“Com isso, o que vai acontecer, quando as pessoas não defendem o isolamento? Não se fecha comércio, a economia não para, o governo não precisa colocar dinheiro na economia, as pessoas que vão morrer muitas são os idosos, aí tem a fala de ‘aí ia morrer mesmo’ ou as pessoas que já tem doença. E vão ficar os jovens e atletas. Então se a gente pegar pedaços da fala tem uma lógica intensa. Isso chama eugenia, lembre-se de que sistema político mundial usava isso”. Dr. Arnaldo Lichtenstein.
A entrevista do Diretor do Hospital das Clínicas da USP ao Jornal da Cultura, trouxe à tona novamente um termo que é velho conhecido dos biólogos evolutivos: Eugenia. A etimologia da palavra remete ao grego para “boa cepa” e consiste de um conjunto de práticas e conceitos destinados ao melhoramento genético da espécie humana. O termo foi cunhado por Francis Galton e remete à Inglaterra Vitoriana, no final do século XIX, quando avanços no conhecimento científico, aliados aos ideais de progresso da época, viram o florescimento de ideais eugenistas, com tentativas concretas de aplicar seus conceitos a políticas públicas oficiais para “melhorar” a espécie humana. Em sua definição de eugenia, Galton fala especificamente no “cultivo da raça” como faria um agricultor ou pecuarista. A história da Eugenia é complexa e tem muitas linhas do tempo e conexões. Vale a pena examinar algumas delas para entender como chegamos até aqui. Será que o descaso dos governantes com a saúde pode ser considerada uma política eugenista? O que a biologia evolutiva tem a dizer?
Eugenia e suas origens
A ideia de favorecer a reprodução de indivíduos considerados “superiores é baseada em uma premissa, chamada determinismo biológico, segundo a qual, pessoas têm capacidades e valores intrínsecos que surgem de diferenças herdadas e se propagam nas famílias. Esta premissa nos acompanha desde tempos remotos. Segundo o evolucionista Stephen Jay Gould, é possível remontar ao “A República” de Platão, onde um diálogo entre Sócrates e Glaucon sugere a criação de um mito (para garantir concordância das diferentes classes com o status quo), onde alguns homens teriam ouro misturado à sua composição. Estes deveriam ter posições de comando. Outros teriam prata na composição, sendo mais apropriados para posições auxiliares, enquanto um último grupo teria bronze em sua mistura, sendo melhor aproveitados em trabalhos manuais. Como disse Mário Quintana, “Tolice alguma nos ocorrerá, que não a tenha dito um sábio Grego outrora”.
Stephen Jay Gould, em seu livro “A Falsa Medida do Homem” (Editora Martins Fontes, 1999) faz uma crítica histórica à ciência por trás do determinismo biológico, onde os metais do mito de Platão são eventualmente substituídos por genes. Diferenças sociais, culturais e econômicas entre grupos humanos são exclusivamente atribuídas a diferenças herdáveis, organizando os indivíduos e grupos étnicos de acordo com critérios de valor estabelecidos pela elite da sociedade.
O racismo científico é um produto da necessidade dos colonizadores Europeus justificarem sua dominação sobre outros povos e sempre teve uma influência política maior que a científica. O livro de Gould mostra as tentativas ao longo da história de se atribuir valor aos indivíduos a partir de medições diretas e quantitativas que indicassem suas aptidões. Em um primeiro momento, grande peso se dava a medidas cranianas e corporais como preditivas da capacidade intelectual. Muita discussão teve lugar sobre comparações entre tamanhos de cérebros ou de partes do cérebro como indicadores de inteligência, as quais foram dando lugar a testes de inteligência, mas que nunca conseguiram atingir seu objetivo proposto por basear-se em premissas falsas, fraudes ou raciocínio motivado.
O Reverendo Thomas Malthus escreveu um ensaio no século XIX, argumentando que o crescimento populacional tenderia a extrapolar a capacidade de produção de alimentos (capacidade de suporte). O Reverendo enxergava aí um plano divino imposto com propósito de ensinar comportamentos virtuosos (ele conectava virtude e riqueza). Por isso, qualquer tentativa de melhorar o bem estar das classes mais pobres (com programas de assistência e caridade) estaria indo contra o plano divino. A parte populacional do ensaio de Malthus foi grande influência tanto para Charles Darwin quanto para Alfred Russel Wallace no desenvolvimento independente de suas hipóteses evolutivas de seleção natural. Uma vez que o conceito de seleção natural foi sendo popularizado, diferentes interpretações, nem sempre fiéis à ideia original foram sendo propostas.
Herbert Spencer propôs a simplificação conceitual da seleção natural como “sobrevivência dos mais aptos”, trazendo as ideias de Malthus para um contexto científico. Existe grande semelhança entre a visão de Spencer e as políticas econômicas liberais atuais. Assim como Malthus, Spencer também condenava as políticas assistencialistas como uma pedra no caminho do aperfeiçoamento da humanidade. Esta visão ficou conhecida como “Darwinismo social” e foi uma influência importante nas ideias eugenistas. Apesar do nome, no entanto, não correspondia a nenhuma proposta de Darwin, que considerava que a cooperação e a empatia entre indivíduos foi mais importante que a competição na evolução da capacidade intelectual humana. Que fique claro, Charles Darwin era um produto do seu tempo. Era progressista em diversas frentes e veementemente contra a escravidão, mas tomava como certa a superioridade Europeia sobre as demais culturas.
