Embora hoje dispute com a China a posição de economia hegemônica no mundo, a atenção que a humanidade dedica desde terça (03) às eleições presidenciais dos EUA evidencia a nação que ainda é sua maior referência. No Brasil e em Campos, não foi diferente. E a atenção foi reforçada pelo suspense da apuração lenta da única democracia que elege seus governos há mais de 230 anos. Isto e o fato do seu atual presidente, Donald Trump, ser capaz de atacar essa mesma democracia por não aceitar a ordem de despejo da Casa Branca emitida pelas urnas, inventando “fraudes” e prometendo levar a questão à Suprema Corte dos seu país. Além da celeuma, o que o Brasil governado pelo trumpista Jair Bolsonaro (sem partido) pode esperar dos EUA governados pelo democrata Joe Biden? E, em especial, o Estado do Rio e Campos? Em busca de respostas, a Folha fez perguntas ao advogado Carlos Alexandre de Azevedo Campos, ao cientista político Hamilton Garcia e à socióloga e advogada Sana Gimenes, professores, respectivamente, da Uerj e Isecensa, da Uenf, e da Uniflu e Candido Mendes.
Folha da Manhã – Após a vitória nos estados da Flórida e no Texas na eleição presidencial dos EUA, o mundo que foi dormir na madrugada de quarta (04) com a perspectiva da vitória de Donald Trump, acordou no final da manhã do mesmo dia com as esperanças acesas para Joe Biden, após a conquista do estados do Arizona e da liderança em Nevada, além da virada em Winsconsin e Michigan. Que se confirmariam na sexta com as viradas democratas também na Geórgia e na Pensilvânia? Foram muitas emoções? O que esperar pela razão?
Carlos Alexandre de Azevedo Campos – Sim, anseio pela derrota de Trump. Essa resposta inicial é sintomática: menos do que a vitória de Biden, me alegra o significado do que seja a derrota de Trump. Tenho o dever da sinceridade intelectual em minhas respostas. Daí essa resposta inicial. Vale para o resto de minhas respostas. Porém, por conta dos números, e por conhecer um pouco, por pesquisa, da prática estadunidense de votar, não dormi com a vitória de Trump, e sim com a esperança, sem certeza, da virada de Biden. Por acreditar na razão dos americanos, hora nenhuma dei como marcada a vitória de Trump.
Hamilton Garcia – No contexto de uma sociedade dividida e polarizada, como os EUA deste século, das seis eleições realizadas, somente duas foram resolvidas com folga maior que 3,8%: as que sagraram Barack Obama. É de se esperar eleições disputadas urna a urna e, sob o trumpismo, com muita retórica e algum tensionamento.
Sana Gimenes – Certamente foram muitas emoções e também muita incredulidade diante do fato de que uma das maiores democracias do mundo tenha um sistema eleitoral tão complexo e, ao mesmo tempo, arcaico. Simbolicamente, faz todo o sentido que as eleições talvez se definam pelo Estado das grandes, e arriscadas, apostas que é Nevada. Pelo lado da razão, o resultado vai ser muito apertado, mas acho que com o atual cenário já dá para acreditar na vitória dos democratas.
Folha – Desde antes da eleição, Trump alegava fraude. E declarou que vai questionar o resultado da eleição até a Suprema Corte, onde garantiu maioria conservadora. O motivo é o voto pelos correios, que existem nos EUA desde a Guerra de Secessão (1861/1865). Os democratas também recorreram à Suprema Corte em 2000, mas não conseguiram reverter a derrota de Al Gore para George W. Bush. Dá para esperar resultado diferente agora?
Carlos Alexandre – Em meu primeiro livro, que foi acerca do ativismo judicial, dediquei um capítulo só para os Estados Unidos, e um espaço grande para a decisão Bush vs. Gore (Bush vs. Gore, 531 U.S. 98 [2000]). A doutrina majoritária chama a decisão, que favoreceu Bush, de partidária, portanto, ilegítima. Não concluí dessa forma. Nas eleições de 2000, houve um impasse na contagem de votos na Flórida, haja vista a primeira apuração ter apontado vitória de Bush, por uma margem menor que 0,5%. Essa margem ínfima, segundo a legislação estadual, autoriza a recontagem manual dos votos. Al Gore pediu essa recontagem nos municípios que normalmente votavam com os Democratas, e à medida que a recontagem ocorria, a margem de vitória de Bush era ainda mais reduzida, com tendência ao final de ser revertida. O problema era que o prazo legal de anúncio do resultado iria expirar. A Suprema Corte da Flórida autorizou que esse prazo fosse estendido. E foi acusada por muitos de praticar ativismo judicial. Mas a Suprema Corte suspendeu a decisão, paralisando a recontagem. Com isso, a Suprema Corte decretou a vitória de Bush. E foi acusada de praticar ativismo judicial. Prazos, por segurança jurídica, deveriam ser respeitados. Hoje, a Suprema Corte ainda tem uma “maioria republicana”. Mas um democrata, Biden, está à frente. Será que a Corte terá o capital institucional para afirmar uma “suposta fraude” para, manifestamente, reverter a eleição em favor de um republicano? Não há base para tanto, e a mesma segurança jurídica que norteou Bush vs. Gore deve hoje iluminar a Corte para sacramentar a derrota do desespero infundado de Trump. É o que se espera do Tribunal Superior mais respeitado do mundo.
