De Campos ao mundo, Didi por Péris Ribeiro, Chico de Aguiar e Carlos Heitor Cony

 

Didi, Péris Ribeiro, Chico de Aguiar e Carlos Heitor Cony

O campista Didi foi eleito pela crônica esportiva internacional reunida em 1958 na Suécia, por conta da Copa do Mundo daquele ano, naquele país, como maior jogador da competição. O que significa dizer: do mundo. Desde garoto, ouvia sobre aquele meia direita clássico de passes longos e precisos, por meio de um grande fã e conterrâneo seu: meu pai. Que o vira jogar ainda em Campos, antes de explodir e chegar à Seleção Brasileira na Copa de 1954, na Suíça, quando atuava no Fluminense, clube do coração tricolor do velho Aluysio.

Mesmo após o craque deixar as Laranjeiras, por não aceitar mais ter que entrar pela porta de empregados do clube, meu pai continuaria torcendo por Didi. Que se imortalizaria no maior Botafogo de todos os tempos, ao lado do ponta direita Mané Garrincha, o “Anjo das Pernas Tortas”, e do lateral esquerdo Nilton Santos, a “Enciclopédia do Futebol”. Com os dois, mais um tal de Pelé, Didi comandaria a conquista da nossa primeira Copa do Mundo.

 

Em verso, o botafoguense Vinicius de Moraes escreveu no Bi do Brasil em 1962: “A um passe de Didi, Garrincha avança”

 

Na final, o placar seria aberto logo aos 4 minutos de jogo pela Suécia, dona da casa. E o Brasil sentiu bastante. Mais pelo fantasma da derrota por 2 a 1 para o Uruguai, em pleno Maracanã, apenas oito anos antes, na final da Copa de 1950, do que pelo belo gol do meia esquerda sueco Liedholm, que marcou após driblar os zagueiros brasileiros Bellini e Orlando.

Coube a Didi pegar a bola no fundo das redes, ir caminhando com ela lentamente ao meio de campo. Enquanto acalmava seus companheiros, dizendo: “Acabou a palhaçada! Agora vamos meter bola nos ouvidos desses gringos!”. Já escrevi que foi ali, naquela caminhada elegante e determinada, que o futebol brasileiro ganhou sua maioridade. A final acabaria vencida por 5 a 2 pelo Brasil, com dois gols do menino Pelé. O primeiro teve direito a chapéu sobre o zagueiro dentro da área, arrematado antes da bola tocar o chão, para colocar o gol de Liedholm no chinelo.

 

 

Di Stéfano, Didi e Puskás com a camisa merengue do Real Madrid

Apelidado naquela Copa do Mundo, pela imprensa estrangeira, de “Mr. Football”, Didi ficaria mais conhecido pelo epiteto “Príncipe Etíope de Rancho”, dado por Nelson Rodrigues. E seria Bicampeão pela Seleção Brasileira em 1962, quando jogava de novo pelo Botafogo, após passagem frustrada no Real Madrid do húngaro Ferenk Puskás e do argentino Alfredo Di Stéfano, com quem o maior jogador de futebol da história de Campos teria se desentendido.

Em 2000, no show de final de ano promovido pela Folha da Manhã, um prêmio também passou a ser entregue a um campista que tivesse elevado o nome da cidade no Brasil e no mundo. E o primeiro agraciado foi talvez o maior deles: Didi. O duplo do nome do jornal com a jogada mais famosa do craque, um chute que a bola tomava efeito, descaindo súbita ao gol, para enganar o goleiro, batiza até hoje o prêmio: Folha Seca. Não por acaso, coube à cantora Elza Soares, viúva de Garrincha, não só o show da noite, como entregar aquele primeiro Folha Seca ao seu criador.

O cronista esportivo Armando Nogueira foi quem melhor resumiu a “folha seca” de Didi. Para tanto, teve que tabelar com o maior romance de Machado de Assis: “chute oblíquo e dissimulado, como os olhos de Capitu”.

