Do Planalto Central à planície goitacá, qual o impacto da Covid-19? Qual o peso dos mais de 303 mil mortos pela doença no Brasil, 815 deles só em Campos, também na política, na economia, na religião e na educação do país e da cidade? Quais as principais causas e consequências em todas essas áreas? Como chegamos até aqui, onde estamos, como e até quando iremos nessa tragédia já sem precedentes? Para tentar responder estas perguntas, dentro da multidisciplinaridade necessária às respostas, a Folha ouviu em ordem alfabética o especialista em finanças Igor Franco, professor da Estácio; o biólogo Leandro Monteiro, professor da Uenf; o médico infectologista Nélio Artiles, professor da FMC; o bispo diocesano de Campos, Dom Roberto Ferrería Paz, professor do Instituto Sedes Sapientiae e da Escola Mater Ecclesiae; a advogada e socióloga Sana Gimenes, professora da Uniflu e da Candido Mendes; e o cientista político Vitor Peixoto, outro professor da Uenf. Em todas as áreas, a unanimidade da culpa maior ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) se espraia até Campos, que o elegeu com 64,87% dos seus votos válidos no segundo turno de 2018 e ontem entrou em Fase Vermelha, a mais grave desde o início da pandemia na cidade, com 14 doentes à espera de UTI, comércio não essencial fechado e templos religiosos abertos.
Folha da Manhã – Até o início da semana, mais de 12,2 milhões de brasileiros tinham recebido a primeira dose da vacina, entre os quais 4,2 milhões tinham tomado a segunda. Para chegar à imunidade de rebanho no país, seria necessário vacinar o mínimo de 70% da população, ou 146,6 milhões dos 209,5 milhões de brasileiros. No atual ritmo, quando chegaremos lá? O quanto dessa lentidão se deve à postura negacionista do governo Jair Bolsonaro (sem partido)?
Igor Franco – A inércia do Governo Federal na aquisição das vacinas quando da primeira oferta das farmacêuticas cobra seu preço em vidas numa velocidade assustadora. Países da Europa ainda não conseguiram acelerar seus programas de vacinação de forma satisfatória, o que me leva a ser cético sobre a nossa capacidade de administrar número suficiente de vacinas até o fim do primeiro semestre. Para a segunda metade de 2020, porém, conforme os programas internacionais avancem, devem sobrar doses em número mais elevado.
Leandro Monteiro – No atual ritmo, aproximadamente um ano e meio. Mas este ritmo deve ser modificado ao longo do próximo semestre. Quando comparamos o ritmo de vacinação do Brasil com outros países, é possível perceber que poderíamos estar bem mais adiantados, caso o governo federal tivesse se empenhado em assegurar contratos para a compra de vacinas. Em vez disso, houve um investimento em tratamentos sem comprovação científica e a antagonização de governos estrangeiros dos quais dependemos para a aquisição dos insumos.
Nélio Artiles – Assim como este vírus compromete o olfato e do sabor, também vem mexendo na atitude e comportamento das pessoas, principalmente políticos que têm uma imensa dificuldade de enxergar o futuro. Estamos hoje no final de uma fila, ajoelhados suplicando vacinas, pois elas não foram devidamente valorizadas e suas aquisições não foram planejadas no tempo adequado. Neste ritmo atual teremos sérios problemas durante todo este ano de 2021, com colapso crônico de nosso sistema de saúde e muitas perdas de brasileiros.
Dom Roberto Ferrería Paz – É difícil uma estimativa realista de quando chegaremos a completar a vacinação do 70% da população. A responsabilidade do atraso é sem dúvida imputável a falta de planejamento, negacionismo da gravidade da pandemia, divergências e bloqueios a medidas e estratégias sanitárias por parte do comando maior do país, como afirmou o general Santos Cruz. Há certamente fatores colaterais e incidentais como o sucateamento do SUS e a novela dos hospitais de campanha que envolve corrupção e desvios.