Hamilton – Nos EUA, a contestação eleitoral passa pelo sistema judiciário normal, de longa tradição, de modo que é de se esperar que hajam provas para se invalidar votos, o que pode atrasar a proclamação do resultado, mas não deve embaralhar o jogo como se tem especulado.
Sana – Não acredito que a Suprema Corte vá reverter o resultado, seja ele qual for, não apenas porque não me parece haver lastro jurídico para tanto, mas também porque no atual nível de polarização em que a nação se encontra isso seria como apagar um incêndio com querosene e poderia ameaçar a estabilidade institucional de um país que, historicamente, respeita as instituições. Apesar das divisões internas, creio que haveria até algum consenso dentro do Partido Republicano contra alegações totalmente infundadas de fraude que apenas satisfazem ao ego infantil e autoritário de Trump.
Folha – A alegação de fraude de Trump foi ecoada publicamente pelo presidente brasileiro, Jair Bolsonaro (sem partido). Após ele ter tentado se meter e contribuir na eleição da Argentina e contribuir para a derrota de Mauricio Macri, a quem apoiou, o que o Brasil tem a ganhar com a nova tentativa de interferência? E a perder, com a vitória de Biden?
Carlos Alexandre – Acho, com toda a sinceridade, que Bolsonaro não é um personagem relevante no cenário internacional. Ele não é levado à sério como liderança, ainda mais considerado o seu ministro das Relações Exteriores. Para mim, a sua opinião é nula sobre a eleição discutida. Não obstante, acredito que Biden é inteligente, e, como os Democratas, de todo sempre, não são os radicais que Trump e sua “trupe” pintam, vai abrir o diálogo com nosso presidente. Bolsonaro, que só pensa em reeleição, não vai se fechar ao diálogo com o mais importante país do mundo. Mudança, se vier, só vai ser simbólica para os radicais e cegos bolsonaristas.
Hamilton – Nada a ganhar: só demonstra o despreparo do atual presidente brasileiro, incapaz de entender um sistema jurídico-político de aparência similar ao nosso, mas radicalmente distinto em seu “espírito”, baseado num individualismo autonomista estranho à nossa tradição do favor/dependência. A possível vitória de Biden deve desestabilizar a política de alinhamento automático com os EUA, inaugurado no governo Bolsonaro, reforçando as vertentes soberanistas majoritárias em nossas elites, inclusive militares.
Sana – O Brasil não tem nada a ganhar com essa interferência, mesmo no caso de uma vitória de Trump. O presidente dos EUA já deixou bem claro, em mais de um episódio, que o “viralatismo” de Bolsonaro só serve, e quando serve, para a concessão de migalhas que em nada alteraram nossa posição geopolítica. Muito ao contrário. Quanto a uma vitória de Biden, isso enfraquece a pessoa do presidente brasileiro e, consequentemente, a sua governabilidade, mas não creio que isso atinja, a princípio, o Brasil enquanto nação, a não ser que Bolsonaro resolva assumir uma postura ainda mais radical, e kamikaze, e se alinhe de forma claramente contrária aos EUA.
Folha – Depois das declarações de Bolsonaro em apoio às teorias da conspiração de Trump, o vice-presidente brasileiro Hamilton Mourão tentou consertar as coisas. Antes da eleição presidencial dos EUA, analistas diziam que, em caso de vitória de Biden, dois ministros olavistas do governo brasileiro estariam com os dias contados: Ricardo Salles, no Meio Ambiente, e Ernesto Araújo, das Relações Exteriores. Como você projeta?
Carlos Alexandre – Essa pergunta é excelente, e só reflete a sensibilidade intelectual do entrevistador. Penso que, para manter boa relação com a maior nação do mundo, faz-se necessário se livrar de imbecis em posições estratégicas de decisão. Os dois ministros citados já demonstraram estar na contramão do que o mundo relevante pensa, sem grande oposição dos Estados Unidos. Agora terão essa oposição, sem dúvidas. Bolsonaro, que já se mostrou pragmaticamente infiel, não terá saída, senão se livrar desses pesos. É uma questão de pragmatismo, sem culpa com o eleitorado doentio.