Didi herdou de Zizinho a camisa 8 e a condição de cérebro da Seleção Brasileira

Havia conhecido Didi pessoalmente em 1993, sete anos antes da sua homenagem pela Folha, no Teatro Trianon. Foi numa noite chuvosa do Rio de Janeiro, onde o jornalista campista e amigo Péris Ribeiro lançava seu “Didi — O Gênio da Folha Seca”, na livraria Argumento, no Leblon. A obra continua sendo a melhor referência literária para se conhecer a vida e a obra do gênio do futebol.

Foi naquele evento do livro em que, além de Didi, conheci tambem a sua maior referência nos campos. De quem o campista herdaria a titularidade como meia direita e cérebro da Seleção Brasileira: Zizinho, o Mestre Ziza. Grande craque da Seleção Brasileira vice-campeã de 1950, foi o único meia da história do Flamengo que geraria dúvida na comparação direta com Zico. Maior ídolo também de Pelé, quando Zizinho morreu, em fevereiro de 2002, escrevi uma crônica sobre aquele encontro, depois republicada aqui.

Guiomar e Didi

Em 2000, em contato com Didi antes da noite de homenagem, ele havia me pedido para lhe arrumar um litro de cachaça da terra. Mas, antes de entregá-la, me deu as coordenadas: “Só não pode ser quando Guiomar estiver por perto”. Nos anos 1950, Guiomar era uma vedete e cantora de rádio, que se apresentava vestida de odalisca em programa do compositor rubro-negro Ary Barroso. Depois que ela se se casou com Didi, em escândalo da época, pois o jogador já era casado e tinha filhos, reza a lenda que Ary, despeitado, compôs o samba “Risque”.

Obediente às instruções que eram seguidas em campo por Pelé e Garrincha, esperei um momento em que Guiomar afrouxasse na “marcação”. E entreguei a garrafa de cachaça embalada, dentro de uma bolsa, a Didi. Que recebeu o passe dissimulado comos os olhos de Capitu, com uma alegria nos seus tão grande quanto demonstrou ao receber o prêmio, batizado com a sua jogada, dado pelo maior jornal da sua cidade. Impecavelmente vestido de terno e gravata, emanava em cada mínimo gesto e expressão a elegância principesca que Nelson Rodrigues lhe atribuiu nos campos.

Didi morreria menos de um ano depois, em 12 de maio de 2001, aos 72 anos. Hoje completam-se 19 anos da sua perda. Que o blog homenageia publicando abaixo textos de três outros jornalistas sobre o “Príncipe Etíope”. Dois são campistas: Péris Ribeiro, biógrafo do craque, e Chico de Aguiar. O terceiro, o carioca Carlos Heitor Cony, morto em 2018, publicou o seu na Folha de São Paulo em 2001.

Confira-os abaixo:

 

 

Didi com a camisa do Fluminense, que vestiu de 1949 a 1956

 

 

Péris Ribeiro, jornalista e flamenguista

Didi, o gênio iluminado

Por Péris Ribeiro

 

Ganhou ares de pesadelo — e pesadelo com a força do mais arrebatador tango portenho —, certa desdita vivida por Messi. O ano? 2016, em uma Copa América perdida para o Chile, nos pênaltis, em decisão ocorrida nos Estados Unidos. É incrível, mas ainda me lembro bem do seu choro, de sua imensa frustração. E da dura e sofrida realidade, da impossibilidade ante o impossível.

Porém, há de ter doído bem mais, a constatação real de que ainda não seria daquela vez. Nem a jogada genial, nem o gol decisivo. Muito menos, o sorriso refletido na taça. Na subida ao pódio, o sufoco de novo contido.

Quando, em que dia, afinal, ele poderá rasgar o peito e gritar: “Argentina! Argentina campeã!”?