O trabalho de Francis Galton que cunhou o termo eugenia foi o livro Inquiries into human faculty and its development, cuja primeira edição foi publicada em 1883. Lida no contexto atual, a obra parece uma coleção de temas aleatórios (com algumas bizarrices), reunindo capítulos sobre a possibilidade de intervenção teocrática, uma investigação estatística da eficácia das orações, a domesticação de animais e uma associação entre criminalidade e insanidade. Galton acendeu um debate sobre o papel da herança x ambiente (nature and nurture) na determinação das capacidades humanas, convencido que estava do papel da hereditariedade. Os ideais eugênicos foram então popularizados na Inglaterra. Ali eram advogadas políticas da chamada “eugenia positiva”, que propunha principalmente encorajar a reprodução de indivíduos detentores de características desejáveis.
Eugenia nos Estados Unidos: testes de inteligência, racismo e imigração
O movimento eugênico ganhou uma versão mais sinistra nos Estados Unidos. Eugenistas Americanos no início do século XX eram motivados por ideais utópicos similares aos dos Britânicos, mas com propostas também de “eugenia negativa”, onde a esterilização ou institucionalização de indivíduos considerados incapazes (os “débeis mentais”) chegou a ser realizada.
No início do século XX, as medições cranianas começaram a ser abandonadas como método de inferir as capacidades intelectuais. Um psicólogo Francês (Alfred Binet) reparou em seus estudos, que as medidas craniométricas não conseguiam predizer o desempenho acadêmico de alunos, avaliados pelos seus professores. Binet então resolve tentar um enfoque mais “psicológico”, a partir da literatura sobre testes mentais. Ele recebe uma incumbência do Governo Francês para desenvolver um teste que permitisse identificar alunos que necessitariam de uma educação especial, mais individualizada. O teste proposto por Binet envolvia uma série de tarefas e questões relacionadas a problemas do dia-a-dia (compreensão, invenção, ordenação). A escala de medição proposta por Binet continha idades mínimas em que uma criança deveria ser capaz de realizar determinadas tarefas. O resultado era uma medição da “idade mental”. Mais adiante, o psicólogo Alemão W. Stern propôs divididir a idade mental pela idade cronológica o que ficou conhecido como quociente de inteligência (QI).
Binet tinha um propósito prático ao desenvolver sua escala, apenas identificar crianças com dificuldade de aprendizado para receber mais ajuda. No entanto, os testes de QI acabaram assumindo um caráter bastante diverso quando foram importados para os Estados Unidos. Carl Zimmer descreve este episódio em seu excelente livro “She has her mother’s laugh“. Os testes de QI foram levados para os Estados Unidos pelo psicólogo Henry H. Goddard, que trabalhava em uma escola (Vineland) para crianças com dificuldades de aprendizado. Goddard começa a aplicar os testes de QI nos alunos de Vineland e cria uma escala de ordenação dos indivíduos considerados oligofrênicos (com pequeno desenvolvimento mental, segundo definição da época) que leva em consideração a idade mental e o QI. Na Figura abaixo temos a reprodução de um livro que utiliza a escala, mostrando a nomenclatura (idiotas, imbecis, débeis mentais) que acabou saindo da literatura técnica para ganhar as ruas como xingamentos.
Goddard fica empolgado com os resultados dos testes, que parecem gerar uma classificação objetiva de algo que era percebido subjetivamente por ele e por outros professores. Ele começa a se interessar sobre o histórico familiar dos alunos e chega à conclusão de que pelo menos dois terços dos oligofrênicos teriam herdado a condição de algum parente. Um projeto colaborativo entre Goddard e Charles Davenport, diretor do Cold Spring Harbor Laboratory e fundador do Eugenics Record Office, lançou um olhar mais técnico ao problema da hereditariedade da oligofrenia. Goddard treina um número de técnicos de campo para colher informações sobre as famílias dos alunos de Vineland, buscando reconstruir os históricos genéticos da debilidade mental. A redescoberta e ampla aceitação da genética Mendeliana trouxe ainda um maior entusiasmo aos estudos de Goddard, já que ele ficou com a impressão que os padrões de herança da oligofrenia pareciam se encaixar bem com a expectativa Mendeliana para uma herança simples, determinada por um ou poucos genes. Se este padrão genético fosse real, os planos da eugenia para melhoramento genético da população humana teriam grande chance de êxito.
Uma aluna e sua família chamaram especialmente a atenção de Goddard. Emma Wolverton havia sido internada em Vineland nove anos antes da chegada de Goddard. Diferente da maioria dos alunos na instituição, Emma não era incapacitada. A internação da menina havia sido realizada por causa de problemas familiares, com uma história “inventada” para acobertar o fato de que ela não se encaixava no perfil geral dos estudantes de Vineland. A maior parte dos alunos realizava trabalhos (sem receber nenhum pagamento) na escola, produzindo grande quantidade de roupas, sapatos e alimentos na fazenda da escola. Nunca foi chamado à atenção da administração da escola o paradoxo que era o fato destes alunos que deveriam ser um peso para a sociedade, na verdade serem tão produtivos. Nem ninguém ficava com peso na consciência por se apropriar dos frutos do trabalho destes alunos. Considerava-se que, deixados em liberdade fora da escola, estes alunos tenderiam à depravação, à imoralidade e ao crime.
