A frase já virou lugar comum. Após atravessar o rio Rubicão com suas legiões, para pôr fim à República de Roma, Júlio César vaticinou: “A sorte está lançada”. Com o mundo observando, como talvez nunca tenha feito e dificilmente voltará a fazer, os dados param de girar nesta terça (03) nas urnas dos EUA. E determinarão seu próximo presidente e os rumos da humanidade. Para entender o que está em jogo e o que mudará, a depender da escolha do complexo colégio eleitoral estadunidense entre o presidente republicano Donald Trump e o candidato democrata Joe Biden, tão favorito nas pesquisas como foi a derrotada Hillary Clinton em 2016, o blog ouviu o historiador Arthur Soffiati, o cientista político e sociólogo George Gomes Coutinho e o sociólogo Roberto Dutra. Os dois primeiros, professores da UFF-Campos, o terceiro da Uenf. Eles analisaram o que pode acontecer, caso Trump ou Biden ganhem a eleição. E como isso deve afetar, além do mundo em que a China também acena como superpotência, o Brasil de Jair Messias Bolsonaro.
Blog Opiniões – Analistas políticos do mundo têm apontado a eleição presidencial dos EUA como a mais importante em algumas décadas para determinar os destinos do mundo. O que você espera se o democrata Joe Biden se eleger, como apontam as pesquisas? E se, contrariando-as, como em 2016, Donald Trump conquistar a reeleição?
Arthur Soffiati – A eleição é importante porque o mundo se polariza mais entre um progressismo moderado e um retrocesso reacionário, obscurantista, negacionista, anticientífico e propagador de mentiras. Biden não é um candidato carismático como Obama. Sua vitória, contudo, representa a reconquista de uma posição perdida. Não espero que ele faça milagres num contexto tão dividido. Com a reeleição de Trump, antevejo um futuro tenebroso, pois os Estados Unidos, queiramos ou não, é o coração do mundo democrático. A recondução de Trump representará o triunfo do atraso e a sua consolidação.
George Gomes Coutinho – Sem dúvida neste momento se considera que Trump tem um desafio e tanto para ser reeleito. Envolveria simplesmente repetir a “tempestade perfeita” que o elegeu e ainda reafirmar sua identidade de outsider, algo pouco convincente após quatro anos na Casa Branca e um rosário de promessas não cumpridas. O que eu espero, caso ele seja reeleito, é o recrudescimento de sua agenda conservadora nas instituições norte-americanas, o que inclui a Suprema Corte. Também não duvido do aumento do tensionamento dos embates raciais nos EUA e a estigmatização institucional da população latina. Para fora do espaço doméstico, Trump dá fôlego para governos e movimentos de extrema-direita persistirem em suas agendas e discursos. No caso de Biden ser eleito, o que não será surpresa, caso todos os indícios e pesquisas se confirmem e na hipótese de não termos uma bala de prata até lá, o governo norte-americano retoma uma agenda centrista e mais próxima daquilo que achávamos que era, até 2016, um consenso mais ou menos compartilhado em termos civilizatórios por parte importante tanto da direita quanto da esquerda democrática. Consenso este que envolve ao menos a consciência das mudanças climáticas, o discurso pró-ciência e pautado em evidências, políticas de reparação histórica, etc. No âmbito doméstico, Biden promete retomar políticas sociais que nos remetem ao que Obama tentou implementar. A conferir. O status quo norte-americano tem alergia a medidas que enfrentem suas gritantes desigualdades internas.
Roberto Dutra – Pode ser a eleição presidencial norte-americana mais importante em décadas em relação a várias dimensões da política global, como a política de combate ao aquecimento global e as relações com a China e a Rússia. Mas não tenho muitas esperanças de que um governo democrata seja menos agressivo à soberania de outros países que Trump. Um aspecto muito lembrado é o efeito negativo que uma vitória de Biden teria sobre governos de extrema-direita como o de Bolsonaro. Mas a grande contribuição que um novo governo democrata poderia trazer para os destinos globais seria romper com o neoliberalismo humanizado de Clinton e Obama e construir um projeto nacional capaz de atender as demandas e frustrações sociais que alimentam o trumpismo. Uma eventual reeleição de Trump poderia ser uma chance de fortalecer a extrema-direita global, mas as condições nacionais de cada país são sempre mais importantes.