Livro “Didi — O Gênio da Folha Seca”, de Péris Ribeiro, lançado a primeira vez em 1993

Como os deuses da bola sabem ser matreiros, e são tantas e tantas vezescruéis, há muita gente por aí ostentando façanhas de dar inveja. Uma gente, frise-se, capaz de exibir bem pouco mais que um mínimo que seja de talento.
Em compensação, existem certos gênios predestinados. Iluminados.Aqueles para quem a sorte nunca deixou de sorrir. Como Didi, o Príncipe Etíope. Alguém com um dom mágico, capaz de obter o que poucos, bem poucos, puderam na vida. Ainda mais, no sinuoso universo do futebol.

Basta dizer que, festejado em 1962, em Santiago do Chile, como bicampeão mundial, Didi já havia conseguido uma glória particular, toda sua, alguns anos atrás. É que, lá na Suécia, fora consagrado o MaiorJogador da Copa de 1958 – justamente a primeira de todas, na qual o Brasil saiu com as honras de grande campeão.

Aliás, refletindo com serenidade e rigor sobre o tema, não é pouca coisa ser considerado o Maior Jogador de uma Copa do Mundo. Em absoluto! Muito menos, em uma Copa que tem Pelé e Garrincha em campo. E ainda convém lembrar que também havia, nos gramados escandinavos, talentos luminares como os franceses Kopa e Fontaine, o tcheco Masopoust, o húngaro Bozsic e os alemães Rahn e Fritz Walter. Ou o sueco Skoglund, o argentino Labruna, o galês John Charles e o goleiro russo Lev Yashin, já celebrado como o “Aranha Negra”.

Pois ainda assim, e mesmo com todo o tipo de honraria por aí já recebida, nem no ato da heroica conquista em estádios do Chile, Mestre Didi faria por menos. É que, nos atapetados gramados andinos, o elegante e cerebral inventor da “Folha Seca” iria imprimir, pela última vez, a sua marca genial. Particularmente, porque só a ele, e a mais dez ilustres jogadores, seria concedida a honra de um Bi em Campeonatos Mundiais. No caso, oito brasileiros  com ele, Didi, nove — e dois italianos.

— Tenho consciência, que fiz por onde chegar a algum lugar. Sei bem disso. Mas sei também que Deus foi bom demais, dando-me além. Quantos fazem por merecer, e nada conseguem? — disse-me Didi certa vez, em um ameno final de tarde. O sol morno e agradável — era início de primavera — como testemunha privilegiada.
Será Messi, um desses definitivos — e imerecidos — desafortunados da bola?

 

 

Após a conquista da Copa do Mundo de 1958, o menino Pelé chora no ombro de Didi, consolado também pelo goleiro Gilmar

 

 

Chico de Aguiar, jornalista e vascaíno

Didi, o meu rei do futebol

Por Chico de Aguiar

 

Sem essa de Pelé, Garrincha, Maradona ou Messi. Muito se discute sobre qual é o maior jogador de todos os tempos. Mas não são só esses os grandes nomes do futebol. Tem também o Didi, por exemplo, que foi eleito o craque da primeira grande conquista do Brasil na Copa do Mundo de 1958, na Suécia. E bicampeão em 1962, no Chile. Quem o viu jogar pode confirmar que digo uma verdade irrefutável.

É indiscutível que Pelé merece a coroa. Foi três vezes campeão do mundo com a Seleção Brasileira — único jogador a conseguir essa conquista — e tem vários outros títulos internacionais, tanto com a nossa Seleção quanto com o seu clube, o Santos. Nenhum outro jogador de futebol foi tantas vezes campeão. Além de ter sido o maior artilheiro dentre todos.

Garrincha é outro craque que tem lá sua claque, sua torcida apaixonada. Tem dois títulos mundiais com a Seleção Canarinho e, jogando ao lado de Pelé, conseguiu a proeza de nunca ter saído derrotado de campo. Exibia um futebol moleque, de dribles e de encanto, que o levou a ficar conhecido como Alegria do Povo, título inclusive do filme de sua vida.