Sana Gimenes – Caso todas as vacinas previstas em contrato sejam, de fato, distribuídas à população, a previsão é de que teríamos a imunidade de rebanho no final do ano. Mas é bom que se diga que qualquer avanço ocorre a despeito do governo Bolsonaro, sendo fruto dos esforços de outros agentes políticos e do engajamento dos cientistas. A postura negacionista do presidente contribuiu não apenas para a disseminação do vírus, e para as consequentes mortes, tendo em vista sua relutância em adquirir os imunizantes por razões ideológicas.
Vitor Peixoto – Se dependesse exclusivamente do governo federal, certamente, levaríamos muitos anos para atingir 70% da população, talvez nem alcançaríamos antes de novas mutações tornarem as vacinas obsoletas. O Brasil se tornou uma vergonha para o mundo no que tange à administração da pandemia dada a atuação negacionista e obscurantista do presidente da República, que somente não produziu efeitos ainda mais nefastos pelos freios impostos pelas instituições de controle judicial e de saúde pública, como STF e SUS.
Folha – As pesquisas mostram o desgaste na popularidade de Bolsonaro, que, no entanto, mantém base expressiva. Segundo a Datafolha, apesar de 54% dos brasileiros condenarem o presidente na condução da pandemia, os 22% que aprovam sobem a 30% que acham seu governo ótimo ou bom. Como isso bastaria, em tese, para levá-lo ao 2º turno em 2022, tem esperança de que algo mude na realidade que transformou o Brasil no principal epicentro mundial da doença?
Igor – Após o avassalador aumento das mortes, espero números mais deteriorados de popularidade do presidente na próxima pesquisa. A piora na percepção da população quanto à condução na pandemia parece ter alertado o Planalto. Diversas notícias de bastidores dão conta da pressão de assessores pela mudança da postura do presidente. Mesmo que por instinto de sobrevivência política, parece que o Bolsonaro adaptará seu discurso, mas não espero uma mudança completa com falas apoiando as medidas de distanciamento, por exemplo.
Leandro – Tendo em vista o histórico de atitudes do Poder Executivo na pandemia, acho difícil que haja uma mudança radical de direção. Houve momentos em que parecia haver uma sensibilização ou aumento de pressão externa, dos outros Poderes e da sociedade. Mas logo em seguida duplicava a aposta em medidas e propagandas que maximizavam a contaminação, buscando uma elusiva “imunidade de rebanho” que acabou custando caro em vidas. Mudar de atitude poderia comprometer a aprovação do presidente junto ao seu eleitorado mais fiel.
Nélio – O Brasil tem sido destaque no cenário internacional, infelizmente de forma negativa. Como um país que não teve a competência para se preparar adequadamente e muito menos na ação de enfrentamento da pandemia. A verdade e as evidências sempre aparecem, mesmo que tardem, lamentavelmente às custas obviamente de um número maior de vítimas. Independente do gestor no comando da nação, deverá ser pressionado a seguir as evidências científicas, ou sofrerá consequências, tanto em nível nacional quanto internacional.
Dom Roberto – Sim, o próprio cenário da tragédia gritará por si, que para reconstruir o país em ruínas precisaremos de uma liderança democrática com um programa de salvação nacional capaz de agregar a todos os segmentos sociais em um grande pacto pelo desenvolvimento integral solidário, inclusivo e sustentável, tarefa impossível para o atual presidente e a falta de apoio internacional. A esperança será sim que a população faça desta feita uma escolha consciente e lúcida pensando não só no presente imediato, mas nas próximas gerações.
Sana – Há vezes em que o presidente até parece acenar à racionalidade, mas ato contínuo apresenta algum comportamento reprovável que continua produzindo desinformação e caos. Esses breves lampejos de civilidade não parecem ser genuínos, mas consequência do desgaste que poderia ameaçar sua permanência no poder. Sua mudança mentirosa de narrativa sobre as ações do Governo Federal frente à pandemia, por exemplo, é uma reação clara ao crescimento vertiginoso da culpabilização da gestão Bolsonaro pelo descontrole da crise sanitária.
Vitor – No Brasil é difícil fazer previsões políticas com horas de antecedência, imagina sobre uma eleição que ocorrerá daqui a 20 meses! Mas o governo Bolsonaro terá dias muito difíceis pela frente com as expectativas muito negativas sobre o crescimento econômico, altos índices de desemprego, inflação e crise fiscal conjugada a um contingente de milhares de vidas dilaceradas pela dor da perda de um familiar que poderia ter sido evitada com a vacinação.