Opiniões – Por conta da Covid, cerca de 1/4 do eleitorado dos EUA já votou pelos correios. Trump tem denunciado “fraude” por isso. Como o voto pelos correios deve ser computado depois do presencial, opção preferencial dos eleitores do presidente, há o receio que se este sair na frente nos swing states (estados decisivos), a apuração seja interrompida sob alegação de irregularidade. O que poderia levar a questão à Suprema Corte, de maioria conservadora. O que esperar? E por quê?
Arthur – Em certa medida, isso já aconteceu em 2000, com a vitória controversa de George W. Bush sobre Al Gore. A decisão final coube à Suprema Corte. O caso de Trump parece mais premeditado. Ele não admite perder em nada, muito menos a votação para a reeleição. Nesse sentido, ele chama de fraude a eleição pelos correios, quando, nos Estados Unidos, o voto pelos correios é perfeitamente legal e seguro. O diretor dos correios é amigo de Trump. Pode haver atraso na entrega dos votos. Ela já aparelhou a Suprema Corte, indicando uma ministra conservadora da mesma linha dele. Enfim, tudo indica que Trump está com muito medo de perder e está fazendo de tudo para que isto não aconteça. Se acontecer, ele não deve reconhecer a derrota, nem cumprimentar o vencedor.
George – O insuspeito senador republicano Ted Cruz já falou até mesmo em um “banho de sangue” nas eleições em novembro (confira aqui) ao comparar a conjuntura com os perturbadores e disruptivos momentos da época de Watergate. Exagerado ou não, o senador Cruz nos transmite um pouco da temperatura do processo de sucessão eleitoral nos EUA. A grande questão é que processos lentos de apuração podem jogar querosene na fogueira da opinião pública nativa, esta última já devidamente intoxicada por fake news, paranoias, teorias da conspiração e afins há anos. É este repertório que ajudou a eleger Trump. Há alguns analistas que falam em “bananização” das eleições norte-americanas, ou seja, o questionamento invariavelmente fraudulento por parte dos perdedores não só do resultado. O que se questiona na “bananização” é a legitimidade, a solidez do processo em si. Este conjunto de elementos pode trazer tumulto até termos o resultado final e seguro de apuração e uma parte do eleitorado simplesmente adotar uma atitude “insurgente” digamos assim, um eleitorado arredio a aceitar o resultado final. De forma ou de outra será mais um dos muitos testes de estresse para as instituições dos EUA desses nossos últimos tempos. Penso que uma onda conservadora na Suprema Corte tenha uma tendência mais a desestimular pautas progressistas comportamentais. Mas, não apostaria que a Suprema Corte vá aderir a algum tipo de delírio político nesta altura do campeonato. A Corte, em minha perspectiva, tende mais ao papel de bombeiro do que de Nero. Há um capital institucional gigantesco a ser resguardado e, neste momento, uma aventura não me parece que será referendada por esta instituição específica. O que não quer dizer que será a mesma postura a ser exercida pelos eleitores de Trump.
Roberto – Espero a irresponsabilidade conhecida do presidente. Toda sua prática e discurso apontam nesta direção. E não me parece que seu partido consiga demovê-lo dessa investida contra o procedimento eleitoral. Torço para que não haja nenhuma ruptura institucional, mas, ao contrário do que muitos acham, a democracia americana é precária. Por isso não descarto que um ataque do trumpismo ao processo eleitoral, já cheio de problemas oriundos de suas regras, possa acelerar a crise da democracia no EUA. A democracia não é propriedade intrínseca de nenhum país. Quando suas condições sociais e políticas são diluídas, ela pode se apequenar ou se desconstituir em qualquer lugar. Entre as condições sociais, se destaca a crise das formas de inclusão social, como vemos resultar do colapso do fordismo, que sustentaram a democracia ocidental nas décadas finais do século XX. Entre as condições políticas o fator mais importante é a própria falta de adesão aos procedimentos eleitorais e comunicativos da democracia. A possível judicialização da apuração enfraquece a adesão ao procedimento democrático.
Opiniões – Nos EUA, o voto é facultativo. Em 2016, 90 milhões de eleitores não votaram, o que pode ter gerado o resultado oposto às pesquisas que apontavam a vitória de Hillary Clinton. Ela teve quase 3 milhões de votos a mais que Trump, mas perdeu no sistema do colégio eleitoral. Além dos institutos de pesquisa terem aprimorado suas metodologias, os votos pelos correios e antecipados indicam presença maciça do eleitor em 2020. Isso pode ajudar Biden? Por quê?