Ao realizar os testes de QI em Emma, Goddard chegou à conclusão de que ela seria realmente débil mental (do inglês moron), apesar de aparentemente muito funcional. Uma das assistentes de campo de Goddard (Elizabeth Kite) chegou com grande quantidade de informações sobre a família de Emma, após conversar com um número de pessoas e realizar uma série de visitas às casas de parentes. Estes testemunhos permitiram a Kite traçar a origem de 480 pessoas da família Wolverton a um único ancestral (John Wolverton) que teria dois ramos principais. Em um dos ramos da família, fruto de um relacionamento fora do matrimônio entre John e uma moça débil mental, Kite encontrou evidências de debilidade mental em 143 descendentes (sem contar os 36 ilegítimos, 33 imorais, 24 bêbados, 3 epiléticos, 3 criminosos e 8 adúlteros), incluindo Emma (veja heredograma abaixo). No ramo “oficial” da família, todos os descendentes eram pessoas respeitáveis, como médicos, negociantes e advogados.
A evidência parecia se encaixar muito bem nas ideias pré-concebidas de Goddard, convencendo-o de que os Estados Unidos estavam em uma crise de debilidade mental hereditária e que a solução para isso eram medidas eugenistas, já encorajadas por Davenport. Goddard não via grandes problemas nos idiotas e imbecis, já que estes geralmente viviam suas vidas sem se reproduzir. Seu problema eram os indivíduos “fronteiriços”, que conseguiam funcionar na sociedade e estabelecer linhagens que perpetuavam suas características indesejáveis. Para tentar convencer a opinião pública da importância das medidas eugenistas, Goddard começa então a escrever um livro para ilustrar a necessidade de controlar a reprodução dos débeis mentais.
Várias famílias foram utilizadas como exemplos por eugenistas, como argumento da herança de comportamentos e faculdades mentais (os Jukes, os Nam, os Zero). Ele escolhe como exemplo a família Wolverton, mas modifica os nomes para proteger sua identidade, de modo que Emma Wolverton é identificada como Deborah Kallikak (mas fotos de todos foram publicadas). O nome era uma combinação de palavras gregas para bom (kalos) e ruim (kakos). O patriarca da família foi chamado Martin Kallikak e o livro publicado em 1912 (The Kallikak family).
Goddard considera que os heredogramas mostram um padrão de herança Mendeliana, dando um “ar” científico a preconceitos antigos na sociedade Americana, como a conexão entre a debilidade mental e o pecado. Afinal de contas, a origem dos comportamentos reprováveis da família Kallikak teria sido o relacionamento do patriarca fora do casamento. O livro transformou-se em um “best seller”, trazendo fama para Goddard e para os testes de QI, que passaram a ser adotados em grande parte do sistema escolar Norte Americano.
Os relatórios de Elizabeth Kite sobre a família Wolverton acabaram se revelando falsos. Grande parte das informações foram baseadas em relatos de pessoas que apenas tinham ouvido falar dos eventos, gerando uma corrente de desinformação, tipo “telefone sem fio” e confundindo os fatos (primos confundidos com filhos, por exemplo). Acontece que o lado alegadamente ruim da família não era formado por indivíduos reprováveis, mas por uma grande quantidade de pessoas com profissões consideradas respeitáveis, o que ficou claro após uma análise genealógica dos Wolverton realizada nos anos de 1980. No entanto, antes mesmo dos fatos errados virem à tona, era possível encontrar sérias falhas na argumentação de Goddard.
Uma boa parte desta oposição vinha exatamente dos geneticistas, que durante décadas mostraram que os resultados dos estudos eugenistas não tinham sustentação científica. Thomas Hunt Morgan, um dos principais geneticistas Mendelianos da época (também da história), não se convenceu de que os heredogramas da família Kallikak mostravam um padrão de herança simples. Em primeiro lugar, uma característica tão complexa e difícil de conceituar como a inteligência provavelmente seria determinada por um grande número de genes e pelo ambiente. Ao ignorar completamente o papel do ambiente, colocando toda a responsabilidade do comportamento humano na genética, as conclusões de Goddard não eram derivadas diretamente das observações, mas de um raciocínio motivado.
O eventual descrédito das ideias de Goddard não impediu que a fama da família Kallikak se mantivesse por muitas décadas, participando de livros texto de psicologia e do imaginário popular. O livro “Biologia Educacional” que foi publicado no Brasil entre 1939 e 1969 (será tratado adiante) mostra os Kallikak como exemplo da hereditariedade de comportamentos indesejáveis e problemas mentais. Por incrível que pareça, todo o desenvolvimento das ideias eugenistas no século XX seguiu muito mais as mudanças políticas e sociais que qualquer avanço científico.