Folha – Na quarta (24), o presidente da Câmara Federal, eleito com apoio do Palácio do Planalto, Arthur Lira (PP/AL) evitou usar a palavra impeachment, mas claramente advertiu: “Tudo tem limite, tudo. E o limite do parlamento brasileiro, a Casa do Povo, é quando o mínimo de sensatez em relação ao povo não está sendo obedecido”. A condução de Bolsonaro do enfrentamento à pandemia finalmente chegou ao limite dos demais Poderes da República?
Igor – Os recentes acontecimentos, o discurso de Arthur Lira, a reunião entre os Poderes, o pronunciamento recente do presidente, parecem indicar um esgarçamento da relação entre a alta cúpula do Congresso e do Judiciário com o Executivo. Seja por cálculo político, seja pelo temor gerado após a morte do senador Major Olímpio (PSL/SP), Brasília parece ter despertado para a necessidade de uma coordenação nacional para o enfrentamento à Covid. Os 300 mil mortos e um ano de via-crúcis trilhada pelos brasileiros nos dão a dimensão da qualidade das figuras públicas que temos atualmente na cúpula dos Poderes.
Leandro – Impressiona é o quanto foi permitido o alargamento desse limite ao longo da pandemia. No cálculo do epidemiologista Pedro Hallal, se o Brasil tivesse um número de mortos proporcional à sua população em relação ao mundo, de 2,7%, ainda não teríamos 80 mil mortos. O “excesso” de 220 mil decorre da negligência dos governantes. Infelizmente a vida vale pouco aqui, principalmente nas classes menos favorecidas. Mas espero que esse discurso represente um posicionamento mais sólido da Câmara daqui em diante.
Nélio – Bolsonaro vem mudando o tom, visando melhorar sua imagem para 2022. Porém, a imprensa tão atacada, que tem importância fundamental em dar voz à ciência, registra os fatos. A falta de habilidade na condução da pandemia se traduz em consequências graves. São mais de 300 mil mortes com promoção de aglomerações e desdém à ciência, principalmente na recomendação do distanciamento e do uso de máscaras, acrescidas do investimento em tratamentos precoces descartados por todas as autoridades científicas mundiais.
Dom Roberto – A frase do deputado Artur Lira pode ter impacto quanto a um maior controle e participação do Congresso na condução do combate à Covid, e na superação da crise sanitária e seus efeitos socioeconômicos. Porém, é prematuro pensar que seja um indício para uma solução política com alternância do chefe do Executivo. Trata-se de uma fala significativa que expressa exaustão, necessidade de limites, alteração da rota de condução, se é que existe. Em todo caso mostra o que todos sentimos: é necessário dar um basta!
Sana – Acho que o Centrão ainda está longe de pular do barco do governo Bolsonaro, mas a advertência de Lira indicou que não é mais possível o presidente insistir em determinadas condutas. Mostrou que até o fisiologismo tem limites. A carta assinada por mais de 1.500 economistas e banqueiros, apontando os erros de Bolsonaro, é um indicativo de que ele deverá se ajustar. Talvez faça mudanças pontuais, como exonerar o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Mas, se a escalada de mortes continuar, sua situação fica insustentável.
Vitor – Sempre existiu a ilusão de que o Bolsonaro seria moderado pelas instituições. Houve alguns freios impostos pelo STF, pelos governadores e, agora, pelo Centrão, mas todos isolados e descoordenados. O presidente tem uma caraterística destrutiva e desestabilizadora. Neste sentido, ele encontrou no vírus um aliado. Os atores políticos começam a perceber que a manutenção do governo é uma ameaça real à vida. Bolsonaro é um presidente que declarou guerra ao seu próprio povo. O impeachment é uma questão de sobrevivência, literalmente.
Folha – Devido ao desrespeito das regras de restrição e à vacinação lenta, especialistas consideram o Brasil um celeiro da Covid. Tanto no país, onde já matou mais de 300 mil, quanto na criação de novas cepas do vírus, por mutações, como a P1 de Manaus, a P2 do Rio e a N9 do Nordeste. O que dizer dessas variantes? Qual pode ser a consequência no mundo ao país que lhes serve de incubadora? Embargos comerciais e a Corte Penal Internacional de Haia aos responsáveis?
