O identitarismo e seus três mal amados
“Os três mal amados” é um poema de 1943, do mestre João Cabral de Melo Neto. Nele, o poeta anticonfessional abre uma exceção para falar em prosa poética dos efeitos do amor enquanto paixão. E do monopólio que ela é capaz de exercer sobre o indivíduo, dos seus aspectos mais profundos aos mais cotidianos.
Com seu “lugar de fala” e patrulhamento politicamente correto, o identitarismo se tornou uma paixão para parte do pensamento progressista do mundo. Onde sofre questionamento racional de nomes como o cientista político estadunidense Mark Lilla, ou o filósofo esloveno Slavoj Zizek. E não é preciso grande capacidade de abstração para entender a questão central. Com sua essência de dividir as pessoas por raça, gênero e orientação sexual, como o identitarismo pode ser capaz de unir pessoas diferentes em torno de um projeto comum para chegar ao poder, que é a essência da disputa política na democracia?
Outro grande pensador contemporâneo, o historiador Yuval Noah Harari faz a analogia com o budismo, para falar de outras religiões sem Deus, mais recentes. Que se julgam “luzes” da razão, não a partir da iluminação que transformou Sidarta em Buda, mas do Iluminismo do séc. 18, quando a democracia representativa foi criada. Por ser judeu, israelense e homossexual, Harari teve “passe livre” do identitarismo para reunir história, biologia e estatística no entendimento do homem. Pelo que denuncia como “religião”, se fosse cristão, alemão e heterossexual, seria crucificado como “nazista” por dizer o mesmo.
“Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai senão por mim”. Segundo o evangelho de João (14:06), é o que Jesus responde à dúvida do seu apóstolo Tomé — aquele que, segundo o dito popular, tinha necessidade de “ver para crer”. No versículo bíblico, basta trocar Jesus pelos muitos profetas do identitarismo, além do patriarcal “Pai” pelo suposto “Bem”, e pronto! Está ditado o “Caminho, a Verdade e a Vida” da nova seita, tão fundamentalista, dogmática e irracional quanto qualquer outra. E se a realidade se mostrar contrária, a fé ganha o reforço da arrogância: é a realidade que está errada.
Os cristãos ainda tem a esperança do “Bem” no outro mundo. Geralmente materialistas e hedonistas, aos identitários resta conduzir todo o pensamento progressista do mundo a ralar a cara contra o muro chapiscado da realidade.
O PRIMEIRO MAL AMADO
De volta ao monopólio da paixão descrito no poema de Cabral, o cotidiano das redes sociais cruzou meus caminhos durante a semana com três identitários mal amados pela realidade. O primeiro comentou uma lembrança do Facebook de dois anos repostada em minha linha do tempo. Que analisava (confira aqui) a pesquisa Ibope feita em 29 e 30 de setembro de 2018, para o primeiro turno presidencial de 7 de outubro daquele ano, registrando o crescimento de seis pontos percentuais de Jair Bolsonaro só no voto feminino brasileiro. E alertava o quanto isso era emblemático, já que no mesmo dia 29 de setembro do início da pesquisa, mulheres ligadas ao identitarismo saíram às ruas e praças do Brasil no “Ele Não”. Então, escrevi:
— Tenho respeito, carinho e admiração pelas mulheres (e homens) que foram democraticamente à praça São Salvador no sábado, como em todo o Brasil, para gritar “Ele Não”. Mas, segundo o Ibope, Bolsonaro não só continua a liderar também no voto feminino, como ampliou nele sua vantagem de 18% a 24%. Em outras palavras, uma em cada quatro brasileiras votará no candidato classificado por muitas como machista e misógino. Tratar Bolsonaro como “couso” foi justamente o que transformou um deputado federal de baixo clero no principal opositor do político mais popular do Brasil. E nada indica que o que deu errado até aqui passará a dar certo a cinco dias das urnas.
Dois anos depois, o primeiro identitário mal amado pela realidade questionou a previsão racional que seria confirmada pelos fatos, tanto no primeiro, quanto depois, no segundo turno presidencial. Explicado que a crítica era não ao objetivo, mas à estratégia que a pesquisa Ibope antecipou como equivocada, retrucou fatalista: “Porque o fato é que com ou sem manifestação ‘Ele Não’ o Bolsonaro iria ganhar de qualquer jeito”. Ao que foi questionado: “para que, então, o ‘Ele Não’? Aliás, para que eleição? Por que não entronizá-lo (Bolsonaro) vitaliciamente no poder, como Putin na Rússia?”. Com dificuldades com a ortografia e a lógica, respondeu que o debate era uma… “perca de tempo”. E, mediante a concordância aliviada, levou por WO.