A reputação de Goddard fez com que o Departamento de Saúde Pública entrasse em contato, com o propósito de testar imigrantes que chegavam na Ilha de Ellis vindos da Europa (mais de 12 milhões entre 1890 e 1910). Uma lei de 1907 impedia a imigração de pessoas com defeitos físicos e mentais, obrigando os médicos que realizavam inspeções de saúde nos imigrantes a também verificarem problemas mentais. Goddard tentou adaptar seu teste para a realização por imigrantes que não falavam inglês, mas não ficou muito convencido da sua eficácia. De qualquer maneira, os testes foram realizados a partir de 1912 e sua análise mostrou que, pela sua escala, mais de 80% dos imigrantes vindos da Europa seriam débeis mentais. Talvez as figuras estivessem um pouco altas, mas de qualquer maneira, Goddard atestava que os Estados Unidos estavam recebendo o que havia de pior nos países de origem. Estes resultados foram amplamente apropriados por grupos anti-imigração.
Testes de inteligência foram também utilizados em um mega estudo no exército Americano, onde 1,7 milhão de soldados foram testados, gerando um grande banco de dados, que foi examinado em detalhe pelo psicólogo Robert Yerkes. Segundo os padrões de Goddard, 47% dos soldados brancos e 89% dos soldados pretos eram débeis mentais e a idade mental média dos soldados Americanos seria 13 anos. A interpretação do conjunto de dados do exército se reuniu à dos testes feitos nos imigrantes e a conclusão dos eugenistas foi que a incapacidade intelectual do povo Americano (representado pelos recrutas do exército) era resultado da mistura racial entre o estoque original de imigrantes Europeus fundadores com os povos Africanos e Europeus do sul e do leste.
A Figura acima mostra uma parte do teste Beta que foi aplicado aos recrutas analfabetos do exército Americano. É um bom exemplo de como as tendências raciais e de classe contaminaram os testes. Os recrutas tinham que desenhar partes que faltavam, mas apesar de alguns items parecerem óbvios, como olhos e orelhas, outros como filamentos nas lâmpadas, rebites no canivete e a almofada de pó (Item 19) não seriam. Segundo Gould, os seus alunos em Harvard tiveram muita dificuldade com o item 18 (Gramofone) onde falta um bocal em forma de cone. Outras diferenças culturais não eram levadas em consideração. Franz Boas, um crítico da eugenia, comenta que um recruta da Sicília (sul da Itália) desenhou uma cruz na casa (Item 5), que ele considerou que era mais importante que a chaminé. Os testes eram aplicados em um ambiente inadequado, com tempo contado e um protocolo rígido, o que certamente deveria assustar muito os recrutas, especialmente os de menor escolaridade ou provenientes de localidades rurais, como era a maioria dos recrutas pretos. Outras disparidades exacerbadas era o fato de em três das sete partes dos testes Beta, era exigido conhecimento de números. Além disso, todo o teste exigia o uso de lápis, objeto que alguns recrutas nunca tinham nem visto anteriormente.
Correlações dos escores dos testes em indicadores sociais, de saúde e escolaridade explicariam bem as diferenças observadas entre os diferentes grupos étnicos, mas as interpretações de Yerkes sempre procuravam ajustar as observações aos seus preconceitos. Por exemplo, ele notava uma escolaridade muito menor nos recrutas pretos que nos brancos, o que foi interpretado como resultado do menor nível de inteligência e um consequente desinteresse pelo aprendizado. Nenhuma menção à segregação racial, as péssimas condições das escolas dos pretos e as condições econômicas desfavoráveis. Outra correlação importante foi o aumento nos escores dos testes com o tempo de residência dos imigrantes nos Estados Unidos. Em vez de interpretar este resultado como evidência de que a familiaridade com a cultura seria importante (o que de certa forma invalidaria o propósito dos testes), Yerkes o considerou evidência de que haveria uma “seleção” e apenas os imigrantes mais inteligentes permaneceriam no país. Os testes mentais do exército mostraram uma clara figura de profunda injustiça social que poderia fomentar reformas importantes, mas infelizmente não foi o caminho escolhido.
A reunião dos testes de inteligência de Goddard nos imigrantes e de Yerkes nos recrutas formou uma grande base de argumentos eugenistas que deu suporte ao estabelecimento de políticas governamentais racistas com propósito de evitar a deterioração intelectual das sociedades. Existe alguma discussão sobre o papel, direto ou indireto, que os resultados dos testes de inteligência tiveram nas discussões que levaram ao ato de imigração de 1924, onde o Congresso Americano determinou limites à entrada de imigrantes de determinados países. Um dos resultados das cotas de imigração foi a negação de entrada de uma grande quantidade de Judeus que tentaram fugir da Europa durante a escalada do nazismo nos anos 1930 e 1940. Como dito por Gould “os caminhos da destruição às vezes são indiretos, mas ideias podem ser agentes tão letais quanto armas e bombas” (A falsa medida do homem, pag 244). A lei foi modificada em 1965, mas ecoa até hoje nas políticas anti-imigração Americanas. e na retórica de seus líderes como Trump, que gostaria de ter mais imigrantes da Noruega e menos da Nigéria.
Eugenia no Brasil: miscigenação e higiene
As ideias eugenistas tomaram força em diferentes países, baseadas na efervescência racista Americana e Européia do início do século XX. No Brasil, ideias eugenistas foram adaptadas à realidade do país, com algumas diferenças importantes da eugenia Americana e Européia. A eugenia à brasileira na primeira metade do século XX é descrita e analisada em detalhe no capítulo de Nancy Leys Stepan no livro editado por Mark Adams (1990 – The wellborn science: eugenics in Germany, France, Brazil, and Russia) e em seu livro traduzido “A Hora da Eugenia: raça, gênero e nação na América Latina”. Outras fontes de informação mais recentes são a série de artigos publicados na Super Interessante este ano aqui e aqui.