Igor – Acredito que novas variantes continuarão a surgir no Brasil e no mundo enquanto o surto de Covid não for contido. Temos boas notícias quanto à eficácia das vacinas atuais contra tais mutações, mas não podemos descartar que determinada alteração no vírus consiga escapar do mecanismo de prevenção atual. Só a aceleração da vacinação diminuirá essa possibilidade. Embora possíveis, imagino que punições internacionais não seriam as primeiras alternativas contra o país, mas sim algum tipo de oferta solidária de vacinas e medicamentos.
Leandro – Estamos pagando o preço pelo governo brasileiro ter buscado a imunidade de rebanho. A contaminação descontrolada aumentou as oportunidades ao aparecimento de mutações, com maiores taxas de transmissão. A vacinação lenta e as altas taxas de contaminação podem também criar variantes resistentes às vacinas, comprometendo o esforço global. O efeito disso pode ser um cerco sanitário ao Brasil, que já começa a se impor. A punição dos responsáveis na Corte de Haia seria desejável, mas não acho que vá acontecer.
Nélio – As mutações vão se multiplicando à proporção que a doença se espalha no país, nos transformando em uma fonte de vírus modificados para o mundo. A maioria das mutações até o momento se relaciona a uma maior atração das proteínas de superfície com as células, provocando maior penetração, levando a uma viremia mais expressiva e ao adoecimento mais severo. Somos prisioneiros do resultado de nossas atitudes e comportamentos e certamente haverá um julgamento futuro de todos os responsáveis pelo colapso que estamos passando.
Dom Roberto – O povo brasileiro não pode pagar a conta, pois é vítima da insanidade de políticas necrófilas. A ONU e demais entidades, especialmente a OMS, devem ajudar a desconstruir o celeiro, facilitando a chegada de vacinas e insumos. Os boicotes comerciais são eficazes, mas têm efeitos danosos para economia. As cortes penais internacionais têm efeito contra autoridades responsáveis por crimes contra a humanidade. A pressão deve ser dupla: interna através das instituições democráticas; e externa, nos cenários de decisão internacional.
Sana – Não acredito que Bolsonaro possa ser responsabilizado pessoalmente pelo Tribunal Penal Internacional que, historicamente, julga crimes de guerra e contra humanidade que ocorrem de maneira sistematizada. A Corte Interamericana de Direito Humanos, por outro lado, poderia responsabilizar o Estado brasileiro até mesmo pela negligência no combate ao vírus. Já as sanções econômicas, embora possam ser aplicadas, também causam sérios impactos humanitários o que, em um contexto de pandemia, seria negativo à comunidade internacional.
Vitor – Não sou habilitado para conjecturar sobre as características biológicas das variantes. O que posso afirmar é que teremos impactos sérios na política internacional. As retaliações virão e o comércio internacional, muito provavelmente, será o primeiro a sentir, porque tudo que os competidores do Brasil precisam é de motivos para justificarem embargos aos nossos produtos e subsídios aos produtores deles. E o governo Bolsonaro é uma fonte inesgotável de motivos, seja na questão ambiental, seja na administração da pandemia.
Folha – Em todo mundo, a crise sanitária vem acompanhada de crise econômica. Muito embora, todos os estudos mostrem que, tanto agora quanto na pandemia anterior da Gripe Espanhola (1918/1920), os países mais rígidos no enfrentamento à doença têm recuperação econômica mais rápida. Com a volta da inflação no Brasil, queda do PIB, alta do dólar e da taxa de juros, o que esperar pela frente? Como isso pode influenciar o combate à Covid e as eleições de 2022?
Igor – A aceleração da pandemia agravou o quadro fiscal, continua a desorganizar os setores produtivos e aumenta o risco político. O resultado é um cenário em que o câmbio se deprecia de forma acelerada, a inflação dispara e somos obrigados a subir juros enquanto outros países mantêm políticas monetárias relaxadas para estimular a economia. Não haverá solução fácil para esses problemas e a má condução política e econômica pode gerar um cenário de pressão social semelhante a 2015. O risco de uma evolução extremamente negativa aumentou.