Arthur – Caso Trump espere a contagem final dos votos sem alarde, creio que essa votação maciça ajude Biden. Em 2016, quase cem milhões não votaram, na minha leitura, por não simpatizarem com Trump, nem com Hilary. Não importa se esta foi injustiçada, mesmo tendo 3 milhões a mais de votos que Trump. O que conta é o colégio eleitoral. Mas agora acredito que a mobilização está sendo maior porque a população enfrentou quatro anos de um presidente errático. O Trump de hoje não é o Trump de ontem. Agora, ele foi testado no governo. Isso conta e muito. Daí acredito que essa mobilização representa a rejeição de Trump mais que um apoio a Biden.
George – Em minha ótica o que pode atrapalhar Biden é uma bala de prata. É importante olharmos pelo retrovisor e revisitarmos o embate Hillary Clinton versus Donald Trump. Poucas semanas antes das eleições, para além de uma propaganda negativa, misógina e agressiva contra Hillary, houve a alta exploração do mau uso por Clinton de seu servidor de e-mail. Ao utilizar um servidor privado para enviar comunicações de interesse de Estado, Hillary Clinton foi pega por parte da opinião pública como Judas. Em uma nação com interesses declaradamente imperiais e absolutamente neurótica com os riscos de informações sigilosas “caírem em mãos erradas”, Hillary se tornou o alvo, a inimiga preferencial na imaginação da opinião pública. Hillary, como sabemos, contava com uma vantagem até mais expressiva do que a de Biden neste ano de 2020. O que virá? Não sabemos. Mas, por enquanto somente um escândalo de última hora aparentemente pode permitir uma virada importante de Trump em estados importantes na disputa.
Roberto – A abstenção eleitoral em 2016 foi maior entre os eleitores democratas. Se isso se reverter este ano as chances de vitória de Biden aumentam consideravelmente. Mas o eleitorado democrata parece estar mais mobilizado contra Trump do que propriamente a favor de Biden.
Opiniões – No final do último debate presidencial, em 22 de outubro, Biden disse (confira aqui) que queria marcar seu governo pela transição dos EUA da matriz energética do petróleo para alternativas limpas, como a eólica e a solar. Como ninguém imagina que um ambientalista vá votar em Trump, mas moderados podem temer as consequências econômicas da mudança da matriz energética, não era uma promessa a ser evitada pelo favorito nas pesquisas, a 10 dias da urna?
Arthur – Claro. Biden podia muito bem que dizer que vai continuar com a matriz energética e desenvolver fontes alternativas de geração de energia. Isto não seria mentira. Seria apenas não fazer uma declaração bombástica que lhe pode ser prejudicial. Sabemos muito bem que a consciência ambiental aumentou nos países em que o capitalismo está mais avançado, mas ela ainda não tem força para eleger um presidente. Seria bem melhor para ele não ter feito esta declaração, que permitiu a Trump aproveitá-la em seu favor. Bastava dizer que voltaria ao Acordo de Paris e a declaração desastrada já estaria implícita.
George – Biden falava para seu eleitorado. É muito importante que tenhamos clareza do seguinte: o discurso dos candidatos nos EUA é um diálogo bastante direto com seus apoiadores e financiadores. É uma forma de “fidelizar” este eleitor e financiador privado oferecendo uma agenda e dizendo o que ele gostaria de ouvir. Os eleitores pragmáticos farão seus cálculos de escolha eleitoral pesando prós e contras entre ambos os candidatos. Contudo, como venho frisando, caso surja um eventual escândalo envolvendo Biden a ser repisado diariamente na mídia norte-americana é algo dotado de potencial mais destrutivo do que a promessa envolvendo as alternativas de energia limpa que precisarão de uma enorme complexidade de negociação para decantarem na realidade.
Roberto – O establishment democrata, do qual Biden é parte visceral, parece ter muitas dificuldades de oferecer um discurso e um programa para a demanda popular de oportunidades e prosperidade econômica que constitui o sonho americano. As políticas sobre a mudança climática são fundamentais, mas elas só terão viabilidade política se vierem sustentadas na recuperação do dinamismo econômico dos EUA, único caminho capaz de arrefecer sustentadamente o sentimento de frustração de amplas camadas médias e populares com os destinos do país. Propor mudar a matriz energética, quando não se tem um caminho crível de reconstrução econômica, pode realmente ser uma decisão muito arriscada.
Opiniões – Trump já disse que, se reeleito, irá mudar o comando do FBI, da CIA e do Pentágono. Após Franklin Delano Roosevelt, presidente de 1933 até morrer em 1945, os EUA passaram a permitir apenas uma reeleição presidencial. E aqueles que a conquistaram tiveram o segundo mandato mais “ideológico”, sem precisar mais se preocupar com as urnas, como foi com Barack Obama. Quais seriam os limites de Trump em um eventual segundo mandato?