O histórico do Brasil como nação era muito diferente dos países Europeus. Séculos de escravidão e movimentos em massa de populações Africanas para o Brasil resultaram em uma mistura genética, em grande parte forçada pela elite branca dominante. A escravidão havia sido abolida há 30 anos e a grande massa de indivíduos libertos foi abandonada à própria sorte, sem compensação ou educação, em um país que passava por um processo de urbanização e sendo desfavorecidos na competição por empregos com os mais de 1,5 milhão de imigrantes vindos da Europa neste período. O resultado foi uma turbulência social e a resposta das elites foi grandemente influenciada pela eugenia.
A mistura genética era bem maior no Brasil que nos países da Europa e mesmo na América do Norte. Os eugenistas do hemisfério norte, como vimos anteriormente, não viam com bons olhos esta miscigenação, dizendo que era responsável, junto com o clima tropical, pela degeneração intelectual e física do povo Brasileiro (uma população disgênica), criando um “complexo de vira-lata” que nos acompanha até hoje. A pópria palavra vira-lata é pejorativa e eugenista em relação a cães e gatos sem raça definida, como se sua condição desfavorecida fosse causada pela mistura de raças. A mistura genética era um fato consumado, o que na visão dos eugenistas tornava a aplicação de políticas públicas para melhora da raça ainda mais urgentes. Apesar de uma versão oficial e mitológica de tolerância e igualdade racial (somos um povo só?), é possível vislumbrar ao longo de toda a história como as inequalidades sociais e econômicas se misturam com as diferenças fenotípicas e de ancestralidade entre grupos de indivíduos. Estas injustiças foram em grande parte naturalizadas ao longo do século XX por conta da eugenia.
A ciência no Brasil no início do século XX era mais influenciada pela França que pela Grã-Bretanha ou América do Norte. Pouco conhecimento sobre biologia era produzido aqui e a pesquisa, quando existente, era realizada em escolas de medicina ou agrícolas. A Sociedade Eugênica de São Paulo, fundada pelo médico Renato Ferraz Kehl em 1918, foi a primeira organização oficial na América do Sul, e copiou exatamente o modelo e estatuto da Sociedade Eugênica Francesa. A eugenia no Brasil foi abraçada por médicos e sanitaristas, como inspiradora de políticas públicas em saúde. Por este motivo, a eugenia por aqui era considerada mais abrangente que na Europa e nos EUA, incluindo questões sobre higiene e saneamento (“sanear é eugenizar”) que não eram consideradas centrais para a Eugenia na Europa. Como não podiam fazer muito em relação à mistura genética, os eugenistas Brasileiros enxergavam a melhora do ambiente como alternativa para aumentar a força de trabalho.
A confiança dos eugenistas Brasileiros no papel do ambiente derivava de sua própria visão sobre o processo evolutivo. O início do século XX encontra-se dentro de um período histórico (do ponto de vista da biologia evolutiva) conhecido como “eclipse de Darwin“, em que a evolução das espécies era reconhecida como fato, mas o processo de seleção natural não era bem aceito entre naturalistas. Uma das principais alternativas às ideias de Darwin (favorecida na França e popular entre médicos) era o Lamarckismo, ou neo-Lamarckismo, que enfatizava a herança de caracteres adquiridos e o meio ambiente como motivador da mudança evolutiva. Diferente da seleção natural, que colocava o ambiente apenas como selecionador, sendo pouco relevante para a origem das diferenças entre os indivíduos. Uma hipótese neo-Lamarckista aceita pelos eugenistas era a “blastoftoria”, segundo a qual, as células germinativas seriam degeneradas por substâncias tóxicas (álcool, por exemplo) ou doenças, causando problemas por gerações.
A genética Mendeliana e a teoria do plasma germinativo de Weissmann (separação entre células do corpo e gametas) vão modificando o entendimento sobre herança, mas o processo foi lento e gradual. Ainda era possível nos anos 1940 encontrar naturalistas que aceitavam amplamente o neo-Lamarckismo. Uma parte dos escritos da época mostra como os eugenistas misturavam a genética Mendeliana com a herança de caracteres adquiridos como se fossem compatíveis. É possível que essa mistura se originasse no raciocínio motivado. Os resultados da genética Mendeliana, como discutido acima, se opunham às práticas e ideais eugenistas. Era, portanto, necessário manter a possibilidade de mudanças na composição genética da população a partir da melhora do ambiente.
Apesar da maior parte do movimento eugenista Brasileiro favorecer uma versão positiva (estimular a reprodução de indivíduos desejáveis), junto com a melhora do ambiente (saneamento), alguns participantes chegaram a clamar pela esterilização dos desajustados. Este discurso, no entanto, encontrava pouca ressonância junto à classe médica que em geral se opunha a qualquer argumento pela esterilização. Mais populares foram as propostas de exames médicos pré-nupciais obrigatórios para garantir que os indivíduos se casando seriam saudáveis e fecundos. Afinal, havia a percepção de que o Brasil precisava de mais gente. Era importante encorajar a reprodução dos “superiores”.