Hamilton – O filoamericanismo e, mais recentemente, o negacionismo ambiental têm tido dificuldades de aceitação no país devido a vários fatores, o mais notável deles a ortodoxia ideológica que os sustenta e é estranha à nossa cultura. O ministro Araújo, um intelectual preparado, embora desprezado pelas elites acadêmicas, tem sua ascensão na carreira ligada ao bolsonarismo, de modo que deve se adaptar às oscilações táticas exigidas pela política externa. Já o ministro Salles, com problemas na Justiça e suplantado pelo vice Mourão na questão amazônica, parece menos capaz de sobreviver à pressão que está por vir.
Sana – Faz sentido na medida em que estamos falando de um país da magnitude dos Estados Unidos e, independentemente do alinhamento ideológico entre Bolsonaro e Biden, esses ministros dificultariam ainda mais o diálogo entre as duas nações. Por outro lado, é bom lembrar que Bolsonaro vem sistematicamente atacando a China, a despeito da importância que essa relação tem para o Brasil. O problema de governantes bufões como Bolsonaro, ou o próprio Trump, é justamente esse: não dá para esperar razoabilidade.
Folha – No debate presidencial de 29 de setembro, Biden chegou a criticar os incêndios criminosos na Amazônia. Que já tinham gerado pesadas críticas de uma Europa com sua cena política cada vez mais dominada pelos Partidos Verdes. Isso sem contar o desgaste brasileiro com a China, de quem Bolsonaro se recusa a comprar as vacinas contra a Covid-19, desenvolvida com o Butantan. Sem Trump no poder, o Brasil vira um pária internacional?
Carlos Alexandre – Bolsonaro perde o seu aliado negacionista mais importante. Na verdade, para o mundo, mais do que um aliado, perde sua base de legitimação. Em relação à Covid, sem Trump, Bolsonaro vira para o mundo aquilo que ele é, para muitos brasileiros como eu: uma piada de mau gosto. E isso porque, para agradar seus eleitores sensacionalistas e nacionalistas, ele sempre insistiu que a crise sanitária fosse uma invenção, talvez uma armadilha dos imaginários “inimigos da esquerda”. Espero que a sua hora de enfrentar a verdade também chegue.
Hamilton – Não, uma nação-pária tem que ter um histórico significativo de maus-feitos à sociedade e ao mundo, o que está longe de ser nosso caso. O que temos é um governo isolado internacionalmente, mas os governos passam.
Sana – Não acho que chegue a esse extremo, mas, de fato, o país ficaria cada vez mais isolado no cenário internacional. De todo modo, isso também faria com que setores menos extremistas da própria base aliada do governo pressionassem Bolsonaro para que determinadas políticas, como a ambiental, por exemplo, fossem revistas. Já vimos isso acontecer antes.
Folha – A eleição presidencial dos EUA foi e é apontada como a mais importante em décadas, pela capacidade de determinar os rumos do mundo. Como analisa isso e o fato dela ter gerado tanto interesse entre os brasileiros? Consumada a derrota de Trump, restará ao Brasil de Bolsonaro o diálogo só com a extrema-direita no poder na Hungria e na Polônia, países menos importantes da Europa?
Carlos Alexandre – É importante, como foi e sempre será, para o Brasil e para o mundo, porque os Estados Unidos são a mais importante nação do mundo, sob todos os aspectos. Porém, considerada a aliança conservadora entre Trump e Bolsonaro, o resultado ganhou cores mais fortes entre nós. Bolsonaro é, para o terror e amnésia de seus idólatras, muito mais pragmático do que fiel às suas bravatas de eleição. Não é liberal, e seu conservadorismo extremo vai até a página dois, ou até as manchetes de carnaval, se isso lhe convier. Não vai se isolar com países desimportantes, considerado o cenário internacional, se isso vier a atrapalhar sua agenda econômica.
Hamilton – O rumo do mundo está sendo definido pela reemergência da Ásia, iniciada pelo Japão e depois engrossada pelos “tigres” e, a seguir, pela China. A ascensão chinesa tem um peso inédito, dado o tamanho de sua população, a tradição de nação fechada ao mundo e ao fato de ser uma potência dirigida por um partido único, comunista, uma combinação desafiadora em termos geopolíticos para as potências ocidentais. A China não precisa fazer muito para se consolidar como potência hegemônica: basta refrear seu ímpeto territorialista, no Sul asiático, até que as contradições inerentes às civilizações decadentes cimentem o caminho de uma nova ordem mundial onde seu poderio econômico passe a dar as cartas, com os desdobramentos militares costumeiros.