Arthur – Sempre existem instituições que podem estabelecer limites, mas, sem dúvida, Trump estaria mais confortável sabendo que não poderá mais ser eleito. Isso confere a ele mais liberdade. Os eleitores de Biden que se danem. Ele nunca foi o presidente de todos, como costumam proclamar os presidentes eleitos. Trump nunca desejou paz para unir o país. Com a reeleição de Trump, só se pode esperar a radicalização da sua linha ideológica caótica, mas, ao mesmo tempo, reacionária. E não apenas para os Estados Unidos. Sua possível reeleição teria repercussão internacional.
George – Eis uma questão sem dúvida que causa arrepios a analistas políticos comprometidos com a democracia lá ou em qualquer outro ponto do globo. Governos que ganham uma nova chance devidamente referendados por seus eleitores tendem a arriscar mais, serem mais ousados após reeleição. Isto vale para direita ou esquerda. Portanto, teremos menos limites. No caso de um governo de extrema-direita, pois assim situo a gestão Trump, a agenda é regressiva em conquistas sociais que gradativamente lutam para se implementar naquele país desde os movimentos pelos direitos civis que datam da década de 1960 para cá. Nunca é insuficiente lembrarmos que os EUA mantiveram práticas institucionais formais segregacionistas e racistas até ontem em termos históricos… E assim prosseguem de maneira não declarada na contemporaneidade, vide a reação coletiva que é o movimento Black Lives Matter (“Vidas Negras Importam”). Também podemos esperar a agressiva normalização da precarização das relações de trabalho. Altos índices de emprego, mas, majoritariamente McJobs, sem proteção social, garantias, baixo prestígio, etc, etc, etc.Todavia, ao seu eleitorado, há a promessa da manutenção de valores tradicionais, a reação às políticas de ação afirmativa, a redução dos impostos que agradam parte importante de Wall Street… Eis o outro ponto que sem dúvida em nada enfrenta os problemas do mais desigual dos países ricos.
Roberto – Não me parece que Obama tenha feito um segundo mandato mais ideológico. Pelo menos não o foi na dimensão da política econômica. No caso de Trump, os limites podem ser estabelecidos pelo Congresso. Acredito que o maior risco que ele representa à democracia é sua possível recusa em reconhecer uma eventual derrota. Em termos de agenda, Trump não tem programa para tornar a “América grande novamente”. Ele não entende que é impossível reconstruir a economia dos EUA refundando o modelo fordista que garantiu bem estar social e inclusão econômica no passado. Por isso, o ganho de liberdade de um segundo mandato pode não ser um recurso tão interessante assim pra ele. Ele sobrevive de identificar inimigos. Na falta de alternativas do que fazer, de como governar e entregar resultados econômicos e sociais, talvez aprofunde a guerra cultural contra o China.
Opiniões – Os EUA são o único país do mundo que elege seus governos de quatro em quatro anos, desde 1789. Tradição que mantiveram mesmo quando Washington foi incendiada pelos britânicos na Guerra de 1812, na divisão fraticida do país na Guerra de Secessão (1861/1865), nas I e II Guerras Mundiais (1914/1918 e 1939/1945), Guerra da Coréia (1950/1953), do Vietnã (1955/1975), nas duas Guerras do Golfo (1990/1991 e 2003/2011) e na do Afeganistão (2001 até hoje). Não são provas de fogo demais para uma democracia temer por Trump? Por quê?
Arthur – Por esse aspecto, a República dos Estados Unidos é notável: teve apenas uma Constituição com emendas, enquanto o Brasil teve sete, também com emendas e nem sempre resultantes de assembleias constituintes livres e populares. Idem para o Chile, que acaba de dar um bom exemplo. Os Estados Unidos também repeliram historicamente golpes de Estado. Mas a democracia dos Estados Unidos não é plena por conta da eleição indireta. Nem sempre que ganha nas urnas se elege. O colégio eleitoral foi criado para evitar o governo de aventureiros e acabou elegendo um. Confesso que vejo em Trump uma ameaça muito grande à democracia dos Estados Unidos. Ele já vem manchando a Constituição sem precisar rasgá-la. Vejamos o caso da indicação de uma juíza conservadora já empossada como mais um trunfo para sua reeleição. E o tempo todo ele põe à prova a Constituição do país. Estaríamos, então, vivendo uma distopia.