O movimento eugenista no Brasil era estruturado pela miscigenação e a ansiedade racial do país. Se por um lado parecia focar em problemas relacionados a classes sociais menos favorecidas, não era possível dissociar classe e cor da pele. As classes menos favorecidas e os portadores de comportamentos ou características “indesejáveis” eram em grande parte pretos ou pardos. O discurso eugenista em público utilizava a palavra “raça” para se referir ao povo Brasileiro, mas secretamente estava falando dos pretos.
Se por um lado, a mistura dos povos que compunham o povo Brasileiro era vista como degenerativa, havia a expectativa de que o grupo étnico Europeu por ser superior, tenderia a prevalecer naturalmente sobre as demais, fazendo com que a contribuição genética das populações indígenas e Africanas desaparecesse. Neste caso, bastaria manter as medidas eugenistas associadas ao saneamento, incentivando a reprodução dos “melhores”. A imigração de povos considerados superiores tenderia a acelerar este processo (como um bônus). Esta hipótese ficou conhecida como “tese do branqueamento”, se popularizou e moldou o movimento eugenista por grande parte do século XX (popular ainda hoje, veja comentários do atual vice-presidente).
Stepan identifica este mito do branqueamento com a ideologia extra-oficial da elite Brasileira, sendo responsável por mecanismos estruturais dificultando a mobilidade social de pretos e pardos, assim como as formas de repressão oficiais, com a polícia mantendo este grupo sob controle. A autora fala dos anos entre 1920 e 1930, mas soa altamente contemporâneo.
Uma vez que a genética Mendeliana começa a ganhar força no Brasil, uma divisão ideológica começa a ficar clara entre os eugenistas. Enquanto os Mendelianos, alguns influenciados por Franz Boas, advogam uma eugenia menos racialista e mais positiva (mas ainda confiando no poder do “branqueamento”), os neo-Lamarckistas começam a tender mais para uma eugenia negativa e racialista. Influências importantes desta eugenia negativa no período dos anos 1930 foram os eugenistas Americanos e Alemães, assim como os movimentos políticos antidemocráticos, como o Integralismo.
Os eugenistas tiveram uma considerável influência política e conseguiram uma série de vitórias em termos de políticas de eugenia positivas, principalmente as ligadas à corrente de saneamento (puericultura, limitação de trabalho infantil, com pouco efeito prático). A constituição de 1934 incorporou a “promoção da educação eugênica” como responsabilidade do estado (cujo efeito examino adiante). Leis de imigração também foram influenciadas pelos ideais eugenistas.
Eventualmente, a escalada do nazismo na Europa, e as práticas eugenistas aplicadas na Alemanha reduziram o ímpeto eugenista em todo o mundo, incluindo o Brasil. O livro de Goddard sobre a família Kallikak foi um sucesso na Alemanha, sendo inclusive usado como exemplo no filme de propaganda nazista Das Erbe (A Herança), de 1935, que promovia medidas eugenistas. Hitler inclusive toma emprestada a linguagem dos eugenistas Americanos ao escrever seu livro Mein Kampf. O mundo teve a oportunidade de ver ali o resultado da eugenia levada ao extremo como política governamental. As práticas eugenistas levaram ao Holocausto e acabaram indelevelmente associadas ao horror do nazismo. Apesar de ser um ponto de virada para a face pública do movimento eugenista, o final da segunda grande guerra não decretou o fim da eugenia. Muito pelo contrário, como avisado pelo Dr. Lichtenstein em sua entrevista para o Jornal da Cultura, ela continua ativa e enraizada no pensamento e instituições, mesmo que de maneira subjetiva ou menos pública.
Biologia Educacional e a educação eugênica
Nancy Stepan menciona que a promoção da “educação eugênica” como responsabilidade do estado na constituição de 1934 teve pouco efeito prático em um país com um grande número de analfabetos (talvez 90% da população). No entanto, é preciso considerar que a massa da população não era necessariamente alvo da educação eugênica, mas os professores e profissionais de saúde que estariam lidando com essa população, como que moldando essa massa amorfa em uma população ideal com valores padronizados de acordo com o que a sociedade Brasileira determinava como desejáveis.
O livro Biologia Educacional, escrito pelo médico Antônio Ferreira de Almeida Junior, foi publicado pela primeira vez em 1939 e permaneceu sendo impresso até 1969. O livro era usado como livro texto para treinamento de professoras (a grande maioria eram mulheres) do curso normal, com um foco particular naquelas que iriam ter a missão de educar as pessoas de regiões rurais, promovendo o saneamento e práticas eugênicas. O livro divide a biologia educacional em duas partes: fundamentos e aplicação. Na parte de aplicação, os tópicos são eugenia e eutenia (higiene).
Almeida Junior define biologia educacional como “o estudo das causas biológicas que determinam as diferenças e as variações individuais na espécie humana, e dos meios com que o educador pode atuar sôbre essas causas, a fim de atingir, para o indivíduo, o máximo de saúde e de eficiência, quer física, quer mental“. É possível perceber que o autor incorpora a ideia de determinismo biológico, no sentido de que os indivíduos terão diferentes capacidades, mas que o papel do educador é ajudá-los a atingir um máximo de saúde e eficiência de trabalho dentro de suas limitações.
