A música está presente no cinema desde quando ele era mudo. Logo na primeira exibição pública da sétima arte pelos irmãos Lumiére, na Paris de 1895, um piano e um pianista faziam o fundo musical e davam ritmo às imagens na tela. E assim permaneceu por muito tempo, permitindo a um gênio renascentista como Charles Chaplin exibir seu talento, além de diretor, roteirista e ator, também como compositor. A história começou a mudar quando “O Cantor de Jazz”, considerado o primeiro filme falado e dirigido por Alan Crosland, estreou na Nova York de 1927. No ano seguinte, em 10 de novembro de 1928, nasceria em Roma o maior músico da história do cinema: Ennio Morricone. Que morreu hoje aos 91 anos, após 10 dias internado por uma fratura no fêmur, fruto de uma queda.
Morricone começou a compor com apenas 6 anos. Após tocar trompete em bandas de jazz na década de 1940, se tornou arranjador de estúdio para a gravadora RCA Victor. Em 1955, começou a compor para o teatro e em 1961, aos 33, assinou sua primeira trilha sonora para o cinema, no filme “O Fascista”, de Luciano Salce. O sucesso internacional viria naquela mesma década em que o rock dos Beatles e Rolling Stones revolucionava o mundo com a releitura britânica da música criada nos EUA. E o cinema teria seu gênero mais hollywoodiano, o “western”, reinventado na parceria entre dois mestres italianos: Morricone e o diretor Sergio Leone. Uma dupla tão afinada — e, talvez, mais genial — que John Lennon e Paul McCartney, ou Mick Jagger e Keith Richards.
Com a trilogia “Por um Punhado de Dólares” (1964), “Por uns Dólares a Mais” (1965) e “Três Homens em Conflito” (1966), Leone fundou o gênero “western spaghtetti”. Nele, o herói dos EUA na conquista violenta do Oeste do país continental, mitologia criada pelo cinema do mestre John Ford e encarnada entre os ombros largos do ator John Wayne, foi transformado em anti-herói. Latino de onde o latim foi ecoado ao mundo, Leone matou com um tiro à queima-roupa o moralismo anglo-saxão que separava o “mocinho” do “bandido”. E foi buscar nas séries de TV dos EUA um ator desconhecido que lançaria ao estrelato: Clint Eastwood. Seu pistoleiro sem nome, que protagonizou os três filmes, era inspirado no samurai sem senhor de “Yojimbo” (1961), do mestre japonês Akira Kurosawa.
Mesmo com a base em Ford e Kurosawa, e o carisma de Eastwood, a reinvenção de Leone só estaria completa com a música seca e minimalista de Morricone, que reforçava a aridez das paisagens da Europa em que as cenas da trilogia foram filmadas. Mesmo a quem não lembrar de nenhuma das suas cenas, ou sequer as tenha assistido, é impossível não ouvir o assobio da música tema e homônima de “Três Homens em Conflito”, sem associá-la imediatamente aos pistoleiros do “Velho Oeste” dos EUA. A trilha sonora ganhou uma força tal na cultura pop do mundo, que outra música do filme, “L’estasi dell’oro” (“O Delírio do Ouro”), acabou usada em shows por grandes de bandas de rock como Ramones e Metallica.
Outra das músicas de “Três Homens em Conflito” é “Morte di um soldato” (“Morte de um Soldado”). É dela o único som, além dos gemidos de um jovem soldado moribundo da Guerra Civil dos EUA e do relincho de um cavalo, em uma das cenas mais pungentes da história do cinema. Na qual Leone dialoga (confira aqui) com dois dos maiores poetas da literatura universal: o francês Arthur Rimbaud e o português Fernando Pessoa. Na dúvida, leia seus versos abaixo. Entre os dois poemas, veja a cena a que serviram de roteiro. E, sobretudo, ouça a música de Morricone:
O adormecido do vale
(Arthur Rimbaud)
Era um recanto onde um regato canta
Doidamente a enredar nas ervas seus pendões
De prata; e onde o sol, no monte que suplanta,
Brilha: um pequeno vale a espumejar clarões.
Jovem soldado, boca aberta, fronte ao vento,
E a refrescar a nuca entre os agriões azuis,
Dorme; estendido sobre as relvas, ao relento,
Branco em seu leito verde onde chovia luz.
Os pés nos juncos, dorme. E sorri no abandono
De uma criança que risse, enferma, no seu sono:
Tem frio, ó Natureza – aquece-o no teu leito.
Os perfumes não mais lhe fremem as narinas;
Dorme ao sol, suas mãos a repousar supinas
Sobre o corpo. E tem dois furos rubros no peito.
Outubro de 1870
O menino da sua mãe
(Fernando Pessoa)
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas trespassado —
Duas, de lado a lado —,
Jaz morto, e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! Que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
“O menino da sua mãe.”
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lhe a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embainhada
De um lenço… deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há a prece:
“Que volte cedo, e bem!”
