ele chefiou a equipe de segurança da PF do então candidato a presidente Jair Bolsonaro, em 2018, a que todos os presidenciáveis têm direito. No réveillon de 2019, o delegado federal foi fotografado em confraternização com Carlos Bolsonaro (Republicanos), filho do presidente. Mero vereador carioca, ele tem grande influência no governo do pai, a ponto de derrubar ministros. E é sabidamente ligado ao “gabinete do ódio”, que cria e dissemina ataques na internet contra adversários do presidente, é alvo de uma CPMI no Congresso e investigada em ação do STF que tem Alexandre Moraes como relator.
Ramagem foi escolhido pelo presidente para chefiar a PF no lugar de Maurício Valeixo. A exoneração recente deste levou à saída do então ministro da Justiça Sergio Moro. que acusou o presidente de tentar interferir politicamente na Polícia Federal. Na decisão em que suspendeu a nomeação, Moraes citou as alegações de Moro, e afirmou que pode ter ocorrido desvio de finalidade na escolha de Ramagem, “em inobservância aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público”.
Moraes ressaltou as afirmações do ex-ministro da Justiça que dão conta de que Bolsonaro queria “ter uma pessoa do contato pessoal dele” no comando da PF, “que pudesse ligar, colher informações, colher relatórios de inteligência”:
— Tais acontecimentos, juntamente com o fato de a Polícia Federal não ser órgão de inteligência da Presidência da República, mas sim exercer, nos termos do artigo 144, §1o, VI da Constituição Federal, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União, inclusive em diversas investigações sigilosas, demonstram, em sede de cognição inicial, estarem presentes os requisitos necessários para a concessão da medida liminar pleiteada — explicou o ministro Alexandre Moraes.
STF coloca em Bolsonaro o mesmo freio que já pôs em Dilma e Lula
Com a decisão de suspender a nomeação de Ramagem para o comando da PF, o STF coloca em Bolsonaro os mesmos freios constitucionais antes impusera a Dilma Rousseff (PT). Quando era presidente, ela chegou a nomear o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como ministro-chefe da Casa Civil, em 17 e março de 2016. E teve sua decisão revogada (relembre aqui) no dia seguinte, em outra decisão liminar do Supremo, do ministro Gilmar Mendes.
A nomeação de Lula por Dilma serviria para dar foro especial ao ex-presidente, investigado na Lava Jato. A intenção foi reforçada em áudio de uma ligação entre os dois líderes petistas, grampeada e vazada em decisão polêmica do então juiz federal Sergio Moro. O mesmo que agora saiu do governo Bolsonaro denunciando a intenção do atual presidente de mudar o comando da PF para tutelar politicamente o órgão. E ter acesso privilegiado a investigações contra membros da sua família e aliados políticos, como os deputados federais do Centrão dos quais se aproximou recentemente.
Análise em Campos da suspensão pelo STF da nomeação de Bolsonaro ao comando da PF
— A decisão liminar do ministro suspendendo a nomeação do novo diretor-geral cria instabilidade na instituição. Com uma diretoria de saída e sem uma sinalização de qual caminho seguir coloca a Polícia Federal de vez no meio da crise política do governo. Isso não é bom para o país e muito menos para a instituição. É preciso uma solução para evitar que um possível prolongamento afete o desenvolvimento dos trabalhos. Não são todos os que colocam uma carreira sob questionamento para agradar o presidente da hora — advertiu Roberto Uchoa, escrivão da PF em Campos e diretor da Associação Nacional dos Escrivães da Polícia Federal (ANEPF).
— O ato de nomeação de um ministro é discricionário, não se exigindo a explicitação dos motivos para que seja considerado válido. No entanto, como todo ato administrativo, deve respeitar a moralidade e atender ao interesse público, sob pena de nulidade. Vale dizer, o presidente tem amplo poder discricionário na escolha de seus ministros. Mas esse poder não é absoluto, encontra inegavelmente limites na lei, como pacificamente se reconhece. Quando o presidente edita um ato para atender fins pessoais e ilícitos, considera-se que praticou o ato com “desvio de finalidade”. A decisão do STF não impede, todavia, que outra pessoa seja nomeada para ocupar o cargo de diretor geral da PF, do contrário isso acarretaria ofensa ao princípio da separação dos poderes. Desse modo, o presidente poderá insistir em atingir fins ilícitos e isso exigirá acompanhamento permanente dos órgãos de controle e da sociedade para evitar que, mais uma vez, atue em desvio de finalidade — analisou Cléber Tinoco, advogado da Uenf.
— A par da plena possibilidade, em tese, de o Poder Judiciário exercer controle de legalidade dos atos discricionários do Poder Executivo, o que foi longamente justificado na decisão proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, chama a atenção na mesma decisão o fato de o seu prolator haver invocado, como uma das razões para suspender a posse do delegado Alexandre Ramagem, as palavras do próprio presidente da República em pronunciamento feito à nação no dia 24 de abril de 2020. Naquela ocasião, disse o presidente, para justificar a substituição do diretor da Polícia Federal, que precisava ter controle sobre os atos daquela insituição, a incluir acesso a relatórios do que foi feito, por exemplo. O pronunciamento do próprio presidente, e não alegações de outras pessoas, indica a séria probabilidade de que a nomeação do novo diretor da Polícia Federal teve como objetivo atender a interesse pessoal do chefe do Poder Executivo da União. De modo a, aparentemente, fustigar os princípios da impessoalidade, da moralidade e do interesse público que devem animar os atos administrativos, como se a Polícia Federal fosse órgão de governos de plantão e não de Estado — limitou Victor Queiroz, promotor de Justiça junto à 3ª Vara de Família de Campos
— Bolsonaro não é liberal, democrático e nem republicano. Assim, não é de se esperar dele o respeito aos princípios da moralidade e da impessoalidade administrativas. Ele já afirmou que, se puder, “vai ajudar o filho, sim”. Não obstante o forte ativismo judicial, acertou o ministro Alexandre ao condenar a nomeação como desvio de finalidade. Neste ponto, Bolsonaro se equiparou a Dilma quando nomeou Lula ministro para salvá -lo da prisão. Por outro lado, embora o STF tenha sido chamado para dentro da guerra por conta dos ataques que vem recebendo e que podem estar sendo orquestrados pelos filhos do presidente, é importante que os ministros tenham a consciência que decisão desse tipo não pode ser considerada normal, só sendo possível mesmo em tempos de crise aguda — ponderou Carlos Alexandre de Azevedo Campos, advogado tributarista e ex-assessor do STF.