Leandro – Quem se recusa a aprender com a História está fadado a repetir os mesmos erros. Não faltaram análises, no início da pandemia, mostrando a necessidade de reduzir o contágio e prover alternativa econômica à população, na forma do auxílio emergencial. O Brasil foi vagaroso nessas medidas. E criou um círculo vicioso onde as pessoas não se protegeram por não terem condições financeiras, prolongando a crise sanitária e piorando a economia, o que faz as pessoas continuarem se arriscando. Espero que a memória não nos falte em 2022.
Nélio – A falta de estrutura e de políticas de saúde adequadas foram expostas de uma forma mais aguda e contundente. O baixo investimento em saúde e educação, assim como a má distribuição dos recursos, foram sem dúvida fatores que contribuíram para estarmos na atual situação da pandemia. Precisamos rever nossos conceitos e buscar uma mudança de rumos para a retomada do crescimento do país, que passa pela moralização da política nacional e sem dúvida passa pelo processo eleitoral de 2022.
Dom Roberto – Pode tornar-se um ciclo vicioso: a pandemia leva a fragilização da economia, e a fragilização da economia leva a prolongar a pandemia. O planejamento e as políticas públicas poderiam afinar uma sinergia positiva, uma economia adaptada a realidade da pandemia. As crises são também momentos de inovação da economia, tornando-a mais voltada ao empreendorismo social, desenvolvendo as cadeias produtivas locais. A economia de Francisco proporciona uma verdadeira usina de experiências surgidas da conjuntura da pandemia.
Sana – O governo Bolsonaro defendeu desde o começo da pandemia o discurso de que a economia não poderia parar, porém, esse mesmo governo não ofereceu as condições necessárias e eficazes para tanto. Nos últimos dias, temos visto uma leve sinalização de que, finalmente, medidas mais técnicas serão adotadas pela União no combate à Covid. Ainda assim, não sei se serão suficientes para sustentar uma reeleição, já que, além do empobrecimento, a população está pagando com a própria vida pela ideologia e pelos erros do presidente.
Vitor – As expectativas econômicas são muito ruins, especialmente no Brasil dadas as péssimas escolhas feitas. Será um teste de fogo para o governo Bolsonaro, que muitos analistas já especulam que nem no segundo turno poderá chegar. Eu arriscaria dizer que, em situação normal, com todos estes erros que produzem consequências catastróficas para o país, esse governo não chegaria nem mesmo em 2022. Mas não estamos em uma situação normal.
Folha – Desde a recessão de 2015, fruto do governo Dilma Rousseff (PT), além da queda nas receitas do petróleo a partir do final de 2014, a decadência do outrora pujante comércio de Campos se reflete nas suas muitas portas fechadas, do Centro à periferia. A coisa piorou após o primeiro lockdown pelo ex-prefeito Rafael Diniz (Cidadania), entre maio e junho de 2020. E agora, com o novo lockdown do prefeito Wladimir Garotinho (PSD). Há alternativa? Qual?
Igor – Dois anos de abalo no fluxo de caixa é um golpe fatal em uma série de empresas anteriormente saudáveis. Porém, quanto mais postergarmos medidas eficazes contra a disseminação do vírus, mais longo será o sofrimento dos negócios. Executamos muito mal medidas que permitiram outros países reduzir a contaminação a níveis suportáveis até que as vacinas chegassem. Nesse momento, estamos colhendo o pior dos dois mundos: desolação econômica e pandemia fora de controle.
Leandro – Sem a perspectiva de vacinação ampla, não há alternativa às medidas de restrição para reduzir a contaminação. O que precisa ser feito é prover os meios para que a população possa se manter de maneira digna, sem a necessidade de se expor à contaminação. Deveria haver menos reclamação contra prefeitos e governadores pelas restrições, e mais reclamação contra a demora ou falta de vontade do Governo Federal, ao Executivo e ao Legislativo, em aprovar medidas de auxílio.