O SEGUNDO MAL AMADO
O segundo identitário mal amado pela realidade foi convidado para um grupo de WhatsApp, que aceitou e agradeceu. E como quem chega querendo sentar na janela, logo em sua segunda intervenção fez um ataque leviano contra outro membro do grupo. Advertido pela moderação que sua acusação era tão grave quanto fazê-la sem apresentar evidências, não se fez de rogado. E investiu na politicagem barata com a morte do deputado estadual João Peixoto (DC), vítima da Covid-19 (confira aqui) naquele mesmo dia 30 de setembro.
Enquanto a perda de João, com seu corpo ainda quente, era lamentada por todos os demais integrantes do grupo, o jovem senhor com complexo de enfant terrible fez questionamentos aos legados políticos dele e de Gil Vianna (PSL), também deputado estadual morto por Covid (confira aqui), em 19 de maio. Por quê? Porque, embora egressos do povo, João e Gil eram políticos conservadores. E a origem popular, para esse tipo de arrivismo identitário, só é virtude com a chancela dos seus dogmas, como Lula. Em caso de ruptura política com ele, deixa de valer mesmo para uma mulher analfabeta até os 16 anos que conseguiu se formar em história, como Marina Silva.
O TERCEIRO MAL AMADO
Por fim, o terceiro identitário mal amado pela realidade. No mesmo grupo de WhatsApp do qual o segundo foi excluído por não respeitar nem os mortos, seu conterrâneo “importado” cobrou a imposição do próprio ideário entre as lideranças da sociedade civil organizada de Campos. Que teve 34 dos seus representantes ouvidos em uma série de 11 painéis (confira-os aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui, aqui e aqui) promovidos pela Folha, de 18 de julho a 26 de setembro, analisando e buscando soluções para a grave crise financeira do município. Onde limites de responsabilidade foram estabelecidos e serão lembrados aos 11 candidatos a prefeito que queiram ultrapassá-los até as urnas de 15 de novembro.
Talvez a reebertura do Restaurante Popular seja possível. Mas quem prometer resgatar programas sociais como a Passagem Social e o Cheque Cidadão, enquanto o município tiver sérias dificuldades para manter sua folha de pagamento de servidor em dia, estará mentindo. Quem relativizar essa linha no chão da planície goitacá, riscada (confira aqui) por sua sociedade civil, estará praticando estelionato eleitoral. Será tão desonesto quanto um Cavalo de Tróia do Psol no PT de Campos. Ou quanto quem mantém debate em um grupo e, fora dele, dissimuladamente, é capaz de classificar responsabilidade com o dinheiro público como “misoginia”, em seu delírio entre feminismo, misandria e política de botequim. Tão desonesto quanto quem destila o ressentimento da vaidade obesa mórbida e ferida, só por não ter sido um dos 34 ouvidos nos 11 painéis.
OS AVISOS
Desse terceiro identitário mal amado pela realidade, os avisos vieram dos seus próprios pares: “Desse mato não sai coelho. Minha luta política é pelo debate de ideias sem extremismo. Muitas vezes são ofensivos e mentirosos. Mas isso fala mais deles que qualquer outra coisa. O identitarismo raivoso é característico do pensamento extremista, tanto de esquerda quanto de direita. Ambos carecem de liberdade. Não são movimentos libertadores, não procuram a solução do problema em si”, analisou um. “A radicalidade social abre caminho, simbolicamente falando, para o ‘tudo pelo social’ das oligarquias. Nossa grande reforma cultural como cidadãos será aprender a enfrentar os problemas de frente, sem subterfúgios e escapismos”, advertiu outro.
Pensador de esquerda e professor da Uenf, o sociólogo Roberto Dutra tem se caracterizado pela coragem e veemência com que critica publicamente esse identitarismo mal amado pela realidade. Sem meias palavras, o classifica (confira aqui) como aliado do bolsonarismo nos danos causados: “A esquerda relativista e identitária é perniciosa para a educação pública. Não há dinheiro que seja capaz de compensar a falta de compromisso dessa gente com o trabalho e com os resultados. São uma aberração ética, cognitiva e política, lembrando o dizer de uma famosa filósofa. São aliados de Bolsonaro na destruição do ensino público”.
Na troca da palavra “amor” por sua variante menos feliz da paixão identitária, acrítica como qualquer paixão, o poema “Os três mal amados” de João Cabral seria aberto assim: “O identitarismo comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O identitarismo comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O identitarismo comeu meus cartões de visita. O identitarismo veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome”.
Os três identitários mal amados pela realidade da semana se diferem. O primeiro é limitado intelectualmente. Poetas sofríveis, com os outros dois a limitação é de caráter.
Ih rapá o Bobble Head da Uenf ficou com ciúme e também pagou pau de mal amado. Frankestein de Libelu com Nasa já conduziu uma candidatura de reitor ao abismo. E agora que fazer o mesmo com o PSOL na eleição a prefeito. E com o PT onde plantou seu Cavalo de Tróia. Abram os olhos Natalia e Odisseia!!..