George – O ponto fora da curva na história norte-americana na conjuntura Trump é justamente o questionamento da legitimidade tanto do rito periódico eleitoral de sucessão de governantes quanto das instituições em si. Parte do eleitorado mais radical de Trump o projetou justamente por seu discurso de quebra do establishment. E por establishment me refiro a tudo o que eu comentei anteriormente. Establishment pode ser substituído por Estado de Direito. A democracia representativa é um regime fascinante justamente por promover periodicamente a possibilidade de circulação de elites políticas no poder sem que a violência seja ingrediente desejável a participar do jogo. Para tanto, aceitar resultados, seja você o ganhador ou perdedor, é componente fundamental para manter o jogo sucessório. Por tudo isso ironicamente ter um homem que é também establishment, branco, rico, empresário, que se apresenta como a “negação de tudo que está aí”, o que deve ser traduzido como um agente pouco afeito às regras do jogo, é preocupante. Trump tem um potencial incendiário importante e conta com uma base social mobilizada, radical, fiel e violenta.
Roberto – Não acho que Trump seja a principal ameaça a democracia dos EUA. Ele é muito mais o resultado da principal ameaça: a crise programática decorrente da adesão dos progressistas ao programa econômico das elites financeiras e rentistas. No período entre o começo da II Guerra Mundial e meados de década de 1970, os americanos vivenciaram, apesar de todos os problemas e conflitos externos e internos, processo de ampliação e melhoria das oportunidades de inclusão social e econômica. Isso criou, para as pessoas comuns, um horizonte dominante de esperança na melhoria de vida e garantiu as condições sociais da democracia, que hoje estão se diluindo. Trump é uma ameaça adicional, mas que se alimenta de uma ameaça perene e mais forte, indicada especialmente pelo colapso do horizonte de mobilidade social para a maioria dos americanos.
Opiniões – Acusado por Trump de “socialista”, Biden sempre foi um moderado em seus 47 anos de vida política. A despeito de ter feito promessas bem progressistas nesta campanha presidencial, como taxar as grandes fortunas para custear a assistência social aos mais pobres e impor um salário mínimo de US$ 15/hora nos EUA. Como entender os liberais como a esquerda dos EUA, quando a ótica latino-americana sempre coloca os liberais à direita?
Arthur – Nos Estados Unidos, o ponto de referência para as tendências políticas é muito particular. O que lá se entende por esquerda, na França, por exemplo, não passa de liberalismo. Existe um partido comunista nos Estados Unidos, mas ele não tem o mínimo peso político-eleitoral. Acusar Biden de comunista é uma arma de retórica que pode causar algum estrago. O próprio Biden se saiu bem no debate ao dizer que ele derrotou as tendências mais progressistas e que a sua posição é centrista. Talvez até demais e já comprovada ao longo da sua vida política. Quanto a taxar fortunas, é um desafio para Biden, muito embora já exista um movimento de milionários mal vistos pela sua ambição pedindo taxação sobre suas fortunas.
George – A história das ideias políticas é caprichosa. O repertório político ocidental, seja este liberal, socialista, social-democrata, conservador, etc, não se move no vácuo. Estas tradições do pensamento político são recepcionadas e aclimatadas em estados nacionais concretos, dotados de uma cultura política concreta, tendo efeitos e interpretações para além dos seus locais de nascimento e de suas expressões “puras”. Desta maneira faz sentido dizermos que há um “liberalismo norte-americano” ou uma recepção particular do ideário liberal. No campo da história política dos EUA a atual configuração nos remete aos anos 1960 onde os democratas vestiram a camisa da luta pelos direitos civis. Isto faz com que os membros deste partido, na média, tenham uma faceta social acrescida da mescla com princípios de liberalismo político, onde há a forte defesa dos direitos civis, com liberalismo econômico, a firme defesa da economia de mercado. O que os coloca na esquerda da política por lá é o sentido relacional da classificação esquerda/direita: os republicanos são muito mais resistentes a mudarem os fundamentos da cultura política e jurídica dos EUA. Os republicanos, em termos relativos, estão mais do lado direito do espectro político. O debate sobre armas, por exemplo, conta com um consenso mais ou menos compartilhado entre os democratas sobre a necessidade de maior regulação. Os republicanos são infinitamente mais conservadores neste tema e em outros tantos… E sobre isso falamos “na média”. Dado o bipartidarismo, onde há dois únicos partidos competitivos nacionalmente, estes, até por falta de outras opções, acabam agregando uma diversidade política concreta. Pode ocorrer agentes como Sanders, muito próximo de uma socialdemocracia clássica, ou até mesmo republicanos que flertam perigosamente com a KKK, supremacismo branco, etc. De maneira ou de outra definitivamente “esquerda” e “direita” têm significações no contexto norte-americano que não cabem necessariamente para o resto do mundo.