O autor inclui discussões sobre os testes de inteligência do exército Americano e suas interpretações racistas. É preciso ressaltar que ele coloca opiniões divergentes sobre a interpretação dos testes e das diferenças de inteligência entre grupos étnicos. No entanto, parece sempre deixar uma conclusão em suspenso, como se fossem necessários mais estudos, não uma revisão das premissas dos trabalhos. Nenhum estudo que identificou os brancos como superiores aos demais levou em consideração a correlação com fatores ambientais, sociais e a tendência cultural dos testes sendo aplicados.
No capítulo sobre eugenia, Almeida Junior identifica fatores sociais disgênicos (que atrapalham a causa eugenista), como filantropia (leia-se políticas assistenciais), guerra, urbanismo, trabalho infantil e imigração. A discussão sobre filantropia é paradoxal e exemplo dos malabarismos que os eugenistas às vezes tinham que fazer. Se por um lado as políticas assistenciais estariam favorecendo indivíduos inferiores, removê-las seria retornar à barbárie. Ele sugere estender a assistência também aos indivíduos eugênicos, mas tomando cuidado de impedir a reprodução dos “débeis mentais”.
O autor ainda argumenta que o trabalho infantil é mais comum nas famílias menos inteligentes (não mais necessitadas), que enxergam nos filhos uma fonte de renda, contribuindo, portanto, para “aumentar a natalidade dos elementos inferiores”.
O urbanismo é também apontado como fator disgênico, pois os indivíduos de maior inteligência teriam migrado para as cidades, onde teriam menor taxa de natalidade (segundo dados dos EUA). Os elementos inferiores teriam ficado nas zonas rurais e se reproduzido mais, com efeito disgênico. O autor até reconhece o papel do ambiente desfavorável para explicar esta “inferioridade intelectual” da zona rural, mas novamente deixa a questão em aberto.
Por fim, considerando a imigração, o autor argumenta que a mistura de diferentes povos por si só não é prejudicial, mas que era “importante indagar a qualidade das raças que nos procuram“. Diz ainda que dentre os imigrantes que vinham para o Brasil, “nenhum parece inferior à média da nossa população“, listando em seguida os países Europeus de sua procedência, junto com o Japão. Ao considerar se o Brasil realmente teria um problema de eugenia, Almeida Junior coloca que “se levarmos em conta os estudos biológicos e sociais, podemos receber de ânimo alegre e com justificado otimismo os gens que da Europa nos trouxeram os descobridores e colonizadores do Brasil” e que a miscigenação não teve um efeito degenerativo na população. Estas colocações ecoam a “tese de branqueamento” mencionada anteriomente, concluindo que a eugenia era um problema secundário no Brasil, e que era mais importante se preocupar com a higiene e a educação.
Não há dúvida que o pensamento eugenista ficou marcado no imaginário popular e nas coisas que achamos naturais. Mês passado (maio de 2020), escutei no rádio um locutor comentando os problemas familiares de um famoso jogador de futebol Brasileiro com a frase “minha vó já dizia: quem nasce para dez réis nunca chega a vintém”. Determinismo biológico em sua forma pura. Ao discutir eugenia com meus alunos na UENF, não era raro algum descobrir que algumas frases comumente repetidas nas suas famílias eram de cunho eugenista, como: “pobres têm filhos demais”, “bandido bom é bandido morto”. Os ideais de meritocracia associados a políticas liberais e de “estado mínimo” são também eugênicos, pois falham em considerar que medidas de mérito não levam em consideração a desigualdade do ambiente formativo dos indivíduos. Exemplos do tipo “mas fulano nasceu na favela e venceu na vida” não são relevantes neste contexto, pois não são estatisticamente representativos da realidade da população.
Considerando o que discutimos antes sobre a impossibilidade de separar classes sociais e cor da pele no Brasil, qualquer medida ou fator estrutural das instituições que dificulte a mobilidade social ou aumente a mortalidade de pessoas de classe menos favorecida, inevitavelmente atingirá uma maioria de pessoas pretas. O que nos leva à discussão final sobre o posicionamento do governo durante a pandemia e à indignação do Dr. Lichtenstein.
Eugenia e a pandemia
As estratégias governamentais de diferentes países ao lidar com a pandemia de Covid-19 caem em um contínuo de níveis de restrição da movimentação de pessoas e ajuda financeira à população impossibilitada de trabalhar. Se por um lado, alguns países realmente se fecharam e deram condições às pessoas de ficar em casa, por outro lado, encontramos exemplos de pouco fechamento e uma tentativa de manter a economia funcionando. Em um primeiro momento, líderes de países que queriam manter a “normalidade”, apelaram para um conceito de “imunidade de rebanho” (herd immunity).
O Diretor Executivo do Programa de Emergências Sanitárias da OMS, Dr. Michael Ryan, fez em maio de 2020, uma condenação clara do conceito de imunidade do rebanho como prática eugenista, apesar de não ter utilizado o termo diretamente. Quando falamos em rebanhos de animais que precisam ser imunizados em relação a um certo patógeno, alcançar a imunidade de rebanho quer dizer que após chegar a um certo percentual de indivíduos imunizados na população, a minoria que não pode ser imunizada ainda estaria protegida. Podemos chegar ali por vacinação ou pela mortalidade de indivíduos suscetíveis. Como não temos ainda vacinas disponíveis para a Covid-19, a única alternativa seria aceitar a mortalidade dos mais suscetíveis. É possível perceber aqui por que é inaceitável falar em imunidade de rebanho em populações humanas fora do contexto da vacinação. O pecuarista não vislumbra indivíduos em um rebanho de animais. O rebanho tem um valor coletivo, facilmente traduzido em dinheiro. No entanto, cada ser humano é único e tem um valor que não pode ser medido objetivamente.