Para os argentinos, por exemplo, a preferência é pelos filhos da pátria, Diego Armando Maradona e Leonel Messi. O primeiro brilhou, o outro ainda brilha nos campos do mundo. Maradona, realmente, exibiu um futebol exuberante de dribles e jogadas mirabolantes. Foi estrela de primeira grandeza na Seleção Argentina e em todos os clubes pelos quais atuou. Mas, uma única vez foi campeão mundial com a Seleção do seu país.

Messi, por sua vez, nunca foi unanimidade com a camisa azul da Seleção Argentina. Embora seja o seu maior artilheiro, várias vezes fracassou, talvez por não ter tido ao seu lado companheiros do mesmo nível técnico do seu futebol. Ao contrário, no Barcelona, o seu clube, Messi sempre esteve muito à vontade, sendo o atleta mais valorizado. No clube catalão, Messi foi várias vezes campeão, espanhol ou em outras taças europeias.

Quanto ao Didi, foi craque do mesmo nível desses que já foram citados aí em cima. A diferença era a função que desempenhava em campo, na armação das jogadas para os atacantes. Porém não se eximia da função de executar o último arremate, com a famosa folha-seca, o chute mais perigoso e temido por todos os goleiros do mundo. Didi não se destacou como artilheiro, mas foi o cérebro da Seleção Brasileira e de todos os times dos quais vestiu a camisa.

Exaltado pelos grandes cronistas de esporte que viveram sua época, Didi foi particularmente homenageado por Nelson Rodrigues — o maior dramaturgo brasileiro —, que lhe deu o título de Príncipe Etíope de Rancho, por seu toque na bola sempre bonito e elegante, pelos dribles desmoralizantes e pelos passes preciosos, curtos ou de 40 metros.

 

 

Mesmo após deixar os campos, Didi e sua maior paixão

 

 

Carlos Heitor Cony, jornalista e tricolor

Didi

Por Carlos Heytor Cony

 

Que Pelé, Garrincha, Jair da Rosa Pinto, Nilton Santos, Zico, Rivelino, Gérson, Zizinho e Romário me perdoem. Mas o maior jogador que vi jogar foi Waldir Pereira, o Didi, que conheci com a camisa tricolor do Madureira e, mais tarde, com a camisa tricolor do meu time, o Fluminense.

Vestiu outras camisas, inclusive aquela desbotada da antiga seleção nacional, quando foi bicampeão mundial. Em 1958, na Suécia, Pelé foi o herói. Em 1962, no Chile, foi Garrincha. Mas nas duas ocasiões, o maestro, o eixo sobre o qual o time girava, era Didi.

Nunca houve jogador elegante como ele. A imagem que Nelson Rodrigues criou é definitiva: o príncipe de rancho, o príncipe etíope que desfilava arrastando um manto de arminho e púrpura.

Devo a Didi o meu afastamento da torcida em campo. Quando o Fluminense vendeu seu passe para o Botafogo, jurei nunca mais assistir a jogo do meu time. Com raríssimas exceções, cumpri o juramento.

A história oficial garante que ele inventou a folha-seca num jogo da seleção contra o Peru, em busca da classificação para a Copa do Mundo. Não foi bem assim. Foi numa partida do Fluminense contra um time suíço, cujo nome, traduzido, era “gafanhoto”. A camisa dos caras era verde, daí o nome.

Foi no Maracanã, nas balizas que foram dedicadas a Ghiggia, quando deviam ser dedicadas a Didi. Ali ele marcara o primeiro gol no estádio, num amistoso Rio e São Paulo. Ali ele fizera a primeira folha-seca, o chute que fazia da bola uma pluma ao vento, tal como a mulher, segundo o Duque de Mântua no “Rigoletto”: mudava de inflexão e de pensamento.

Entrevistei-o uma vez, em sua casa na Ilha do Governador. Ele não era elegante apenas em campo. Nunca entrevistei o Aleijadinho nem o Machado de Assis. Mas acho que já entrevistei um artista genial.

 

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