Roberto – Nos EUA ser liberal é sinônimo de ser progressista. Em termos de conteúdo, as políticas keynesianas e social-democratas do século XX foram sempre identificadas como liberais, o que indica que lá o liberalismo era mais político que econômico. Outro fator importante é que o termo socialista sempre foi impopular nos EUA, embora hoje menos. Na América Latina, o liberalismo foi predominantemente econômico, se aliando a tendências e regimes autoritários com muita facilidade.
Opiniões – Os governos do PT no Brasil foram considerados progressistas, assim como o governo Obama nos EUA. E, a despeito da grande popularidade que chegaram a alcançar, eles foram sucedidos no voto por governos de espectro político no extremo oposto. Considerada a diferença do impeachment aqui, como o PT de Lula e Dilma e os Democratas de Obama contribuíram nas ascensões respectivas de Trump e Jair Bolsonaro (sem partido)?
Arthur – Não tenho dúvidas de que o PT contribuiu para colocar Bolsonaro no governo, mesmo que de forma indireta e sem intenção. O PT não conseguiu sequer unir os progressistas. Pelo contrário, as vaidades partidárias e pessoais levaram o PT a acreditar que tinha o monopólio das esquerdas e a liderança delas. Quanto aos Estados Unidos, entendo que Obama fez um bom governo em termos de política interna e externa, com os excessos típicos do país. Teve boa atuação na questão ambiental. Revelou-se um grande estadista. Mas Trump acordou forças sombrias que sempre existiram no país. Elas engoliram Hilary e o elegeram. Creio que o globalismo de Obama contribuiu para os discursos de Trump em favor do América first.
George – Se podemos falar em colaboração devemos falar de colaboração indireta ou involuntária. Digo isso pelo seguinte: os eleitores decidem em democracias representativas. Eles têm uma média de preferências que variam nas conjunturas daquilo que consideram mais adequado para aquele momento. A questão é que todo e qualquer grupo político no poder pode sofrer de “fadiga de material” com o passar do tempo, o que pode ter sido o caso dos democratas e dos petistas, além de erros cometidos pelas gestões. Erros estes cometidos por governos passados e pelos que virão. Também a percepção do eleitor comum de deterioração das condições de bem-estar naquela sociedade indica o rechaço ao que podemos chamar de situação e a aposta em grupos que estejam na oposição. Em momentos mais radicais a aposta em grupos opositores pode redundar até mesmo nos outsiders. Note que na minha resposta falo propositalmente em “percepção”, algo não infrequentemente equivocado, distorcido, etc. Portanto, pasmem, o eleitorado tanto pode acertar quando errar em suas decisões. E não raro pode ser induzido ao erro.
Roberto – O PT e os Democratas têm em comum a rendição ao programa econômico de seus adversários. Trata-se de uma crise programática que afeta partidos e organizações de esquerda em vários países, inclusive na Europa. A esquerda promoveu o apagamento e moderação das principais diferenças na esfera da política econômica. Ao se render ao neoliberalismo, a esquerda abdicou das condições para juntar politicamente as classes médias e as classes populares. Na prática, o PT e os Democratas desconectaram as agendas da inclusão social e da redistribuição de renda da agenda da mudança da política econômica, combinando política identitária para minorias, política compensatória de transferência monetária para os pobres e política regulatória de serviços privados de educação e saúde para a classe média, ao preço de executar e ampliar a política rentista das oligarquias financeiras. Este caminho destruiu os horizontes de oportunidades econômicas e mobilidade social ascendente para as maiorias e contribuiu para a ascensão da extrema-direita que soube instrumentalizar politicamente a frustração social.
Opiniões – Negacionismo científico, flerte com o racismo, a misoginia e a homofobia, aliança com os neopentecostais no limite do estado laico, armamentismo entre civis, anticomunismo generalizado a qualquer adversário ou crítico, guerra contra a imprensa, a intelectualidade e classe artística, governar em eterno modo campanha, com disseminação de fake news nas redes sociais para insuflar suas bases mais radicais. A caixa de Pandora aberta por Trump em 2016, clonada no Brasil em 2018, ficará mais próxima do fim se ele não se reeleger?