Nélio – A crise que se instala no atual cenário de Campos não é de agora, apenas se agravou profundamente. A única forma concreta de conter a pandemia no momento é através das restrições de circulação das pessoas. Não há lockdown em Campos, apenas algumas restrições e orientação de condutas, com fiscalização bem discreta. A gravidade da situação nos coloca opções dolorosas. Morrer de Covid em uma UTI pela agressividade do processo inflamatório, que é horrível, ou morrer com Covid pela falta de vaga nestas unidades, o que é bem pior.
Dom Roberto – O setor comercial não é um setor estanque, mas profundamente influenciado pelo crescimento da renda e distribuição da mesma. No entanto, podem se fortalecer experiências de consumo responsável e popular alinhadas com uma economia de colaboração que articule mais as trocas e compras ou negociações intersetoriais, gerando uma demanda planejada e integrada. A crise exige repensar criativamente o setor com as novas tecnologias online, de uma maior aproximação e diferenciação com os nichos de clientes.
Sana – Não sou contrária ao lockdown se ele for implementado de maneira justificada e coerente. Abrir os templos, muitos deles gigantescos, e fechar os restaurantes, que já são constantemente fiscalizados pela vigilância sanitária, por exemplo, não me parece razoável. Além disso, paralelamente ao lockdown, são necessárias medidas compensatórias, principalmente para os setores mais afetados, como concessão de benefícios tributários, disponibilização de linhas de crédito e criação de programas sociais.
Vitor – Sem vacinação em massa eu não vejo alternativa. A catástrofe já está ocorrendo. Perdeu-se muito tempo discutindo cloroquina, ivermectina, “ozônio retal” e outras simpatias, enquanto deveríamos ter adotado uma política de Estado na viabilização de inversão do parque industrial para a produção de vacinas, oxigênio, ventiladores e medicamentos.
Folha – Desde que o ex-governador Anthony Garotinho (sem partido) virou evangélico, este tem sido uma das bases do seu grupo político. Que foi também namorado pelo lulopetismo, quando Dilma fez de Marcelo Crivella (Republicanos) ministro, e hoje é alicerce de Bolsonaro. Wladimir tem sido muito criticado por permitir culto nos templos, enquanto fecha o comércio não essencial. Além de quem vive do dízimo dos fiéis, em que a atividade é essencial?
Igor – Em tempos turbulentos como o atual, a necessidade de encontrar amparo numa força maior aumenta. Logo, a fé é, hoje, mais essencial que em outros momentos. Porém, locais de culto são favoráveis à disseminação do vírus, fato desencadeador do surto de Covid na Coreia do Sul, por exemplo. Isso enfraquece as políticas de distanciamento. Há possibilidade plena de transmissão online das cerimônias, não havendo necessidade premente de presença física nas igrejas. Não se justifica a realização presencial de missas e cultos no rol de atividades essenciais.
Leandro – Acho que a questão prática é determinar se a atividade presencial dentro dos templos e igrejas é essencial. Devemos considerar que na fase atual da pandemia, há necessidade de maior distanciamento social e cuidados com ventilação de ambientes, pois as linhagens de vírus aumentaram consideravelmente sua transmissibilidade. Como para muitas outras atividades humanas, existem alternativas de atendimento remoto que poderiam compensar a falta de contato presencial neste período.
Nélio – Serviços essenciais são aqueles que não podem ser suspensos por necessários à sobrevivência. Neste momento, em que tem alguém com falta de ar na fila de internação, há que se restringir ao máximo as possibilidades de aglomerações. A religião traz na sua essência a união pessoal e coletiva com o sagrado. Mas, neste momento abrir templos traz um risco considerável. Lembro de um versículo da bíblia em Efésios 5:15: “Tenham cuidado com a maneira como vocês vivem; que não seja como insensatos, mas como sábios”.
Dom Roberto – Que a religião é essencial e sentido último da cultura, já que proporciona valores, contribuindo com a solidariedade, é consensual. Confundir a religião com templos abertos é um reducionismo. A religião é essencial na expressão cultual, é importante, mas não abrange a religião como um todo, nem sua parte mais profunda. A lei que protege a liberdade de culto e as liturgias é válida e constitucional. Porém a vida está em primeiro lugar e deve ser defendida como questão de ordem pública pela sua relevância.
