Difícil saber onde os protestos nos EUA e no Brasil darão. Acima do Equador, eles começaram na segunda (25), na cidade de Minneapolis, mais populosa do estado do Minnessota. Foi quando e onde o negro George Floyd, de 46 anos, ex-segurança de loja e um dos milhões de desempregados no mundo por conta da pandemia da Covid-19, acabou morrendo após ser sufocado pelo policial branco Derek Chauvin, 44 anos. Que apoiou o peso do seu corpo com o joelho sobre o pescoço do suspeito algemado e deitado de bruços na rua, por quase nove minutos. Nos últimos três, já estava desacordado. Antes disse “Não consigo respirar”, falou da sua mãe e implorou “por favor, por favor, por favor”. O motivo? Ele era suspeito de ter pago uma compra no comércio com uma nota falsa de US$ 20,00.
No Brasil, depois de várias manifestações em apoio ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido), pedindo intervenção militar, fechamento do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal (STF), esse recente monopólio antidemocrático começou a ser quebrado pelas torcidas de futebol. No dia 10, a “Gaviões da Fiel”, do Corinthians, saiu às ruas de São Paulo, quando uma manifestação bolsonarista que estava marcada acabou não ocorrendo. No dia 24, foi a vez das torcidas do Grêmio e do Internacional se uniram e colocaram bolsonaristas para correr nas ruas de Porto Alegre.
Foi o prelúdio do que aconteceu ontem (25). Na av. Paulista, os protestos em defesa da democracia uniram as torcidas do Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos. E dessa vez houve confronto com os bolsonaristas que pediam a reabertura do comércio fechado para combater a pandemia. A confusão teria começado por conta de bandeiras usadas por grupos neozanitas da Ucrânia entre os defensores do presidente, misturada com as bandeiras do Brasil, da República e do Império, dos EUA e de Israel. E, a partir dali, houve enfrentamento entre as torcidas pela democracia e a Polícia Militar (PM).
No domingo houve protestos também no Rio de Janeiro. Em Copacabana, a torcida rubro-negra Fla Antifa (antifacista) ficou frente a frente com quem protestava contra o Congresso, o STF e pediam o impeachment do governador Wilson Witzel (PSC). Entre os dois grupos, um PM foi flagrado dizendo ao deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ), investigado no “inquérito das fake news”, que tinha mandado queimar uma bandeira do grupo contrário ao presidente:
Nas Laranjeiras, bairro do Fluminense e do Palácio Guanabara, o grupo antirracista “Vidas Negras Importam” também realizou protesto contra a morte de negros pela Polícia, mas no Estado do Rio. Que foi reprimida pela PM, com um deles flagrado apontando um fuzil contra um jovem manifestante desarmado.
No domingo de Porto Alegre, as torcidas do Grêmio e Inter também voltaram a protestar em defesa da democracia. Assim como ocorreu em Belo Horizonte, com a união entre as torcidas do Cruzeiro, Atlético e América Mineiro, contra o governo federal. Em Brasília, que não tem grandes clubes de futebol, as manifestações continuaram dominadas pela pauta antidemocrática dos bolsonaristas. E contaram mais uma vez com a presença do presidente sem máscara de proteção para a Covid, desfilando a cavalo e depois sobrevoando seus apoiadores de helicóptero.
Foi no dia seguinte ao grupo bolsonarista “300 do Brasil” — pastiche do filme “300” (2006), de Zack Znyder — promover um protesto na noite de sábado (30) da capital federal, diante do STF. Lideradas pela blogueira Sara Winter, algumas dezenas de manifestantes usaram tochas, cobriram o rosto com máscaras (não as de proteção contra a Covid) e gritaram palavras de ordem. Além do filme de Hollywood, copiaram a estética das manifestações nazistas e da Ku-Klux-Klan, grupo supremacista branco dos EUA. Ex-prostituta e ex-feminista convertida em bolsonarista fanática, Sara já fez publicamente amaças físicas ao ministro Alexandre Moraes, que conduz no STF o “inquérito das fake news” que a investiga e pode gerar sua prisão,
Nos EUA, as manifestações se repetem diariamente desde a morte de George Floyd pelo policial branco, que foi preso e acusado de homicídio culposo (sem intenção de matar). E já se repetiram em 75 cidades, inclusive na capital federal Washington, bem próximas à Casa Branca. Seu atual inquilino, o presidente Donald Trump incendiou os ânimos no país ao postar no Twitter a frase de um chefe de política racista dos EUA nos anos 1960: “Quando os saques começam, começam os tiros”. Desde então, quatro pessoas já morreram.
Bolsonaro nunca fez segredo da sua admiração do Trump. Os dois são bastante criticados dentro dos seus países e no mundo pela maneira como lidaram com a Covid-19. Embora o primeiro tenha sido obrigado a rever seu negacionismo da doença, que o segundo parece disposto a manter, independente do Brasil já se aproximar dos 30 mil mortos pelo novo coronavírus. Ambos terão que lidar com a grave crise econômica advinda da paralisação das atividades industriais e comerciais no mundo, por conta da pandemia. Como já têm que lidar agora com as manifestações de rua contrárias aos seus governos. Que já ocorrem e, ironicamente, podem aumentar quando acabar o isolamento social ao qual os dois são contrários.
Trump tentará sua reeleição em 3 novembro. Se vencer, Bolsonaro manterá seu principal aliado internacional. Mas se o democrata Joe Biden se eleger presidente, o Brasil sob o bolsonarismo corre o risco de se tornar um pária internacional. Mais ou menos como já é considerado pela União Europeia e periga se tornar para a China, nossa maior parceira comercial e constantemente atacada nos delírios olavistas do governo brasileiro.
Ademais, a despeito do poder econômico crescente da China, os EUA ainda devem manter sua condição de “Império Romano” e caixa de ressonância do mundo por um bom tempo. A eleição de um moderado como Biden ao cargo mais importante da Terra poderia influenciar tanto a do Brasil em 2022, quanto a eleição de Trump em 2016 influenciou na de Bolsonaro em 2018. E a recíproca é verdadeira: se Trump se reeleger, seu imitador brasileiro teria mais chance de também fazê-lo.
Nos EUA, a luta contra o racismo e a violência policial é o que leva manifestantes, jovens em sua maioria, às ruas. Mas se continuar a enveredar por incêndios e saques, podem produzir efeito contrário nas urnas presidenciais de novembro. No Brasil, as torcidas organizadas de futebol têm até aqui liderado os protestos contra Bolsonaro. Tiveram a virtude de se unir, a despeito das cores dos seus clubes, pela democracia. E, em defesa dela, de quebrar o monopólio recente dos movimentos antidemocrático nas ruas brasileiras. Que deveriam estar vazias dos dois lados, para evitar a disseminação da pandemia da Covid.
Com passado de violência nos estádios, essas torcidas terão que tomar muito cuidado para não reincidirem nela, mesmo se provocados. Sobretudo se levado em conta que os “juízes” desse jogo das ruas serão os PMs, nicho social onde o presidente talvez conte com sua maior simpatia. Para representar a maioria da população brasileira que todas as pesquisas indicam não apoiar o governo federal, não se pode dar à minoria o motivo que esta parece buscar para lançar o Brasil na aventura de uma ruptura institucional. Quem quiser entrar em campo pela democracia, não pode marcar gol contra.