Arthur – Do fim, não creio. Nos Estados Unidos, a caixa de Pandora parece aberta desde a independência. Embora todos os males tenham saído dela, eles não conseguem sempre se concentrar para se tornar uma ameaça à democracia. Mas quando os guetos fundamentalistas encontram um gênio do mal, eles mostram sua garra. Nenhum presidente, por mais progressista que tenha sido, conseguiu controlar a indústria das armas. Elas representam uma faceta forte da cultura do país. Essas forças macabras continuarão existindo, mas não vão se expressar com a mesma liberdade no desejado governo Biden, pois não serão estimuladas. Espero que essas forças sombrias sejam contidas, pois um país não pode viver em clima de ódio constante.
George – Sendo bastante sincero eu antevejo algum tipo de retraimento desta lata de lixo semiótica que você narra em sua pergunta. Mas, retraimento não significa o fim. O que precisamos com urgência em nossas sociedades, tanto lá quanto cá, é algum tipo de reorientação da opinião pública e o firme compromisso com o enfrentamento sem tréguas de todo tipo de obscurantismo que rebaixa o nível das narrativas em disputa. Isto a despeito de esquerda ou direita. É preciso uma frente ampla que recoloque o debate público na direção do avanço civilizatório e em prol da democracia. Estamos retrocedendo com a pelada de várzea que se tornou a nossa discussão pública onde as grandes questões, as decisivas, estão soterradas pelo que há de mais abjeto aqui ou nos EUA. E por abjeto incluo o comportamento público de muitas das autoridades na ativa.
Roberto – A derrota de Trump pode tornar mais próximo o fim dessa caixa de Pandora no mundo todo, mas as frustrações sociais que alimentam a política e a guerra cultural de extrema-direita continuam determinantes, em cada país que vivenciou ou é ameaçado pela ascensão da extrema-direita, mesmo com eventual derrota do bufão norte-americano. O efeito de uma possível derrota de Trump vai depender da situação social e política de cada país. No Brasil, por exemplo, vai depender da capacidade governativa de Bolsonaro em promover a recuperação da economia, o que parece cada vez mais improvável.
Opiniões – Com uma Europa e seus Partidos Verdes cada vez mais fortes, a “boiada” do ministro brasileiro Ricardo Salles “passando” nas queimadas na Amazônia e no Pantanal parece não ter mais vez. Com a China, após as restrições até à vacina contra a Covid em parceria com o Butantan, para salvar vidas de brasileiros, as coisas também não andam bem. Se Biden se eleger nos EUA, o Brasil de Bolsonaro se torna de vez um pária mundial? Por outro lado, e se Trump vencer, o presidente brasileiro ganha força na sua reeleição em 2022?
Arthur – Parece que o Brasil de Bolsonaro deseja ser pária. Jornalistas disseram que a vitória de Biden representará a queda de Ernesto Araújo e de Ricardo Salles. Eles fazem parte do núcleo ideológico, agora mais enfraquecido. Tem havido muita pressão interna e externa para enquadrar o governo de Bolsonaro, mas ele tem se mostrado recalcitrante. É de pasmar um governo tão retrógrado como o dele. Não houve um regresso de duzentos anos. Afinal, D. Pedro II tinhas ideias progressistas e gostava da ciência, embora vivendo um contexto escravagista. Bolsonaro vive num lugar que não existe fora dos seus fãs. Foram poucos os presidentes progressistas no Brasil, mas Bolsonaro vive num casulo fora do mundo. Tem e não tem vida própria. Fala para seus eleitores e sobrevive com apoio de Trump. Se este perder, Bolsonaro deve perder também em 2022. Não se pode esperar nada digno de um estadista da parte dele. Apenas que não se reeleja.
George – A tradição da política externa brasileira era de relativa independência aos movimentos do sistema internacional, algo absolutamente funcional para as ambições de um país na periferia do capitalismo que precisa de uma balança comercial favorável tanto quanto o ser humano precisa de oxigênio. Ernesto Araújo em seu famoso artigo “Trump e o Ocidente”, texto que mescla devoção quase religiosa e delírio geopolítico, já prenunciava um encaminhamento absolutamente acrítico do Itamaraty chefiado pelo atual chanceler. Saímos do pragmatismo independente para um alinhamento automático com os EUA que atinge os píncaros do constrangimento. Sendo Biden qualquer coisa menos um “Novo Templário” capaz de salvar o Ocidente, imagem que talvez passe na inventiva mente de Araújo, com certeza teremos uma política externa que precisará se reinventar. Confio na capacidade dos quadros altamente qualificados do Itamaraty nessa missão. Não será fácil reestabelecer diretrizes e até mesmo dignidade para nossa política externa. Mas, não é tarefa impossível. Sobre Bolsonaro, na hipótese Biden, a mudança de tom “para fora” será automática. Transitará entre o cômico e o ridículo. Com Trump sendo reeleito a sabujice seguirá a despeito dos interesses brasileiros.