Sana – As religiões levam conforto às pessoas neste momento de crise. Mas isso deve ser feito por meio de uma assistência presencial individualizada nos templos, ou através de cultos online para um número ilimitado de fiéis. Ainda que igrejas e afins só possam funcionar com 30% de sua capacidade, segundo o decreto atual, os eventos presenciais são, por si só, um convite à aglomeração de pessoas. Isso não é condizente com a necessidade de isolamento social e não pode ser considerado adequado quando já não existem leitos de UTI disponíveis no município.
Vitor – As religiões, e não somente as evangélicas, constituem grupos políticos importantes na sociedade brasileira e agem na defesa de seus interesses. Nem sempre estes interesses coadunam com o interesse coletivo. Esse é o caso em tela: evangélicos e católicos se uniram politicamente na luta para manter os templos abertos, a despeito das orientações científicas em prejuízo para toda a população. Se existir juízo final, o encontro estará marcado.
Folha – Garotinho e Dilma eram ateus. Bolsonaro era católico. Atrás de votos, se aproximaram dos evangélicos, que se aproximam deles atrás de isenção fiscal e outras benesses do estado laico. O lema do governo federal, que nega a ciência, é “Deus acima de todos”. Além dos “falsos profetas” que Jesus alertou, não falta ao Brasil e a Campos um dos maiores teólogos do cristianismo, Agostinho: “É preciso compreender para crer e crer para compreender”?
Igor – Historicamente, a Igreja sempre “abençoou” os grandes movimentos nacionais que mudaram o curso do país. Desconsiderar ou minimizar a importância desses grupos não é legítimo em termos democráticos, nem inteligente em termos maquiavélicos. O excesso de influência de qualquer grupo de pressão deve ser contido pelas instituições. Infelizmente, o Brasil não é bem-sucedido nessa tarefa e tradicionalmente conferimos fatias do Orçamento e atendemos a esses grupos, que muitas vezes se confrontam com o interesse público.
Leandro – O atual governo federal é um exemplo claro dessa relação entre políticos oportunistas e alguns líderes religiosos levada ao extremo, com a tentativa de impor uma visão de mundo particular a toda a uma nação. O que falta ao Brasil é um respeito maior pela diversidade de pensamentos e culturas, assim como medidas para sua preservação. Em qualquer contexto, seja social, econômico ou biológico, a diversidade sempre acompanha o sucesso de longo prazo de uma sociedade, população, espécie ou comunidade.
Nélio – Agostinho também deixou escrito: “Ter fé é acreditar naquilo que você não vê; a recompensa por essa fé é ver aquilo em que você acredita’. O termo fé pode ser visto ou explicado de formas diferentes. Pode ser pernicioso quando envolve a busca por votos ou benefícios políticos, utilizando a fé coletiva como mote para interesses outros. Mas a verdade sempre vem à tona. Ser um cristão na essência não é estar em templos religiosos assiduamente, mas sim dar o exemplo de compaixão, empatia e altruísmo.
Dom Roberto – Sim, o diálogo fé e razão supera fideísmos fanáticos. Por outro lado, é importante lembrar Karl Rahner: o cristão do século XX será místico ou não será nada. Devemos nos inspirar em Gabriel Marcel, que resgatava aquilo que Pascal chamava de inteligência cordial, ou fineza de coração. O desafio é unir os dois hemisférios cerebrais, capazes de encontrar a Deus em todas as coisas, como o Pe. Teilhard de Chardin. É crucial respeitar os caminhos da fé e da ciência em sua complementariedade e autonomia. Uma fé fechada para a ciência vira superstição, uma ciência fechada à religião se torna dogmática.
Sana – É certo que existe uma relação histórica entre política e religião. Mas a maneira como essa vinculação tem se dado no Brasil é extremamente danosa à democracia. A partidarização da religião produz intolerância, já que são impostos valores morais de grupos específicos, e faz com que os interesses desses grupos se sobreponham à coletividade. O Estado precisa garantir a autonomia privada de crença, mas também assegurar que questões coletivas como a educação, por exemplo, não sejam enviesadas por exigências religiosas.
