A eleição a presidente dos EUA sempre chamou a atenção do mundo. Mas nunca tanto quanto a de 2020, vencida pelo democrata Joe Biden sobre o polêmico republicano Donald Trump — primeiro presidente a perder a reeleição em seu país desde George Bush para Bill Clinton, em 1992, há 28 anos. No Brasil e em Campos, o interesse não foi diferente, e chegou a se igualar ao gerado pelas eleições municipais de 15 de novembro. Doze dias antes, o pleito presidencial estadunidense se deu em 3 de novembro. Mas com cédulas de papel e apuração manual, onde se vota de membro de conselho tutelar a presidente, o resultado só seria confirmado (confira aqui) no dia 7. Ao leitor da Folha da Manhã, a certeza foi dada (relembre aqui) um dia antes (06), desde que a fatura do complexo colégio eleitoral dos EUA foi matematicamente definida com a virada democrata no estado da Geórgia, tradicionalmente republicano. No resultado final, totalizado só em 13 de novembro, a vitória de Biden foi incontestável: 306 votos dos delegados estaduais, contra apenas 232 de Trump. No voto popular, em que Trump já havia perdido em 2016, a diferença quatro anos depois foi ainda maior: 7 milhões de eleitores a mais para Biden.
O adiantamento de um jornal de Campos à mídia internacional, sobre o resultado da eleição ao cargo mais importante da Terra, não se deu por acaso. Mas, em 6 de novembro, culminou uma cobertura jornalística em tempo real, que se iniciou desde as convenções democrata (confira aqui) e republicana (confira aqui) de agosto. E passou pelos debates presidenciais de 29 de setembro (confira aqui) e 22 de outubro (confira aqui), até chegar à eleição e sua lenta apuração (confira aqui, aqui, aqui e aqui). Prevista em todas as pesquisas, Trump chamou sua derrota de “fraude”, sem apresentar uma única prova e com derrotas em todas suas ações na Justiça.
O artifício de Trump também era previsível. Sabendo que perderia, ele conclamou seus eleitores a votarem no dia do pleito, expondo-os ao risco de contaminação pela Covid. E acusou de “fraude” os votos antecipados pelos Correios, estimulados pelos democratas para proteger a população, prática do país desde sua Guerra Civil (1861/1865) e que havia sido autorizado por sua Suprema Corte. Como os votos presenciais são contabilizados antes, Trump apostou na vantagem inicial, como de fato se deu, para tentar parar a apuração nos estados com denúncias sem provas de “fraude”, antes de entrarem os votos pelos Correios.
A tática trumpista deu tão errado, eleitoral e juridicamente, quanto sua estratégia sanitária de combate à Covid-19, considerada responsável pelos EUA serem o país do mundo mais afetado pela doença. Que, com suas devastadoras consequências também econômicas, foi o principal adversário de Trump, não Biden. Coube a este apostar na esperança e na promessa de enfrentamento franco à pandemia, subordinado à ciência. E não ao seu negacionismo por ideologia política que pode ainda viralizar como fake news nas redes sociais, mas é incapaz de combater um vírus real, no mundo real. Presidente eleito mais velho da história dos EUA, o democrata venceu nas urnas com 77 anos e assumirá a Casa Branca em 20 de janeiro aos 78, após aniversariar em 20 de novembro.
Vice-presidente nos dois mandatos de Barack Obama, Biden elegeu na sua chapa uma ex-adversária dura nas primárias democratas, a ex-senadora da Califórnia Kamala Harris, como a primeira mulher, primeira negra e primeira de ascendência asiática, como vice-presidente dos EUA. Os jovens que tomaram as ruas do país no movimento “Black Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”), após a morte do negro George Floyd por um policial branco em 25 de maio, entenderam o recado. E, em um país onde o voto não é obrigatório, compareceram em massa nas urnas de novembro. Assim como os negros, a quem o presidente eleito dos EUA agradeceu por sempre tê-lo apoiado em seu discurso de vitória.
Considerado um moderado em seus 47 anos de vida pública, Biden acenou à diversidade de gênero, além da racial. Tanto no discurso de vitória, quanto na sua equipe de transição, à qual nomeou Shawn Skelly, militar veterana transexual, para um dos setores mais emblemáticos ao poder que os EUA ainda exercem no mundo: seu Departamento de Defesa. Além das questões identitárias, o presidente eleito fez promessas ousadas enquanto candidato: além de enfrentar a Covid, revitalizar o Obama Care dilapidado por Trump em um país sem SUS, taxar as grandes fortunas para bancar a assistência social aos mais pobres e impor um salário mínimo aos EUA de US$ 15 por hora. E o democrata será tão cobrado para implementá-las, quanto se não surtirem o efeito desejado, após assumir a Casa Branca.