Voltamos então às colocações de S. J. Gould sobre a futilidade (ou má intenção) de tentar medir o valor dos humanos a partir de suas capacidades intelectuais, e como as práticas eugenistas emulando um melhoramento genético animal são inaceitáveis, mesmo quando tentando se disfarçar de outra coisa.
A estratégia da Suécia de não restringir a movimentação de pessoas teve resultados ruins, principalmente para os idosos que vivem em asilos e os imigrantes mais pobres (como a comunidade Somali). O isolamento vertical sendo insistentemente proposto pelo Governo Brasileiro é baseado no mesmo princípio, tendo efeitos similares, com maior mortalidade entre as classes desfavorecidas, em sua maioria de cor preta. Este não é um fenômeno novo no Brasil (na verdade, no mundo) e segue um padrão parecido ao de outras epidemias, inclusive a de violência. A tese do “branqueamento” explicaria a tolerância social com este fenômeno.
Em termos de políticas públicas, aceitar que uma parte da população seja dispensável para evitar prejuízos econômicos é uma ideia definitivamente eugenista. Isso fica ainda mais evidente quando a tal parcela dispensável é formada por uma classe de indivíduos “indesejáveis” na visão da sociedade, seja por não ter a cor de pele certa ou ser considerado um peso para o sistema de assistência (saúde, aposentadoria). Os princípios da biologia educacional de Almeida Junior continuam vivos e fortes na sociedade.
Diversidade contra a padronização eugenista
O conceito de diversidade é importante em todos os níveis de organização biológica. Darwin argumentou que a variabilidade entre indivíduos é o motor fundamental do processo evolutivo. Sem variação não há como haver seleção. A diversidade genética pode predizer a resiliência de populações a longo prazo. O episódio conhecido como a “grande fome da Irlanda“, ocorrido entre 1845 e 1849 é um exemplo disso. A Irlanda dependia em grande parte da cultura das batatas e uma única variedade era cultivada (a lumper), e propagada vegetativamente. Quer dizer que as plantas eram quase todas clones geneticamente idênticos. A chegada de uma praga (fungo), provavelmente vindo da América do Norte devastou as plantações de batata e causou grandes perdas humanas. Aproximadamente um milhão de pessoas morreram de fome, enquanto outros dois milhões conseguiram emigrar para os Estados Unidos. A genética da resistência ao fungo foi encontrada eventualmente em cultivos de batata dos Andes, na América do Sul, que era a região de origem das batatas, levando a FAO a promover tratados de preservação da biodiversidade agrícola. Promover uma única variedade tentando “melhorar” uma espécie por conta de características desejáveis em um ambiente pode levar a um “beco sem saída” evolutivo. É impossível prever que tipos de desafios a evolução vai colocar no nosso caminho. Foi uma má ideia para as batatas. É uma péssima ideia para populações humanas.
A diversidade é importante também nas comunidades formadas por muitas espécies. Grande parte dos chamados serviços ambientais dependem da co-existência de muitas espécies em um mesmo ecossistema. Por esse motivo, os ecólogos reforçam tanto a importância de conservar a biodiversidade. Isto é verdade mesmo que o ecossistema em questão seja o intestino de um ser humano. A diversidade de microorganismos que habitam nosso corpo é muito relevante para a manutenção da saúde. A diversidade também é considerada importante quando falamos de grupos humanos. A empresa de consultoria McKinsey examinou dados de 366 empresas nas Américas e no Reino Unido, mostrando que a maior diversidade humana dentro das empresas (étnica e de gênero) estava associada com desempenho financeiro acima da média. O relatório Diversity Matters mostra ainda que no Brasil, 91% das empresas têm um corpo administrativo que não reflete a composição demográfica da população.
A Sociedade para Estudo da Evolução decidiu, após discussão com seus membros, renomear um dos seus prêmios mais importantes, que era chamado até 2020 R. A. Fisher Prize. Se por um lado, a contribuição de Ronald Fisher para a genética, evolução e a estatística foram enormes, sua biografia é manchada pelo seu apoio à eugenia, que causou dano a um grande número de pessoas e não tinha suporte científico. Todos temos estátuas para derrubar. Longe dos antigos conceitos de “Darwinismo social” e determinismo biológico, a biologia evolutiva moderna mostra que a diversidade em todos os níveis de organização é característica de indivíduos, populações, ecossistemas e sociedades com maior resiliência e capacidade de se ajustar a diferentes situações. As ideias eugenistas são persistentes, mas devem ser expostas e removidas do consciente e do inconsciente coletivo. Essa resistência e a luta pela manutenção e aumento da diversidade (biológica, étnica, cultural, de gênero) por ações afirmativas é ainda mais importante no Brasil atual quando temos um grupo que chegou ao governo com o propósito de eliminar as diferenças e promover valores padronizados de um grupo populacional minoritário, com propósitos eugenistas. Temos que nos perguntar a todo momento: que tipo de sociedade queremos construir para o futuro?
Publicado aqui, no blog “Os Diários da Evolução”