Com colapso à vista, apelo da linha de frente contra a Covid-19: “Fiquem em casa!”

 

Capa da Folha da Manhã da edição de hoje (03)

 

“Estamos apenas de frente com o vírus. Mas devemos ser gratos também àqueles que fazem sua parte ficando em casa. O meu apelo é esse: fiquem em casa! Não saiam na rua se não tiverem necessidade. Não é uma simples gripe! É grave e sério!”. Entre os novos depoimentos que a Folha foi colher entre os profissionais da linha de frente no combate contra a pandemia da Covid-19 em Campos e região, o apelo e advertência de Elciliny Rodrigues, 25 anos, fisioterapeuta da UTI do Centro de Controle e Combate ao Coronavírus (CCC) de Campos, é o que melhor define a realidade que o Brasil deve viver neste mês de maio. Na quinta (30), último dia de abril, o secretário estadual de Saúde, Edmar Santos, admitiu (confira aqui): “O que a gente espera para as próximas três a quatro semanas é que o estado do Rio e o Brasil vivam o mesmo colapso que viveu Itália, Espanha e Estados Unidos”.

 

Secretário estadual de Saúde, Edmar Santos projeta colapso do sistema de saúde do RJ, com a pandemia da Covid-19, para este mês de maio (Foto: Divulgação)

 

As palavras da fisioterapeuta e do secretário refletem a realidade já vivida em cidades brasileiras como Manaus. Onde o colapso do sistema de saúde, provocado pela pandemia, tem sua face mais cruel revelada em caixões sepultados uns sobre os outros, em grandes valas coletivas. Ou enterrados pelos próprios parentes, devido à sobrecarga dos coveiros. E se repete na falta de leitos de UTI em estados como Ceará e Maranhão. Matéria da página 7 revela que isso não ocorreu nos hospitais da rede pública e contratualizada de Campos, talvez pela abertura do CCC desde 30 de março, no prédio novo da Beneficência Portuguesa. Mas a taxa de ocupação dos 198 leitos de UTI, segundo o governo municipal, é de 79%. Como sempre foi sua média, antes do novo coronavírus. Isso, a despeito da falta de informação de leitos por parte dos hospitais particulares da cidade. E do hospital estadual de campanha, com denúncia de superfaturamento e sendo construído na área da antiga Vasa, não ter prazo para abrir.

 

Após produzir as mesmas cenas na Itália, na Espanha e nos EUA, cemitérios de Manaus enfrenta o colapso do sistema de saúde e a superlotação dos cemitérios pelos mortos da Covid-19 (Foto: Michel Dantas – AFP)

 

Instituto mais respeitado no mundo em suas projeções sobre a pandemia da Covid-19, o Imperial College de Londres divulgou na última terça (28) um novo estudo (confira-o na íntegra aqui). E apontou (confira aqui) que, entre os 49 países pesquisados, o Brasil tem a maior taxa de transmissão da doença: cada infectado no país como o novo coronavírus contamina outros três. Nessa progressão, foram projetadas 5 mil mortes de Covid-19 entre os brasileiros nos primeiros dias de maio. Até o início de sexta-feira, 1º dia do mês, os óbitos oficialmente confirmados da pandemia no país eram 5.091. Em Campos eram quatro, entre os 21 no Norte e Noroeste Fluminense e os 854 do estado do Rio. Na dúvida entre os dados oficiais e as projeções, a frieza dos números se derrete diante de duas certezas. Cada uma dessas vidas humanas perdidas é e será irreparável. Tão importante quanto é, para você, leitor, a sua e as dos seus entes queridos. A segunda certeza? Os profissionais da saúde formam a linha de resistência contra um vírus invisível, diante do qual muita gente ainda prefere bancar São Tomé: ver para crer.

 

Entre os 49 países pesquisados pelos Imperial College de Londres, o Brasil tem a maior transmissão do novo coronavírus e subnotificação de quase 90% dos casos (Foto: Divulgação)

 

Na expectativa pelo que virá neste mês, quando finalmente deve ser revelado o pico da doença no país, o Imperial College de Londres apontou outro dado preocupante. Devido à falta de testes, o Brasil se destaca negativamente também pela subnotificação da Covid-19. O estudo apontou que só 10,4% dos casos da doença são oficialmente confirmados no país. Baseada em modelos matemáticos, se essa projeção estiver correta, os 5.091 brasileiros confirmados como infectados até sexta, seriam na verdade 820.962; os 9.453 casos do RJ seriam 90.984, os 354 do Norte e Noroeste Fluminense seriam 3.044 e os 85 de Campos, seriam 817. Quaisquer que sejam os números reais do Brasil, no mundo em média 20% do total precisaram recorrer à internação no sistema de saúde. Deles, entre 3% a 5% demandaram leito de UTI e respirador mecânico para continuarem vivos. Foi o caso feliz de Seu Pedro, de 71 anos, natural de São Fidélis, no Centro de Combate e Controle ao Coronavírus (CCC) de Campos. Na última sexta (confira aqui e no vídeo abaixo) ele saiu da UTI onde havia passado 24 dias internado, 12 deles respirando com auxílio de aparelho, para completar seu tratamento em um leito clínico.