Sana – As eleições dos EUA sempre despertaram interesse no resto do mundo em razão da influência internacional que esse país tem. Nessa eleição presidencial, porém, estão à prova dois fenômenos globalmente observados nos últimos anos: a popularidade de políticos que negam a lógica e o decoro da política tradicional, sob a alegação de que seriam mais honestos e eficientes, e também a ascensão de um discurso de extrema-direita que prega a intolerância e a desigualdade. Consumada a derrota de Trump, veremos que esses dois fenômenos, apesar de barulhentos, mostraram muito precocemente os seus sérios limites até para os seus eleitores. Restará a Bolsonaro baixar o tom ou se alinhar com os países mencionados, mas essa segunda opção certamente traria ainda mais dificuldades para o seu governo.
Folha – O interesse dos brasileiros gerou comparações do processo eleitoral dos EUA, com apuração lenta pelos votos em cédula de papel e do complexo sistema do colégio eleitoral, com o nosso, com urnas eletrônicas e que define o presidente pelo voto direto do cidadão. Como avalia essa comparação? Sobretudo com a possibilidade de questionamento das urnas no Judiciário, faz falta aos EUA a existência de uma Justiça Eleitoral?
Carlos Alexandre – Não faz falta. Isso é cultura institucional. Até porque, lá não são definidos apenas cargos de governo. As eleições, que são comandas pelos Estados, não envolvem apenas representantes de governo, mas vários plebiscitos sobre questões morais e políticas cruciais, como aborto, armas, drogas, casamento gay, etc. É impossível a comparação. No mais, o Colégio Eleitoral é uma prática secular que sempre foi aceita como a mais democrática, sem grandes questionamentos internos. Discussões existiram, inclusive na Suprema Corte, sobre o peso do voto em cada distrito eleitoral, mas nunca sobre o método da eleição.
Hamilton – A democracia americana é incomparavelmente melhor e mais sólida que a nossa. Não só pela perenidade de suas instituições, a Constituição deles data da fundação da nação em 1787, numa guerra independentista, enquanto nós tivemos sete delas desde nossa fundação como Estado, em 1822, a partir da cisão da Coroa lusitana. Mas tamém pelo fato dessas insituições derivarem da rica e dramática experiência de um povo majoritariamente livre, o que lhes permitiu sobreviver a uma guerra civil. A vantagem advinda de nosso vanguardismo no voto eletrônico, não nos iludamos, é fruto da corrupção endêmica que existe até hoje e nos impede, por exemplo, de votar pelo correio, o que constitui um nítido e singelo sinal de elevada cidadania.
Sana – O sistema eleitoral dos EUA não faz jus à sua democracia. São inúmeros problemas como: a inexistência de normas eleitorais unificadas em nível nacional, a sub-representação dos Estados mais populosos da Federação, além do próprio modelo de votação majoritariamente por cédulas em uma nação de dimensões continentais. Temos um sistema que também pode ter falhas, mas está muito mais próximo da compreensão popular, que é o cerne da própria democracia, além de ser modernamente operado através de urnas eletrônicas e efetivado por meio de uma estrutura jurídica própria.
Folha – Parece ser consenso que, mais do que Biden, foi a atuação desastrosa de Trump no enfrentamento dos EUA à pandemia da Covid-19 que definiu a eleição presidencial deles. Concorda? E, com atuação igualmente questionada na condução da crise sanitária do novo coronavírus, por que esse mesmo desgaste popular não se deu também com Bolsonaro?
Carlos Alexandre – Concordo que o negacionismo prejudicou Trump em sua reeleição. Porém, discordo que o mesmo negacionismo não tenha prejudicado a credibilidade eleitoral de Bolsonaro. E isso porque, descontando os afetados pelo bolsonarismo extremo, ainda acredito no bom senso, no sentido do ridículo dos brasileiros. Bolsonaro ainda pagará a sua conta.
Hamilton – Trump jogou fora a segurança de sua reeleição porque não tinha como “emparedar” o vírus, precisando fazer algo além da espetacularidade com a qual governou até então. Já Bolsonaro é incapaz até mesmo de qualquer espetacularidade; não só porque pilota um Estado geopoliticamente fraco e economicamente falido, mas, sobretudo, por ter uma dimensão baixo-clericalista do poder, forjada no varejo das “rachadinhas” e nos subterrâneos da corporação onde se formou.