Fruto da primeira revolução do Iluminismo, com sua mesma Constituição aprovada desde 1787, elegendo George Washington seu primeiro presidente em 1789 — quando só então se deu a Revolução Francesa —, os EUA são a democracia mais longeva do mundo. E, nestes mais de 230 anos, Trump foi seu primeiro presidente a usar a Casa Branca como palco do lançamento da sua candidatura à reeleição. Como foi o primeiro ao não admitir sua derrota nas urnas, o primeiro a atacar sua própria democracia e, ao fazê-lo, o primeiro a ter um pronunciamento ao vivo cortado, por mentir descaradamente, pelas principais redes de TV do seu país. Mesmo com o apoio do governo democrata Lyndon Johnson ao golpe militar no Brasil em 1964, em plena Guerra Fria (1947/1991), Trump também foi o primeiro a permitir tanto a aproximação de um presidente brasileiro: seu fã confesso Jair Messias Bolsonaro (sem partido).
Estimulado por essa proximidade pessoal com Trump, que só rendeu vantagens comerciais aos EUA e nenhuma ao Brasil, será difícil que Bolsonaro e seus apoiadores voltem, por exemplo, a ameaçar veladamente um golpe militar, como fizeram em manifestações públicas em abril e maio de 2020. Após Biden assumir o poder em 2021, a “brincadeira” bolsonarista de golpe acaba — por bem ou por mal. Sobretudo após o presidente brasileiro ameaçar os EUA com “pólvora” em 11 de novembro. E ser repreendido internamente pelo núcleo militar do seu governo, por ter conseguido ridicularizar as Forças Armadas Brasileiras em todo o mundo.
A bravata foi uma tentativa de resposta a Biden, já presidente eleito dos EUA, que aventou punir o Brasil com sanções comerciais, caso não cessem as queimadas criminosas da Amazônia. Só que o democrata disse isso quando ainda era candidato, no debate com Trump de 29 de setembro, 43 dias antes da “ameaça” de Bolsonaro. O que não torna tão estranho que o presidente brasileiro só tenha admitido a vitória eleitoral de Biden em 15 de dezembro, 44 dias após seu anúncio oficial. O tempo de reação do capitão teve retardo quase igual.
Enquanto comete sucessivos erros que atrasam também a vacinação da população brasileira contra a Covid, que até Trump tentou abreviar nos EUA, Bolsonaro pode ser obrigado a repensar a presença em seu governo de ministros negacionistas como Ernesto Araújo, nas Relações Exteriores, e Ricardo Salles, no Meio Ambiente. Além de reafirmar que seu governo exercerá liderança firme no combate ao aquecimento global, Biden nomeou John Kerry como seu “czar do clima”.
Ex-governador e ex-senador de Massachusetts, ex-candidato democrata a presidente em 2004 — quando perdeu por diferença inferior a Trump em 2020 — e ex-secretário de Estado do governo Obama, Kerry é também um veterano condecorado por bravura na Guerra do Vietnã (1955/1975). Que se tornou um líder no movimento contra aquela guerra, ao voltar ao seu país e entrar na política. O “czar do clima” de Biden tem o seu aval. E muito mais experiência de fogo que Bolsonaro. A partir de 20 de janeiro, quando mudam os ocupantes e os rumos da Casa Branca, 2021 promete. Aos EUA e ao mundo.
Publicado hoje (30) na Folha da Manhã
Carlos Augusto Souto de Alencar
30 dez 2020Excelente análise, caro Aluysio Abreu Barbosa. A vitória de Biden foi uma vitória da Democracia em nivel global. Mas não podemos desprezar o fato de que ela ainda está sob ataque. Os Estados Unidos ainda irão conviver com as viúvas e viúvos trumpistas que são, sim, perigosos. O sistema jurídico estadunidense deve agir a fim de punir os crimes tributários de Trump e reduzir o poder dos negacionistas e aloprados. É preciso, também, punir os criminosos que utilizam as redes sociaus para disseminar ódio e mentiras. A defesa da Democracia deve ser constante. Os abutres não cansam de ansiar por censura, violência e ignorância. E lembremos que a influência chinesa só aumenta, e Trump auxiliou muito isto com seu negacionismó e seu isolacionismo, E a China é uma ditadura cruel. Temo pelo exemplo que ela pode representar em longo prazo. Portanto a vigilância se mantém. Mas, pelo menos, nos livramos do principal lider bizarro e assombroso. Mas outros ainda se mantém. Feliz 2021. Tenho escrito haicais. “No chão, antes triste,/um broto surge valente/cheio de esperança.” Saudações fraternas.