 

 

Mas quem são essas mulheres e homens no combate à Covid-19 em Campos e região, a que tantos “Seu Pedro”, jovens e velhos, mulheres e homens, deverão a vida quando tudo isso acabar? Saudados como heróis no mundo inteiro, como esses profissionais da linha de frente veem o inimigo e a si mesmos? Têm medo? O que os motiva a seguir em frente?

Elecilliny Rodrigues, fisioterapeuta da UTI do CCC de Campos

— O medo e o amor pela profissão andam juntos. A angústia e a aflição são inevitáveis. Fomos pegos de surpresa por um inimigo invisível, onde tudo é novo e precisamos sempre estar atentos para cada passo. Peço a proteção de Deus todos os dias antes de sair da minha casa e que o manto de Maria seja a minha maior proteção. Fui questionada várias vezes quando aceitei trabalhar com esse tipo de paciente. Não é fácil ter que se isolar daqueles que amamos e agradeço todo incentivo que venho recebido dos meus familiares. Estamos fazendo a nossa parte, nos protegendo para proteger vocês. Nosso dia a dia tem sido muito cansativo, nos estressamos, usamos máscaras por 12 ou 24 horas seguidas e elas machucam, roupas quentes, equipamentos de proteção que nos deixam com dores de cabeça, mas que são necessários para segurança de todos. Não somos os únicos a ser considerados heróis, estamos apenas de frente com o vírus. Mas devemos ser gratos também àqueles que fazem sua parte ficando em casa. O meu apelo é esse: fiquem em casa! Não saiam na rua se não tiverem necessidade. Não é uma simples gripe! É grave e sério! — alertou Elciliny Rodrigues, 25 anos, fisioterapeuta intensivista do CCC de Campos, na Beneficência Portuguesa.

Keila Severiano Rodrigues, técnica em enfermagem do hospital de campanha de Quissamã

— Tenho um pouco de medo, mas a vontade de ajudar sempre prevalece. Estudei para isso e sei das minhas atribuições. A covid-19 é uma doença invisível, não estamos vendo contra quem lutamos. Só sabemos que é uma doença transmitida pelo contato físico e por gotículas de saliva que ficam no ar. A população não está preparada para enfrentá-la. Pelos meus pais não estaria atuando na linha se frente, mas sou uma profissional e jurei ajudar cuidar dos enfermos. Não me vejo como heroína e sim como uma pessoa normal, que tem medos e anseios. É Deus sempre no controle. Quando assumi um plantão com uma paciente com suspeita de Covid-19 e intubada, depois fiquei sabendo que ela estava se recuperando e seu teste dela tinha dado negativo para a doença. Ela foi extubada e terá alta em breve, porque estava evoluindo bem. Esse dia foi muito bom. Receber essa boa notícia me marcou bastante, já que a luta pela vida no combate a essa pandemia é diária e constante — ressaltou Keila Severiano Rodrigues, 41 anos, técnica de enfermagem do hospital de campanha de Quissamã, enquanto aguarda para atuar também no hospital de campanha estadual de Campos.

Hugo da Silva Barreto, da lavanderia da Beneficência Portguesa, que abriga o CCC de Campos

— Trabalho em contato direto com as roupas de todos que estão na linha de frente contra a Covid-19. Tenho que ter muita atenção por ser tratar de um setor de muita contaminação. Sinto medo, mas também orgulho de poder ajudar para que todos tenham roupas limpas e desinfetadas para o tratamento dos pacientes. Tenho o apoio da minha família, mas muitos ficam preocupados e tento passar o máximo de tranquilidade a eles. Vejo muita união entre os colegas de trabalho. E, no semblante de todos, a vontade de ajudar ao próximo. Faltam palavras para decifrar o que todos meus amigos da linha de frente representam para mim. Tenho eles como heróis arriscando a própria vida para salvar outras. Vejo nos olhos deles o orgulho que têm de lutar por vidas, mesmo sabendo que podem se contaminar. O momento mais marcante para mim foi quando eu soube que a instituição no qual eu trabalho iria ser centro de referência no combate ao coronavírus. Na hora, senti medo. Mas depois falei para mim mesmo que eu iria dar meu melhor para ajudar — lembrou Hugo da Silva Barreto, de 34 anos, que trabalha na lavanderia da Beneficência Portuguesa, que abriga o CCC de Campos.