Sana – O posicionamento anti-Trump vem crescendo. Ele reúne, inclusive, alas do próprio Partido Republicano. Essa aversão está ligada a fatores mais amplos do que a questão da pandemia, que vão desde o desprezo às suas posições sexistas, racistas e homofóbicas, até sua condução da política externa e ambiental. De todo modo, é certo que a atuação desastrosa de Trump no enfrentamento à Covid-19 acirrou esse posicionamento, lembrando que os EUA são, hoje, o país mais atingido pela pandemia. Nossa realidade é distinta porque além de termos um sistema de saúde gratuito e universal, o que mitiga os efeitos dessa crise sanitária, também há uma vinculação muito mais direta da população aos serviços de saúde municipais, ou até mesmo estaduais e, consequentemente, aos seus governantes.
Folha – No último debate presidencial dos EUA, em 22 de outubro, Biden prometeu marcar seu governo pela transição da matriz energética do petróleo para alternativas limpas, como a solar e a eólica. Caso isso se cumpra, como poderia afetar diretamente Campos, municípios vizinhos e o Estado do Rio, cuja mais parte da arrecadação ainda é de receitas petrolíferas?
Carlos Alexandre – As coisas boas demoram a chegar aqui. Às vezes, mais de um século! Não vejo qualquer efeito imediato de substituição, nem mesmo a longo prazo. Mas que ótimo seria se esse discurso incentivasse os brasileiros a buscarem fontes mais limpas, e os governos locais a incentivarem essa prática, e a transformarem isso em meio de recursos tributários novos. Em vez de substituição imediata, deveríamos pensar em complementação em médio e longo prazo, e em substituição, se um dia ocorresse, como política de futuro.
Hamilton – A princípio, a saída dos EUA da oferta tenderia a melhorar o preço da commodity, o que beneficiaria os outros produtores no curto prazo. Por outro lado, no longo, aceleraria a substituição das tecnologias demandadoras de combustíveis fósseis por de outras fontes, o que nos prejudicaria.
Sana – Não acredito que haveria efeitos tão diretos, principalmente, a curto ou médio prazo. O processo de transição da matriz energética não se dá forma tão rápida e ainda tendo a achar que o discurso de Biden nesse sentido é um tanto mais retórico do que prático. Ele, de fato, tem a preservação ambiental como uma de suas bandeiras, o que, por si só, já é um grande avanço, mas se não for possível conciliá-la com o desenvolvimento capitalista, é esse último que prevalecerá sem dúvida alguma.
Folha – Goste-se ou não dos EUA, o fato histórico é que eles são a mais longeva e importante democracia representativa do mundo. E são sua principal referência ao Ocidente, por mais que a ditadura da China tenha importância econômica internacional. Como essa influência se manterá em um país que, independente do resultado final, sai de uma eleição presidencial absolutamente dividido? Como projeta o futuro dos EUA para eles e o mundo?
Carlos Alexandre – Essa pergunta vale uma dissertação. Qualquer resposta resumida é historicamente incompleta. Mas vamos lá: essa nação foi forjada em separação de poderes e bipartidarismo forte. Tirando George Washington, neutro, os EUA foram criados por gênios contrapostos: por exemplo, Jefferson e Madison, de um lado, Adams e Hamilton, de outro. Esses quatro maiores teóricos e políticos da história nos ensinaram que uma grande nação se faz sob dois pontos: forte divisão intelectual sobre o que é governar, pois democracia é oposição forte; respeito ao que decidido pelo the people themselves (“as próprias pessoas”) o que significa que, até a próxima eleição, vale a decisão do representante eleito. Essas são as bases da longevidade democrática dos EUA. Sem Trump e seus extremismos, vejo um futuro mais tolerante para todos.
Hamilton – A democracia americana está mais preparada e equipada para enfrentar a crise hegemônica do Ocidente que as demais potências, mas precisará acertar nas respostas para manter seu protagonismo; o que parece difícil a julgar por suas práticas externas desde o fim da URSS e a fixação interna de suas elites intelectuais em pautas centrífugas.
Sana – Independentemente do resultado das eleições, o fato de a disputa estar tão acirrada parece apontar que o discurso virulento e irracional da extrema-direita começa a perder força. Com a vitória de Biden, ainda que a polarização permaneça, ele pode mostrar que, a despeito do que tem prevalecido no imaginário social, uma política mais progressista também pode ser economicamente eficiente. Para que a perda de influência dos EUA sobre o resto do mundo seja realmente palpável, teríamos que ter uma crise institucional interna em níveis nunca antes vistos. Lembrando que, a despeito de qualquer resultado eleitoral, a China hoje já é a maior economia do mundo.