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe
Lisboa, 1926
A parceria de Morricone seguiria na trilogia seguinte e derradeira de Leone, falecido em 1989: “Era Uma Vez no Oeste” (1969), “Quando Explode a Vingança” (1971) e “Era Uma Vez na América” (1981). O primeiro filme é considerado a obra-prima do cineasta. “Três Homens em Conflito” já traria diferenças na mesma música para os três personagens principais: flauta para Eastwood, oscarina (instrumento de sopro) para Lee Van Cleef e vozes a Eli Wallach. Mas em “Era Uma Vez no Oeste”, Morricone cria uma música própria para cada personagem entre os protagonistas interpretados por Claudia Cardinale, Henry Fonda, Charles Bronson e Jason Robards. O resultado é uma ópera do cinema. Mal recebido por público e crítica à época do seu lançamento, é hoje considerado o melhor western já feito.
Morricone nunca aprendeu a falar inglês ou deixou de morar em Roma. Nem deixou de compor trilhas sonoras para outros grandes diretores italianos, como para Gillo Pontecorvo, em “A Batalha de Argel” (1969); para Pier Paolo Pasolini, em “Teorema” (1968) e “Decameron” (1971); para Dario Argento, em “O Pássaro das Plumas de Cristal” (1970); para Giuliano Montaldo, em “Sacco e Vanzetti” (1971); para Bernardo Bertolucci, em “1900” (1976); para Giuseppe Tornatore, a quem escreveria a música de todos os filmes desde “Cinema Paradiso” (1989). Mas foi o sucesso com seu maior parceiro no cinema, Sergio Leone, que levou o compositor a Hollywood.
Morricone fez trabalhos memoráveis, como em “A Missão” (1986), ficção sobre o massacre real dos índios na colonização da América do Sul. Dirigido por Roland Joffé, o filme foi ganhador da Palma de Ouro de Cannes. E uniu o talento dos grandes atores Jeremy Irons e Robert De Niro, com quem Morricone já havia trabalhado em “1900” e “Era Uma Vez na América”. Em 2017, o compositor italiano diria: “A música de ‘A Missão’ nasceu de uma obrigação. Tinha que escrever um solo oboé, se passava na América do Sul no século XVI, e tinha a obrigação de respeitar o tipo de música do período. Ao mesmo tempo, eu tinha que compor uma música que também representasse os índios da região. Todas as obrigações me prendiam. Mas também fizeram com que saísse algo claro”.
Como De Niro, Morricone teve outros ítalos-estadunidenses como parceiros assíduos em Hollywood. Com o diretor Brian De Palma, trabalhou em filmes como “Pecados de Guerra” (1989) e “Missão: Marte” (2000), após legaram outra obra-prima ao cinema: “Os Intocáveis” (1987). A música realça as grandes interpretações de Sean Connery, que lhe rendeu o Oscar de ator coadjuvante, Kevin Costner e, mais uma vez, De Niro, como o violento chefe mafioso Al Capone. Ganhador de um Oscar honorário pelo conjunto da sua brilhante carreira, em 2007, Morricone ainda teria tempo para ganhar outro pelo seu trabalho em “Os Oito Odiados” (2015). Emblematicamente, foi um western. E dirigido por outro ítalo-estadunidense, grande admirador do músico e do cineasta Sergio Leone: Quentin Tarantino.
Estive na Itália em julho de 2010, verão deles, quando visitei a “bela cidade de Verona”, como a classifica Shakespeare logo na abertura de “Romeu e Julieta”. Já sabia que a cidade tinha uma grande arena legada pelos antigos romanos, menor, mas mais conservada que o Coliseu, na Roma de Morricone. E reservei ingressos para assistir, no palco antes destinado a gladiadores, à ópera “Carmen” de Bizet. Era dirigida por outro grande nome do cinema italiano, Franco Zeffirelli. E foi um espetáculo grandioso, do qual nunca esquecerei. Mas deixou um dissabor: só quando já estava em Verona, descobri que, na semana seguinte, era Morricone quem se apresentaria na mesma antiga arena romana. Cheguei a tentar mudar o roteiro da viagem, para tentar ficar e assistir. Mas foi impossível mudar a logística e as reservas já feitas de hotéis por outras cidades italianas.
Uma década depois, o maestro escreveu seu próprio obituário: “Ennio Morricone está morto. Anuncio a todos os amigos que sempre estiveram próximos de mim e também aos que estão um pouco distantes e os saúdo com muito carinho”. Em um ano de pandemia e perdas pessoais, a sua morte é sentida. Menos pelos 91 anos de uma vida plena. Que se difere pelo silêncio que sua última respiração não deixará; pela melhor música que o cinema foi capaz de produzir. Desde que um piano e um pianista acompanharam, há 125 anos, a primeira sessão dos irmãos Lumiére.
Parabéns pela bela homenagem. Chorei ao relembrar as cenas de Cinema Paradiso.
Linda e merecida homenagem a esse gênio que tanto nos emocionou com a sua música.