Élida Campos Serra, fisioterapeuta da UTI do CCC de Campos

— É um misto de sentimentos. Ao mesmo tempo e quero ajudar e dar assistência, penso na grande possibilidade de contaminação. Mas saber que sou papel importante e posso fazer a diferença no processo de cura e reabilitação de pessoas, é o que me dá esse equilíbrio e me encoraja. Lidamos com algo novo, ainda não muito bem descrito cientificamente, estamos conhecendo a doença no seu curso. Isso é mais difícil para saber a conduta ou tratamento ideal. A parte mais difícil é manter o afastamento da minha família, sem saber por quanto tempo. Ainda sim recebo incentivo e apoio de todos. Não nos vejo como heróis. Vejo pessoas corajosas em assumir os riscos em benefício de toda sociedade. Todos os pacientes me marcam, especialmente os que perdemos. Reconhecer uma história, uma vida e sonhos por trás de um número de leito é sempre o mais impactante — ressaltou Élida Campos Serra, 34 anos, fisioterapeuta intensivista do CCC de Campos na Beneficência Portuguesa.

Lurdiane Carvalho Oliveira, nutricionista do CCC de Campos

— Receio, medo estão muito presente nos últimos tempos em nossas vidas. Mas sabe o que ameniza esses sentimentos? Muitas orações e quando ouvimos dos pacientes: “Obrigada pelo seu carinho, adoro sua visita”. Tenho isso no meu coração. Antes da profissão, somos seres humanos. E para esses pacientes, o mais próximo fisicamente que eles podem estar de outro ser humano, somos nós da linha de frente. Infelizmente, eles não podem ter o apoio físico dos familiares. Como uma das partes mais difíceis para nós é ficarmos longe dos nossos familiares, que tanto amamos. Parece contraditório, mas é por esse amor que precisamos manter a distância, para proteger eles e cuidar dos que mais precisam da gente neste momento. Vejo que, juntos, somos gigantes lutando contra outro gigante, só que invisível. Às vezes podemos perder uma batalha, mas, se Deus quiser, nós iremos ganhar essa guerra. O momento mais marcante foi quando uma paciente relatou: “Vocês estão sendo muito importantes na minha recuperação. As pessoas têm medo da gente e nos discriminam como se tivéssemos culpa de ter nos contaminado”. Peço a Deus todos dias sabedoria, paciência, proteção e saúde para a humanidade — rogou Lurdiane Carvalho Oliveira, 32 anos, nutricionista da Beneficência Portuguesa, onde funciona o CCC de Campos.

Aline do Nascimento Alvez, técnica em enfermagem de um hospital particular de Campos

— É uma questão de equilíbrio, você saber segurar suas emoções, seus medos e prestar atendimento a quem depende de você naquele momento. E é claro sempre usar os EPIs (equipamentos de proteção individual) necessários. A Covid-19, é uma doença letal e contagiosa. Graças a Deus, eu tenho muito apoio da minha família e dos amigos. E olha que são muitos questionamentos. Mas quando você exerce sua profissão com amor, bota a sua fé em Deus na frente e vai. A relação profissional com a equipe é de cuidados, amor ao próximo e respeito. Na verdade, nós sempre fomos heróis, mas só agora que o mundo está vendo isso. Nós deixamos a nossa casa, os nossos filhos, para salvar vidas de quem nós nunca vimos. Viramos noites sem dormir, preocupados se aquele paciente vai viver ou não, se fizemos de tudo ou não, um trabalho de equipe incansável. Isso pra mim é ser herói. E, sim, queremos reconhecimento. Quando ente querido seu sendo internado, isolado. E quando morre, não tem direito nem a um enterro descente, isso é muito marcante — disse Aline do Nascimento Alves, 37 anos, técnica em enfermagem de um hospital particular de Campos.

Mírian Silva da Conceição, técnica em enfermagem do hospital de campanha de Quissamã

— Já passamos por vários tipos de vírus e bactérias, mas nenhuma comparada com esse novo coronavírus. É uma doença nova, totalmente contagiosa, sem vacina ou medicações 100% comprovadas como cura. Ao longo desses meus anos em UTI, essa é a primeira doença que mostra que um simples vírus pode destruir a humanidade. A vida do paciente depende da nossa vida e para isso é necessário controle emocional, firmeza e muita fé em Deus. Não tenho palavras para descrever o amor que recebo da família e amigos. Meu isolamento acontece para o bem deles. A solidão é o mais complicado. E de repente eles dão um jeito de chegar a mim com um doce caseiro que tem sabor de amor. No trabalho, nos tornamos uma família em prol de quem precisa de nós. Somos seres humanos, temos medo, vontade de ajudar e amor ao que fazemos. Fizemos um juramento. Precisamos ser reconhecidos. Menos massacrados por uma escala desumana e salários defasados. O mais difícil é a incerteza de não sabermos se estaremos ou não sendo contaminados. Acredito que uma das piores coisas é quando recebemos a notícia de que um profissional da saúde se contaminou e foi abatido pelo vírus. Sensação de impotência e muitas vezes segurar as lágrimas é o mais difícil — desabafou Mírian Silva da Conceição, 45 anos, técnica em enfermagem do hospital de campanha de Quissamã.

 

Página 6 da edição de hoje (03) da Folha

 

Publicado hoje (03) na Folha da Manhã

 

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