Quando a bandeira nacional é símbolo de autoritarismo, todos os dias são de Cinzas

 

Como a conceituada revista inglesa The Economist retratou o Brasil durante a pandemia de Covid em 9 de abril deste ano: “Jair Bolsonaro isola a si mesmo de maneira errada” (Reprodução)

 

 

Matheus Berriel, jornalista

Quantos anos serão comidos?

Por Matheus Berriel

 

No primeiro Carnaval pós-Ditadura Militar no Brasil, em 1986, ano de eleições gerais para a Assembleia Nacional Constituinte, o Império Serrano apresentou na Avenida Marquês de Sapucaí o enredo “Eu quero”, com samba assinado pelo campista Aluísio Machado em parceria com Jorge Nóbrega e Luís Carlos do Cavaco, que levaram a escola de samba ao terceiro lugar do Grupo 1A, o principal da época, equivalente ao Grupo Especial nos dias atuais. Idealizando o encontro com um gênio em sua fonte e a travessia da ponte de uma doce ilusão, a letra do samba listava anseios de um povo que somente três anos depois viria a escolher nas urnas seu presidente. E citava entre os desejos imperianos o de que, em caso de dor, o doutor fosse doutor e não passasse de bedel.

Um dos frutos da Constituinte eleita em 1986 seria, dois anos depois, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) que, apesar dos pesares, tem como princípio fundamental a universalização do atendimento. E possui como um de seus braços a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), referência nacional e com reconhecimento internacional nas áreas de ciência e tecnologia em saúde.

Passaram-se 34 anos desde que o Império Serrano fez-se porta-voz do povo para pedir, “a bem da verdade, a felicidade em sua extensão”, numa relação de sonhos que incluía uma juventude sã, com ar puro ao redor; o povo bem nutrido e o país desenvolvido, tendo paz, moradia, melhoria de renda e educação de qualidade. Foi no mesmo Carnaval em que Caymmi mostrou ao mundo o que a Bahia e a Mangueira têm, recorte da pluralidade cultural brasileira que valeu à Verde e Rosa seu 15º título.

Surpreenda-se agora o leitor com o fato de não ser este um artigo carnavalesco. As informações até aqui expostas servem como pano de fundo para abordar um cenário que, guardadas as proporções e consideradas as instituições, se redesenha sem ter nada de sonho intenso, raio vívido, amor e esperança. Isto em meio à pandemia de uma doença que, embora publicamente tratada como “gripezinha” por quem deveria representar toda a nação, e não apenas parte dela, já matou 340.875 pessoas no mundo, sendo mais de 22 mil filhas deste solo de mãe atualmente nada gentil.

Enquanto faltam leitos nos hospitais e túmulos nos cemitérios, não é doutor quem deveria ser. Os que são e tentaram atuar como tal à frente do ministério da Saúde, Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich, foram limados por não avalizarem um protocolo irresponsável, cuja medicação em pauta, a cloroquina, pode tanto salvar quanto matar pacientes da Covid-19.

Ao sonho imperiano da juventude sã, a resposta vem do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que sugere “passar a boiada” e mudar regras relacionadas à proteção ambiental enquanto as atenções estão voltadas para o novo coronavírus. Boa nutrição e renda vão só até o segundo capítulo, pois falta fiscalização no auxílio emergencial distribuído pelo governo e, enquanto desempregados deixam de recebê-lo, as fraudes se multiplicam. E o ministro da Economia, Paulo Guedes, que sustenta o presidente Jair Bolsonaro no cargo, sugere levar 1 milhão de jovens aos quartéis para atuarem como voluntários na construção de estradas, com o pagamento de R$ 200 ou R$ 300 mensais.

Educação é algo também em falta, assim como bom senso. Bastaria mencionar a demora para o adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), num ano em que até os Jogos Olímpicos foram adiados, o que não ocorria desde a Segunda Guerra Mundial, encerrada em 1945. O bônus da pasta surgiu com a divulgação de falas do ministro Abraham Weintraub, chamando de vagabundos e defendendo a prisão de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).

O samba de 86 do Império Serrano faz menção ao Regime Militar como “20 anos que alguém comeu”. Sabe-se lá quantos serão comidos na contagem aberta em 2019, quando foi escancarada a porta para que se tornasse comum o presidente ter um serviço particular de informações e trocar autoridades de Segurança por interesses pessoais e familiares. Ou indicar o armamento da população como forma de evitar uma possível ditadura que, nos delírios bolsonaristas, pode ser imposta por “um filho da puta” que aparecer ou “um bosta de um prefeito” que publicar um decreto e algemar populares em suas casas para respeitarem o isolamento social. Num período em que a bandeira nacional passou a ser vista como símbolo do autoritarismo, não só a quarta-feira, todos os dias são de Cinzas.

 

Publicado aqui, nas redes sociais

 

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