Roberto – Como Bolsonaro vinculou seu governo muito fortemente ao de Trump, inclusive na insana briga com China, uma derrota do presidente dos EUA é um baque muito forte para o brasileiro. Pode ter impactos negativos concretos sobre o Brasil e com isso fragilizar ainda mais Bolsonaro, inclusive porque Biden parece não eleger a China como principal inimiga. Uma vitória de Trump, ao contrário, provavelmente teria impactos positivos de pouca concretude. Seria apenas um problema a menos para sua reeleição em 2022. Mas não resolve os principais impasses de seu governo que comprometem suas perspectivas de reeleição.
Opiniões – Ninguém mais parece duvidar que a China tende a se tornar a principal potência econômica do mundo. Mas pelo poder bélico e cultural, além do econômico, os EUA ainda são e serão por algum tempo o mais próximo ao Ocidente do Império Romano na Antiguidade. Em que esta condição pode ser reforçada ou abreviada pela vitória de Biden ou Trump? Como analisa o fato de nenhum dos dois prometer armistício na guerra comercial com Pequim?
Arthur – Em termos de equilíbrio bipolar, a China substituiu a URSS com uma diferença: trata-se de uma potência capitalista com uma ditadura de partido único que se intitula comunista. Mas os marxistas não entendem esse governo como marxista. A China se tornou uma potência econômica e política sem caráter proselitista. Não há mais como ignorá-la. Não cabe mais colocá-la como bode expiatório. Não é mais possível excluir a China. Trump a colocou como inimigo número 1 dos Estados Unidos. Não convém a Biden, nesse momento, declarar que vai manter boas relações com a China, mas, se eleito, creio que relaxará as tensões entre os dois países, ao mesmo tempo restabelecendo a Parceria Transpacífica. Se Trump fosse verdadeiramente anti-chinês, não teria desfeito este acordo nem mantido uma conta em banco da China.
George – Eis uma questão curiosa. Muito curiosa. Enfrentar a influência crescente da China é o ponto de consenso entre republicanos e democratas. A despeito das ambiguidades concretas da relação China e EUA, a potência no Oriente coloca em risco as ambições imperiais dos norte-americanos. Mesmo que seja algo indisfarçável o quantitativo de empresas e capital norte-americanos atuando na China neste momento, o que gera uma simbiose entre as duas potências muito mais profunda do que qualquer retórica eleitoral poderia ser capaz de admitir. Ao mesmo tempo, tal como você coloca, há o “problema geopolítico”. A influência chinesa, a despeito da simbiose que citei, já é algo incontrolável há bastante tempo, justamente fazendo com que o grande dragão do Oriente perigosamente continue se movimentando e fazendo um tipo de movimento que os EUA não fazem: disposição e dinheiro para investir em infraestrutura nos países em desenvolvimento. Penso que poderemos ver a continuidade da disputa entre as duas potências. Mas, ao menos há a possibilidade da redução do barulho, do ruído discursivo se Biden for o vencedor da disputa pela Casa Branca. No caso de Trump reeleito, a gritaria enquanto performance se mantém, ignorando as ambiguidades concretas que indiquei há pouco nas relações econômicas entre os dois países.
Roberto – Gostando ou não, a China promove um projeto de desenvolvimento nacional que difunde ganhos de produtividade por quase os setores da economia. A superioridade bélica e a hegemonia cultural dos EUA não parecem ser suficientes para superar um concorrente que é superior em economia política. Apenas uma reorientação radical da economia americana, que rompa com o rentismo e democratize os ganhos de produtividade restritos à vanguarda da economia do conhecimento, seria capaz de mudar a tendência de a China se tornar e permanecer a maior potência econômica mundial. A vitória de Biden ou Trump fará alguma diferença se um ou outro for capaz de promover esta reorientação. O fato de nenhum dos dois sinalizar o fim da guerra comercial indica que ambos não possuem uma estratégia econômica para os EUA, o que os leva a atribuir as dificuldades da economia norte-americana apenas ao comércio injusto com a China.