Vitor – A relação entre religião e política é comum e legítima nas democracias ocidentais. A secularização da sociedade pós-industrial promoveu a autonomia do indivíduo, que passou a exigir menos intervenção do Estado e da religião no seu comportamento. O Brasil avançava nesse caminho, até ter a trajetória interrompida pela revolução conservadora que culminou na eleição do Bolsonaro. EUA e GBR já estão se recuperando desse soluço autoritário, que tiveram com Trump e o Brexit. Espero que possamos corrigir nossos rumos em 2022.
Folha – Outra consequência da Covid é na educação. Em Campos, as atividades do ensino híbrido chegaram a ser autorizadas para 8 de março. Mas foram suspensas antes de começarem, com as novas restrições. Quando acredita que as aulas voltem a ser normalizadas na cidade e no país? Como educador(a), que consequência projeta dessa paralisação de mais de um ano, sem prazo para terminar, na formação das crianças, adolescentes e jovens de hoje?
Igor – Acredito que sé em 2022 retomaremos o calendário normal, com aulas presenciais nas redes pública e privada. Quanto aos efeitos, mais uma vez veremos um impacto social muito desigual: alunos da rede privada logo adaptaram seu calendário e retomaram as aulas de forma digital. Na rede pública, a ausência de coordenação nacional impediu a resposta adequada. A realidade de muitas crianças carentes é a interrupção total do estudo desde março de 2020. Os efeitos serão sentidos ao longo de anos, tem termos sociais, psicológicos e econômicos.
Leandro – Não há dúvida de que a paralisação terá um efeito nefasto na formação de crianças e adolescentes, em particular as de classe menos favorecida, o que tende a ampliar a desigualdade social a longo prazo. A ONU fala em uma década perdida no mundo, mas em países como o Brasil pode ser até pior. O agravamento da pandemia dificultou ainda mais o retorno às aulas presenciais, e dificilmente poderemos falar em “normalização” antes de uma vacinação mais ampla. Terá que haver um grande esforço para reduzir o abandono escolar.
Nélio – O ensino híbrido pode ser bem executado por escolas privadas, mitigando de certa forma os prejuízos na transmissão de conteúdos. Mas é um desafio em escolas públicas, sucateadas em suas estruturas há tempos. O ensino à distância deixa uma enorme lacuna na atenção pessoal do aluno, onde a falta do olhar, do contato presencial dificulta em muito o desenvolvimento na esfera neuropsicológica e humana. Acredito que só após a vacinação mais efetiva em funcionários da educação, poderemos retornar as atividades plenas em escolas.
Dom Roberto – Possivelmente as aulas com ensino híbrido recomecem ainda este semestre. Agora a previsão de uma “normalização” é mais difícil de prognosticar. Vê-se no ensino público o fato de ter aumentado a desigualdade social. Programas como o Ceibal no Uruguai e no Peru, que garantem a cidadania digital com um laptop por aluno, não foram alcançados aqui. A pandemia pode trazer também experiências inovadoras: envolvimento maior dos pais com a escola, interação maior com a cultura digital e pensar mais no que Paulo Freire pregava na Cidade Educadora e o Papa Francisco levanta, como o Pacto Global pela Educação.
Sana – É ainda mais grave quando pensamos nos alunos da rede pública, sem acesso a muitos recursos. Ocorre que, pior do que esse déficit educacional, é produzir contaminação em larga escala com consequências letais. Acredito que a normalização total do ensino só ocorrerá no ano que vem, quando de toda a população já estiver vacinada. Mas a partir do segundo semestre, com o avanço da vacinação e com a devida imunização de todos os profissionais de educação, penso que pelo menos o modelo híbrido já possa ser implementado.
Vitor – Essa será uma sequela da pandemia que a nova geração levará por muito anos. Não sabemos ainda como iremos recuperar, se é que haverá recuperação, dado os traumas psicológicos nos estudantes e professores, desestruturação dos sistemas de ensino e destruição do financiamento público. A certeza é que continuaremos caminhando, mesmo que com pés descalços e as pernas quebradas. A reconstrução será dura, levará muito tempo e exigirá compromisso de todos. E só será possível com lideranças políticas responsáveis.